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Protocolo de Nagoya é instrumento para regulamentar repartição de benefícios sobre recursos genéticos (Foto: Felipe Hideki Yatabe)

 

Depois de vários anos de espera, o Brasil ratificou o Protocolo de Nagoya. Mas, a considerar o que dizem pessoas e instituições ouvidas por Globo Rural, o país parece não estar pronto para cumprir com o estabelecido no tratado internacional. Órgãos do governo procurados pela reportagem não informaram, por exemplo, quem seriam os responsáveis pela aplicação das regras. Especialistas criticam o que avaliam ser uma falta de preparação e apontam riscos para o país, que tem até maio para se adequar às normas.

O Protocolo foi estabelecido para cuidar do patrimônio genético em nível global. Regulamenta o acesso e a repartição dos benefícios dos recursos genéticos. Criado em 2010, em Nagoya, no Japão, foi colocado em vigor em 2014. O Brasil ratificou o documento, encaminhando-o à Organização das Nações Unidas (ONU) no início de 2021.

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Para o Brasil, estar no acordo é considerado importante tanto pelo seu próprio patrimônio genético, que chama a atenção de laborátórios estrangeiros há décadas, quanto pela dependência que tem de recursos estrangeiros, como a soja, por exemplo. No entanto, dentro do próprio Ministério da Agricultura, não há clareza em relação a quem foi atribuída a responsabilidade de tratar dos assuntos relativos ao protocolo.

Globo Rural questionou a pasta, via assessora de imprensa, sobre seu papel na aplicação do Protocolo de Nagoya, mas não obteve retorno até a conclusão desta reportagem. Conseguimos contato com Cleber Soares, diretor do Departamento de Apoio à Inovação do Ministério.

“No Ministério, o Protocolo está sendo tratado dentro de uma área de sustentabilidade. A área de recursos genéticos não está acompanhando isso”, afirmou o diretor, que disse à reportagem estar à frente da implantação da Política Nacional de Recursos Genéticos para Alimentação e Agricultura. 

O País entrou [no Protocolo de Nagoya] sem ter feito uma preparação legislativa, e agora vai ter que fazer com o bonde andando

Marcio Mazzaro, procurador da Conab e ex-coordenador geral de recursos genéticos do Mapa

 

Responsável pelas políticas de preservação da biodiversidade brasileira, o Ministério do Meio Ambiente também não respondeu ao questionamento da reportagem. Quem também foi procurada foi a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, com sede no Distrito Federal, responsável pela guarda e conservação desse tipo de material. A resposta foi a de que não haveria pesquisador disponível para tratar do assunto.

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Já o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), órgão ligado ao Ministério da Economia responsável pelos registros de patentes no Brasil, deu uma ideia de sua eventual atuação no cumprimento do Protocolo de Nagoya. A instituição esclareceu que não atuaria como órgão de fiscalização, mas “um eventual ponto de checagem de informações referentes à ocorrência de acesso ao patrimônio genético para obtenção de uma invenção e consequente pedido de patente”.

Ainda assim, disse que a forma como o Brasil se organiza para o protocolo entrar em vigor “é um tema em discussão no Congresso Nacional e no Governo Federal”.

Como funciona

De acordo com o Protocolo de Nagoya, as nações têm soberania sobre seus recursos genéticos, podendo exigir a repartição de benefícios – semelhante ao que ocorre com os royalties – derivados do uso destes recursos. É a legislação do país que detém a origem do material que deve prevalecer.

“No caso do Brasil, além de ser um provedor de recursos genéticos, é usuário do patrimônio de outros países”, explica Marcio Mazzaro, procurador da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ex-coordenador geral de recursos genéticos do Ministério da Agricultura.

Desta forma, o Brasil deve fazer valer a sua legislação quando se tratar de recursos do qual é provedor e seguir a legislação dos países que são centros de origem dos recursos dos quais é usuário.

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Mazzaro explica que, ao assinar o Protocolo de Nagoya, o Brasil já deveria estar apto para lidar com a burocracia da compra de novas espécies, a fim de dar continuidade à pesquisa e ao melhoramento genético. “O Protocolo de Nagoya tem várias exigências que precisam ser reguladas. O País entrou sem ter feito uma preparação legislativa, e agora vai ter que fazer com o bonde andando”, resume.

Como exemplo, o procurador da Conab cita o café, originário da Etiópia. Para as pesquisas, com o Protocolo de Nagoya, “será preciso ir até a Etiópia pegar essa genética e, para isso, cumprir a legislação do país africano”, explica.

Todavia, ainda não está claro como o governo brasileiro vai tratar esta negociação, quem ficará responsável e quem fiscalizará o recurso genético. “Essas dúvidas já deveriam ter sido sanadas”, reforça, lamentando que as críticas à forma como o Brasil ratificou o protocolo se façam necessárias.

O risco é não ter um corpo fiscalizatório adequado e essa é uma carência brasileira

Viviane Kunisawa, advogada especializada em Direito de Propriedade Intelectual e Regulatório

“A China tem diversas províncias e teria que ser feito contrato com cada uma, no caso da soja. A Europa não libera a genética das aves de uma vez, e a pesquisa precisa estar sempre se atualizando, inclusive por causa das doenças. O Brasil estava em relacionamento com a Índia, por conta do material genético de gado. Agora não está claro como isso deve seguir”, alerta o procurador da Conab.

Ele ainda diz que o Brasil, como provedor de genética, tem mais clareza em como cobrar pelo patrimônio, mas “como usuário de genética, o protocolo não é interessante”.

Tratado da FAO

É uma situação diferente da prevista no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (Tirfaa). Pelo documento, a Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) regula 64 espécies vegetais que são base da alimentação mundial e, por isso, devem ficar disponíveis em um sistema multilateral com acesso pela internet.

“Você entra no sistema, acessa o recurso genético, assina o contrato padrão e recebe o material sem precisar entrar em contato com o país. Se gerar uma nova variedade, você é obrigado a comunicar o sistema”, explica Mazzaro, da Conab.

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Genéticas como do arroz, trigo, milho e forrageiras estão cobertas pelo Tirfaa. Logo, o acesso tende a ser mais simples. O assunto é mais delicado quando trata-se de soja, eucalipto ou genética bovina, que estão sob a ótica do protocolo. Neste quesito, Mazzaro explica que Nagoya e Tirfaa são concorrentes.

Viviane Kunisawa, advogada especializada em Direito de Propriedade Intelectual e Regulatório, coloca na discussão a lei de acesso ao patrimônio de recurso genético, vigente no Brasil desde 2015. 

Segundo ela, existia o receio de o Brasil ter que pagar royalties à China, mesmo depois da Embrapa ter desenvolvido novas cultivares de soja. “Desde 2015, o Brasil faz uma ressalva de que os dispositivos de acesso e benefício não são aplicáveis aos recursos que já fazem parte do Brasil antes do protocolo”, diz.

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Apesar desta ressalva, o procurador da Conab menciona que ainda há dúvidas sobre se a repartição de benefícios deverá operar sobre o material genético desenvolvido em solo nacional ou sobre a espécie em si, independente da cultivar descoberta depois. Pagar royalties à China pelo material gerado a partir da genética é um cenário. Pagar pelo uso da soja em si é outro. “O Brasil pode ter problemas”, comenta o procurador da Conab.

“Já se sabia do ônus que vem com Nagoya e a necessidade de ter uma organização governamental. O risco é não ter um corpo fiscalizatório adequado e essa é uma carência brasileira”, pontua a advogada Viviane Kunisawa.

Pesquisa nacional

 

 

O governo não tem dinheiro para manter esse material [genético] e isso vai se perdendo

Marcio Mazzaro, procurador da Conab e ex-coordenador geral de recursos genéticos do Mapa

Marcio Mazzaro afirma que, quando coordenador do Mapa entre 2019 e 2020, foi proposta a Política Nacional de Recursos Genéticos para Alimentação e Agricultura, porque há perda significativa do estoque de recursos genéticos no Brasil. O Protocolo de Nagoya serviria para fomentar este banco de recursos e as pesquisas em andamento nas universidades.

“O governo não tem dinheiro para manter esse material e isso vai se perdendo. Não há investimento público para manter, não tem controle, os equipamentos estão desgastados. Então a gente propôs um reordenamento de órgãos federais e estaduais, inclusive para avançar com o protocolo”, diz.

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Source: Rural

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