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Premiado no Brasil com o Jabuti de romance literário e com o Oceanos, nos países de língua portuguesa, com o best-seller Torto Arado, o escritor baiano Itamar Vieira Junior conta que as experiências como servidor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a tese defendida em antropologia, a partir de estudos em comunidades quilombolas, são imprescindíveis para sua literatura.

E isso não vale apenas para o romance que se tornou fenômeno de crítica e público. Como Vieira Júnior disse, em entrevista à Globo Rural, Doramar ou a Odisseia, sua mais recente coletânea de histórias curtas, publicada pela editora Todavia, em junho, bebe da mesma fonte. A diferença são os muitos focos narrativos, afirma o escritor, geógrafo de formação.

Um dos contos destacados pela crítica especializada, “Alma”, por exemplo, baseia-se em um encontro que o autor teve durante um trabalho na área rural. Em 2009, em uma viagem de campo, ele esteve em uma terra quilombola chamada Tijuaçu, habitada por cerca de 800 famílias.

Na foto, o escritor baiano Itamar Vieira Júnior. Autor de Torto Arado, ele lançou coletânea com 12 contos em junho (Foto: Divulgação/Todavia/Adenor Gondin)

 

“As pessoas de lá contam que a história deles começou com uma mulher chamada Mariinha Rodrigues, que era escravizada em Salvador. Ela fugiu do cativeiro e caminhou 400 km até essa localidade”, recorda o escritor.

Vieira Júnior afirma que não sabia nada além disso. Nem os moradores de Tijuaçu. Era uma história repassada oralmente, de geração em geração, sem documentos ou mais detalhes a respeito.

“Daí, nesse conto, eu imagino como teria sido a jornada de uma mulher nas mesmas circunstâncias. Não é a Mariinha Rodrigues, mas uma história inspirada na trajetória dela. Inclusive, as motivações que a fizeram deixar a cidade, o cativeiro, claro. Além do desejo de ser livre, houve outras motivações. Mas tudo isso foi imaginado”, explica.

“Foi uma história que nasceu da fricção do meu trabalho criativo com minha atividade profissional”, acrescenta. A trama se desenrola em 22 páginas, contendo extensos fluxos de consciência permeados por digressões e devaneios.

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Itamar Vieira Junior vendeu mais de 170 mil exemplares até o fim de maio apenas na edição da Todavia, algo bastante incomum na literatura brasileira. O livro está em processo de tradução para espanhol, italiano, francês, eslovaco, entre outros idiomas.

Ainda assim, o escritor mantém ativo o vínculo com o Incra, onde é analista em reforma e desenvolvimento agrário. No exercício do cargo, ele relata ter visto a apropriação de terra e trabalho alheios, além das tradições camponesas.

Outra narrativa em Doramar ou a Odisseia com uma origem semelhante é “Inquieto rumor da paisagem”. Em um trabalho de campo, o escritor perguntou aos seus interlocutores: “vocês lembram de algo importante, forte, que aconteceu e vocês não esquecem?"

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"Na década de 50, o dia virou noite, eles não falaram que era um eclipse, e, quando voltou a ser dia, tinha um grande peixe encalhado na baía [de Todos os Santos]", foi a resposta.

Como o povoado situava-se em uma ilha, Vieira Júnior identificou o peixe como uma baleia, inclusive porque os habitantes do local usaram a gordura do animal como combustível para candeeiros. Esses elementos foram amarrados para ambientar o enredo do conto.

“As muitas histórias vão, de alguma forma, ganhando uma forma literária, se tornando narrativas. Um texto literário. São histórias incompletas e a imaginação vai dando um sentido a tudo aquilo”, fala o autor sobre o seu processo criativo.

Ângulo Inusitado

A capa do livro recém-lançado Doramar ou a Odisseia (Foto: Divulgação/Todavia)

 

Mesmo em “Na profundeza do lago”, conto com uma perspectiva incomum na obra do baiano, o campo aparece como cenário. Protagoniza a trama uma esposa de fazendeiro, que vivia na cidade sem ter consciência do que ocorria nas terras do marido.

Para Vieira Júnior, a falta de interesse e compreensão da mulher, que não recebe nome no texto, sobre os desafios e problemas do campo ecoa nos habitantes de regiões urbanas, no geral.

“Eu falo porque eu vivo na cidade, eu nasci e cresci em Salvador, embora meu pai tenha nascido no campo. As pessoas nas cidades vivem um tanto alienadas do que é o Brasil. Não têm dimensão da importância do campo. Nem da atividade agropecuária, nem da atividade agrícola e dos povos do campo, inclusive na conservação ambiental”, avalia.

“Às vezes, eu vou ao supermercado e vejo as pessoas escolhendo frutas, legumes e fico com a sensação, claro, pode ser pura imaginação, de que elas pensam que aquilo nasce ali no supermercado mesmo. Não pensam de onde vêm”, completa.

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Na visão dele, boa parte das desigualdades do país surgem no campo. “Inclusive, porque o passado do Brasil está muito presente no nosso dia a dia, seja pelas permanências, pela falta de acesso à terra, que ainda permanece para muitas camadas da sociedade. As comunidades tradicionais, como as indígenas e quilombolas, continuam à parte nesse processo. Elas sofrem com a espoliação permanente de seu território."

O mesmo não ocorre, por exemplo, na comunidade europeia, segundo Vieira Júnior. “De Portugal a Alemanha, eles têm muita consciência da importância da produção dos camponeses. Algo muito caro a qualquer estado-nação passa pelo campo, que é a soberania alimentar — desejo de qualquer país”, salienta.

Para saber se a mulher descobre o que se passa por detrás das porteiras da propriedade do marido ruralista, é possível adquirir Doramar ou a Odisseia tanto em versão impressa quanto em e-book. Doze contos compõem o livro de 155 páginas dedicado “às mulheres, maternas, ancestrais, que se fizeram em contato no caminho do autor”.

Sobre o gênero das personagens em destaque em seus livros, Vieira Júnior revela que a inspiração vem das mulheres de sua família, que ocupavam um lugar de liderança. “Eram quase que heroínas da família. Eu costumo dizer que os homens eram sombras pálidas delas, porque não conseguiam se aproximar da força, do altruísmo, de tudo que elas tinham, que fazia delas verdadeiras heroínas”.

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Source: Rural

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