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Há menos de um mês, o lavrador Vagner Xavier de Aquino, de 51 anos, não tinha o que comer em sua pequena propriedade, no Sítio Cachoeirão, em Jaciara, município do sudeste mato-grossense que, na safra passada, colheu 85 mil toneladas de milho e 141 mil toneladas de soja, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Vagner e outros moradores do Sítio Cachoeirão, onde vivem 36 famílias, ficaram sem comida neste ano em que o país comemora a colheita de mais uma safra recorde de grãos e a receita de mais de R$ 1 trilhão dentro das fazendas – cifra que deve ser embolsada por agricultores e criadores com a venda da produção agropecuária.

Em Mato Grosso, onde a renda no campo deve atingir R$ 178 bilhões, a fome volta de um passado até então distante na memória dos trabalhadores rurais.

Mãe de sete filhos, Leilaine mudou-se para a Renascer em fuga do desemprego na cidade (Foto: Rogério Florentino/Ed. Globo)

 

 

“Lembrei de quando era muito pequeno e tive de trabalhar para ajudar minha mãe a levar comida para casa”, disse o produtor rural, ao se recordar da infância. Décadas depois de seu primeiro contato com a fome, Vagner precisou da doação de cesta básica para se alimentar bem. “Tenho medo, porque a gente depende dos outros, a gente tem medo, não tem um medo exagerado, porque a gente confia em Deus, mas que dá medo dá”, diz o agricultor.

O pequeno produtor e sua esposa, Natalina Pereira da Silva, de 49 anos, estão doentes. Ele foi obrigado a amputar dois dedos do pé por causa da diabete e as dores na coluna o impedem de trabalhar. A esposa sofreu um acidente de moto, o que dificultouainda mais a vida do casal.

“É um descaso com a população pobre. A população mais fraca é que enriquece o Brasil, que põe a comida na mesa do rico lá fora. O rico não vai pegar em um cabo de enxada e vai trabalhar”, diz Natalina.

Vagner e Natalina moram a cerca de 48 quilômetros de uma usina de etanol que entrou em recuperação judicial e demitiu em fevereiro deste ano 288 trabalhadores. Vizinha de Vagner, Marli Aparecida Negrete, de 66 anos, vive atualmente com R$ 300 por mês. A situação piorou depois que o marido foi demitido da usina.

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Com uma safra de 612 mil toneladas, Jaciara é o nono município de Mato Grosso com maior produção de cana-de-açúcar. A maior responsável por essa riqueza é a usina, que ainda está em funcionamento. Ironicamente, o açúcar foi um dos itens que faltaram na mesa de Marli Negrete este ano.

“A alimentação da gente tem abobrinha, tem banana, a verdura que a gente planta. Já chegou dia de não ter, de não ter café e de não ter açúcar, pão e essas coisas a gente não liga, mas não tem também. Leite não tem também, de primeiro comprávamos muito leite”, conta a agricultora.

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Cercados pela riqueza do agronegócio mato-grossense, muitos pequenos agricultores têm vergonha de admitir as dificuldades enfrentadas para se alimentar de forma digna. Para a pesquisadora Camila de Faria, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), isso acontece devido ao estigma e ao preconceito social envolvendo a pobreza no país.

“A fome é um tabu porque as pessoas se sentem culpadas por não ter comida. Além de que a questão está vinculada à ideia de que a fome é a inanição, é o zero, a falta total, mas nós entendemos que fome não é só a inanição, é também a fome parcial e oculta, é não ter alimentos durante muito tempo”, disse ela.

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A pesquisadora diz que um dos principais problemas em relação à segurança alimentar envolve o consumo de carne, que virou item raro na mesa do pequeno produtor rural. Em Jaciara, onde há pelo menos três bois para cada residente no município,trabalhadores rurais já se acostumaram com essa falta. O rebanho bovino de Jaciara é de 90 mil cabeças, segundo a Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM) e a população é de 27 mil pessoas.

“Carne aqui não tem… Mesmo porque não tem onde guardar e também não tem onde comprar. Quem vai lá na cidade traz 1 quilo de carne, mas depois esquece, vai passar uns 15 dias sem comer carne. O quilo da carne está R$ 30", diz Alvino Alves Ferreira, produtor ural de 76 anos.

Junto com a esposa, Liberalina da Silva Ferreira, de 74 anos, ele vive na Comunidade Renascer, quer fica às margens de uma usina de biocombustível. Diagnosticado com uma hérnia que o tornou incapacitado para o trabalho, o agricultor depende de Liberalina quando o esforço é maior na pequena plantação de amendoim do casal.

O casal Alvino e Liberalina Ferreira, da Comunidade Renascer, em Jaciara (MT) (Foto: Rogério Florentino/Ed. Globo)

 

Os dois são aposentados, mas o dinheiro é insuficiente para uma alimentação ideal. O casal Ferreira ainda esbarra em outras dificuldades, como a falta de um veículo para escoar a produção e problemas de acesso à água potável. O córrego que atravessa a Renascer foi contaminado por herbicidas aplicados em plantações de soja e milho na usina vizinha. A exemplo de Marli, Vagner e Natalina o casal também precisou de ajuda.

Mudança forçada

 

Tem mais gente se unindo ao sonho da associação, principalmente trabalhadores da zona urbana que querem um pedaço de terra, na tentativa de fugir do desemprego na cidade. É o caso de Leilaine Bernardo Oliveira, de 34 anos. Com sete filhos, Leilaine mudou-se para a Renascer há três meses com o marido, que é servente de pedreiro.

A família, que vive em um barraco improvisado,também recebeu cesta básica para melhorar a alimentação. A carne foi o item que mais fez falta. “Carne aqui é mais difícil. Quando a gente pega algum dinheiro, compra um pouco e põe ela no sal. Agora que eu trouxe as galinhas para cá, melhorou, porque aqui não tem energia ainda, mas a carne é mais difícil", diz Leilaine.

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As famílias dos pobres agricultores de Jaciara fazem parte de uma triste estatística: 116 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar no Brasil. Deste total, 19 milhões sofrem de insegurança alimentar grave, termo técnico para definir a fome. Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em abril deste ano.

A pesquisa mostra que o problema é pior no campo, onde a fome alcança 12% dos domicílios na área rural, contra 8,5% em área urbana.  O estudo foi elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil.

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A pesquisa mostra que o problema é pior no campo, onde a fome alcança 12% dos domicílios, contra 8,5% nas áreas urbanas. O estudo foi elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil.

O professor Walter Belik, do Instituto de Economia da Unicamp, explica que, além da pandemia e da crise econômica, um terceiro fator contribuiu para o avanço da fome no Brasil no último ano: o desmonte de políticas públicas da segurança alimentar, como os estoques reguladores de grãos mantidos pelo governo e o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar da aquisição de alimentos da agricultura familiar para distribuição a populações em situação de vulnerabilidade.

Lavoura de milho recém-plantada em Jaciara (MT) e, ao lado, hortas dos agricultores do Sítio Cachoeirão (Foto: Rogério Florentino/Ed. Globo)

 

“Quando estourou a crise do arroz, em setembro do ano passado, o Brasil mantinha em estoque de 22 mil toneladas, enquanto consome aproximadamente 11 milhões de toneladas por ano. Isso não dá nem um dia de consumo. No casodo feijão, os estoques públicos  somavam 140 toneladas. Isso cabe em três carretas”, observa Belik.

O governo federal não tem previsão de ações para a formação de estoques públicos. Por meio de nota, o Ministério da Agricultura informou que usa a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) para formar estoques apenas quando a cotação de mercado está abaixo do preço mínimo.

“A recente elevação dos preços, no mercado internacional, em virtude do aumento da demanda por alimentos provocado pela Covid-19, foi repassada ao mercado interno, com cotações acima do preço mínimo. Isso inviabiliza a ação dessa política e, consequentemente, as operações de Aquisição do Governo Federal (AGF) que é o instrumento que promove a compra de produtos para a formação dos estoques”, justifica o governo ao ressaltar que as políticas públicas adotadas para garantir a segurança alimentar estão centradas em ações que promovam o aumento da produção para maior disponibilidade de alimentos para os consumidores”.

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No entanto, não é o que está acontecendo, a exemplo da agricultura familiar. De acordo com Rosana Salles Costa, professora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), a perda do poder de compra do brasileiro tem afetado diretamente as produções agrícolas, pois a restrição às compras tem tirado a renda dos trabalhadores do campo.

“Ou o produtor escolhe não plantar, mas já gastou com a compra dos insumos, ou ele colhe, mas não tem como escoar a produção, e há desperdício de alimentos”, resume.

O paradoxo é que sem poder comercializar, a população rural não consegue comprar alimentos. “A partir do momento que a venda dos produtos agrícolas é a garantia da renda familiar, a insegurança alimentar se intensifica”, resume Rosana.

Não por acaso, um estudo conduzido pela Rede PENSSAN aponta que a fome alcançou 12% dos domicílios rurais, e 8,5% na área urbana, entre os meses de setembro e novembro do ano passado. Dos 2.180 domicílios consultados pela pesquisa em todo o País, 23,7% pertencem à área rural. O cenário da insegurança alimentar fica ainda mais grave nas regiões Norte e Nordeste.

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Para o professor da Universidade Federal do Paraná e também pesquisador da Rede Penssan, Nilson de Paula, o pagamento do auxílio emergencial não exclui a necessidade de investimento em outras políticas relacionadas à segurança alimentar, como os programas de aquisição de alimentos da agricultura familiar.

“As pessoas têm outras necessidades que também são prementes, têm de pagar aluguel, transporte, comprar remédios. Há uma sériedenecessidades que são tão vitais e que precisam ser atendidas”, destaca De Paula ao classificar o pagamento do auxílio emergencial como uma política sanitária.

Outro aspecto citado no estudo da Rede PENSSAN é a falta de políticas para assegurar a disponibilidade hídrica, que também tem agravado a situação da agricultura familiar e, consequentemente,  a fome. Sem disponibilidade de água, a produção de alimentos para autoconsumo e comercialização fica comprometida, bem como a renda de quem depende da venda dos alimentos.

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Quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos, a insegurança alimentar grave atinge 44,2% dos moradores de áreas rurais. E quando não há água suficiente para o consumo dos animais, a fome atinge 42% desta população.

“Nós tivemos políticas de sucesso no passado, como programas de cisternas, só que, com descontinuidade de políticas sociais, o pequeno produtor rural vem sendo esquecido”, relata Rosana. E completa: “A pandemia tem uma gravidade, mas esse problema de vulnerabilidade não é de agora.”

A seca do Nordeste também não é de hoje. Helena Lopes, especialista de Políticas e Programas da ActionAid Brasil, comenta que o Brasil “retrocedeu 15 anos em cinco”. “Todo o acúmulo que a gente teve de combate da seca no Nordeste está sendo desmontado”, diz.

O volume de exportações em detrimento dos estoques nacionais é intitulado por Helena como privatização da comida. “O alimento vai se tornando cada vez mais um bem privado, restrito a quem tem dinheiro, a quem pode comprar, indo na contramão do direito de acesso previsto pela Constituição”, lamenta.

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Source: Rural

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