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Há razoáveis perspectivas de que, ao longo de 2022, a Covid-19 deixe de ser uma pandemia e se torne uma doença endêmica. No entanto, passadas tantas tempestades, ainda há na sociedade muitas cicatrizes a serem remediadas e a fome é uma delas. Desde o início da pandemia, em 2020, houve um significativo e generalizado aumento do número de pessoas em situação de insegurança alimentar, independentemente do nível de sua severidade, inclusive no Brasil.

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Contrariando o senso-comum, não há qualquer divergência no fato de o Brasil ter sido, durante a pandemia, o maior fornecedor de produtos alimentícios para o mundo e, ao mesmo tempo, ter testemunhado uma deterioração do seu quadro de segurança alimentar. Ao menos para a realidade brasileira, por trás desse fenômeno, não houve falta de alimentos, mas uma forte contração na renda dos domicílios acompanhada de uma intensa elevação dos preços desses produtos.

Forte contração da renda

 

 

Com o objetivo de reduzir a disseminação do vírus, diversos países restringiram a circulação das pessoas, desaquecendo a atividade econômica e o mercado de trabalho, levando a uma contração do PIB per capita para todos os grupos de países entre 2020 e 2021, com exceção das economias emergentes europeias e asiáticas. Essa contração de renda foi parcialmente compensada por programas de transferência de renda, porém, esse alívio se deu de forma desproporcional entre os países, com menor intensidade entre os mais pobres que, justamente, concentram a maior fração de pessoas expostas a problemas de segurança alimentar.

Forte elevação das commodities

Quando as economias puderam voltar a funcionar com menor restrição de circulação, emergiu um grande desequilíbrio: de um lado, a demanda por diversos produtos ganhou algum fôlego; de outro, o sistema produtivo teve que operar com importantes limitações e aumentos nos custos de produção. Como consequência, as cotações de diversas commodities subiram fortemente.

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Essa elevação nos preços em dólares das commodities explica parte importante da inflação de alimentos (de 33,9% acumulada entre 2020 e 2021, pelo The Food Price Index, da FAO). A situação é ainda mais adversa para as economias emergentes, pois suas moedas desvalorizaram frente ao dólar, tornando esses alimentos ainda mais caros nas moedas locais. Seguramente, essa combinação de contração de renda com elevação nos preços dos alimentos e perda do poder de compra das moedas locais responde pela fração majoritária da deterioração do quadro de segurança alimentar, notadamente, nas economias menos desenvolvidas.

O Brasil não passou ileso por essa conjuntura

O quadro descrito anteriormente vale para o Brasil. A pandemia ocasionou a restrição na circulação de pessoas que desaqueceu a economia até o primeiro semestre de 2021. Compensando a contração da renda, governos de diversos níveis promoveram políticas de "sustentação de renda". Conforme a população voltava a circular e a atividade econômica retomava, mesmo que com obstáculos, o descompasso entre demanda e oferta acelerou a inflação. Entre 2020 e 2021, o grupo alimentação no domicílio do IPCA (IBGE) acumulou uma alta de 27,9%, também impulsionada pela desvalorização do real frente ao dólar, de 37,5%, no mesmo período. A combinação entre a contração da renda e a elevação do preço dos alimentos também explica a deterioração do quadro de insegurança alimentar no Brasil. 

Nesse ponto, é fundamental esclarecer que, apesar da Covid-19, a quantidade ofertada de alimentos no Brasil se manteve acima do patamar pré-pandemia durante todo o período:

De acordo o MAPA (excluindo algodão, café e cana-de-açúcar), o Valor Bruto da Produção (deflacionado pelo IGP-DI) registrou expansão de 17,0% em 2020 e de 10,0% em 2021;

Certamente, parte do crescimento anterior pode ser explicado pela elevação dos preços dos produtos agrícolas não completamente captada pelo IGP-DI. Em uma tentativa de contornar essa limitação, é possível observar apenas o volume da safra de grãos: pela CONAB, enquanto a safra de 2018/19 foi de 242,3 mi. ton., as de 2019/20 e de 2020/21 produziram, respectivamente, 252,6 mi e 249,3 mi. ton.;

Também é importante destacar que, para os principais alimentos da pauta exportadora do agro brasileiro, com exceção das proteínas de origem animal, o preço do mercado interno está associado ao preço de paridade de exportação, e não ao volume exportado ou importado. Ou seja, o fato de o Brasil ter exportado mais ou menos ao longo da pandemia não fez esses produtos ficarem mais caros ou baratos no mercado interno;

Por fim, de acordo com o IBGE, as atividades agropecuárias foram o setor que mais gerou postos de trabalho entre o 3º/tri de 2019 e o 3º/tri de 2021 (dado mais recente), com 574 mil novas ocupações, e o único cuja remuneração média cresceu em termos reais (4,3%).

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Enfim, por mais que pareça contraditório, não há qualquer divergência entre o Brasil ter sido o maior fornecedor de alimentos para o mundo durante a pandemia e o quadro de segurança alimentar ter se deteriorado no país. A produção de alimentos e a geração de renda que estava ao alcance do agro foram realizadas e em patamares superiores ao nível pré-pandemia. O agravamento da insegurança alimentar foi resultado primordialmente da contração da renda dos domicílios e da inflação de alimentos, fruto da elevação das cotações no mercado internacional e da depreciação do real. A produção do agro nacional, na realidade, tornou a situação menos dramática.

*Felippe Serigati é Doutor em Economia pela Escola de Economia de São Paulo (EESP/FGV), professor e pesquisador do Centro de Agronegócios da FGV. Roberta Possamai é Mestre em Agronegócio pela Escola de Economia de São Paulo (EESP/FGV) e pesquisadora da FGV Agro.

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Source: Rural

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