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Quando começou a pesquisa para lançar a sua própria marca de café, o torrefador carioca Raphael da Silva Brandão experimentou um sentimento de raiva. “Na época, tudo que eu colocava no Google em relação a preto e café, quase 100% era relacionado à escravidão. Foi aí que veio um sentimento muito ruim, de entender que o preto no café só era ligado à época da escravidão e que não havia um protagonismo naquela época”, conta Brandão.

Raphael Brandão, torrefador e fundador do Café Di Preto (Foto: Divulgação)

 

O incômodo deu origem, este ano, à marca Café Di Preto e a um projeto ousado: criar uma cadeia de produção do campo à xícara 100% realizada por pessoas negras. “Conforme fui batendo nessa pauta, foram aparecendo outras pessoas pretas no café, mas ainda é um movimento muito silencioso. Se outra pessoa preta como eu começar no café hoje e for procurar referências vai encontrar pouquíssimas. Tem que fazer uma pesquisa muito a fundo para conseguir. Daí veio a minha ideia do Café Di Preto”, relata o fundador ao revelar que mais do que vender café, a marca visa a alavancar o protagonismo negro no mercado de café. 

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Uma vez criada a marca, o segundo passo de Brandão foi encontrar cafeicultores negros para fornecer os grãos que alimentariam a sua torrefadora – um processo que também exigiu pesquisa. Segundo levantamento realizado pelo IBGE e concluído no final de 2019, 45,4% dos pouco mais de 5 milhões de estabelecimentos agropecuários nacionais são dirigidos por produtores brancos, enquanto 44,5% deles pertencem a pardos e apenas 8,4%, a negros. Indígenas respondem por 1,1% das propriedades e amarelos por 0,6%.

“As fazendas gigantes de café que existem hoje no Brasil são comandadas por pessoas brancas e pessoas brancas que herdaram essas fazendas – em alguns casos da época da escravidão, dos barões do Café. Quanto às cafeterias, são pouquíssimas as que têm pessoas pretas como donas”, relata o torrefador. Não à toa, um de seus principais fornecedores, o produtor mineiro Luiz Carlos Romão, adquiriu os 10 hectares de terra onde mantém 15,1 mil pés de café por sorte: um bilhete de loteria premiado lhe rendeu o retorno ao campo após uma vida trabalhando como pedreiro na cidade. 

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“Meu maior sonho era ter um terreno meu. Trabalhava para os outros, mas sempre com aquela vontade no coração de ter o próprio negócio”, conta o agricultor. No primeiro ano plantou 900 pés de café com a perspectiva de produzir cafés de qualidade a partir de uma colheita mais seletiva dos grãos, fermentação e técnicas de secagem. Quando foi apresentado ao Café Di Preto este ano, ele conta que foi paixão à primeira vista. “Logo que ele me procurou eu já me identifiquei com o projeto dele. Porque é mais ou menos o sonho que a gente tem”, relata Romão. Além do Café Di Preto, o agricultor também participa de outra iniciativa que visa dar protagonismo a produtores negros, esta tocada por uma empresária norte-americana também afrodescendente.

“Ela tinha vinte anos que ela mexe com café e ela nunca tinha visto nos eventos internacionais que ela participava, ela nunca tinha visto produtores negros donos do seu próprio negócio. Ela sentia falta disso porque a visão do negro no café é sempre como funcionário”, explica o agricultor. Embora também atenda a outras torrefadoras, ele ressalta que, nesses casos, a relação extrapola o aspecto meramente comercial, convertendo-se em parcerias importantes para a visão do seu negócio.

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“No projeto com o Raphael, nós dois podemos conversar. Eu converso com ele, ele me pergunta quanto eu posso querer no preço do meu café. A gente vê que tem uma grande diferença estar conversando com quem tem um projeto e te dá a oportunidade de participar, de estar junto. Isso é muito importante”, observa o produtor. E essa relação faz diferença na xícara, segundo conta a barista Raquel Stapait, proprietária da Cafeteria de Marte no centro de São Paulo.

Dona de uma cafeteria em São Paulo, Raquel Stapait se sente honrada de participar de uma cadeia 100% protagonizada por pessoas negras (Foto: Arquivo Pessoal)

“A gente fez o café dele em vários métodos de extração e deu super certo. O café tem qualidade e ele torra muito bem. Além de ser superaberto. Se eu falar que preciso de uma torra mais clara, ele sabe ajustar. Ele tem conhecimento e sabe chegar no perfil que eu preciso”, conta uma das principais clientes do Café Di Preto. Assim como Raphael, Raquel também teve dificuldades para encontrar cafés produzidos por pessoas negras quando abriu o seu próprio negócio, mas afirma que hoje se sente honrada de fazer parte de uma cadeia protagonizada pelos seus.

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“Foi muito legal conhecer o Rapha, coletar as dificuldades que ele tem nesse processo todo e poder fortalecer de alguma forma. Estou bastante empolgada e animada para fecharmos esse projeto juntos e tenho certeza que vai dar certo”, conta Raquel. Após quase um ano no mercado, o Café Di Preto agora busca autonomia a partir de um financiamento coletivo para adquirir o próprio maquinário de torrefação, processo que até então era feito em formato de parceria na própria fábrica onde Raphael iniciou sua carreira, ainda como funcionário.

“Como torrefação, além de vender café, quero fazer um trabalho que gere retorno à sociedade. Não só pelo fato de ter optado por um financiamento coletivo, mas também pela minha função como pessoa preta”, destaca o empreendedor cuja ideia é criar um centro educacional para formar especialistas em café na sua própria comunidade, em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. “A Conceição Evaristo tem uma frase que diz: não importa se você é o primeiro ou a primeira, o importante é abrir portas. Então, não estou apegado em ser o primeiro, quero ser um agente criador de oportunidade para que outra pessoas pretas não precisem contar histórias tristes sobre como chegou ao café”, completa Brandão.
Source: Rural

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