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Pescador joga a tarrafa para captura de sardinhas na Praia de Tabatinga, em Nísia Floresta (RN) (Foto: Léo Caldas)

 

*Publicado originalmente na edição 423 da Revista Globo Rural (Fevereiro/2021)

A poluição das águas do planeta ameaça 5% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. O valor, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), representa US$ 3 trilhões por ano e está relacionado à atividade pesqueira, principal vítima do lixo que toma conta dos oceanos e chega às comunidades que dependem da pesca ou aquicultura para sobreviver.

Neste ano, o assunto deve ganhar relevância, por ser considerado pela ONU o início da Década dos Oceanos. Além da vida marinha, faz parte desse universo aquático os 13 mil pedaços de lixo plástico por quilômetro quadrado, poluição que toma conta de 40% dos oceanos.

“A vida na água e a vida oceânica cobrem 70% do nosso planeta, mas a humanidade conhece apenas 5% dos ocea- nos. É preciso entender sua importância, inclusive por ser fonte de renda e alimento para muitas populações”, alerta Fábio Eon, coordenador da Unesco.

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Por mais que se viva longe da praia, os oceanos são essenciais, devido à função de regular as temperaturas no planeta – e no Brasil isso se torna ainda mais relevante. Eon diz que o território nacional conta com cerca de 7.500 quilômetros de costa, “talvez o país com maior zona costeira livre do mundo, sem geleiras”.

Não por acaso, dados da Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP), pertencente ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), apontam que o número total estimado de pescadores no Brasil é de 987.650, sendo 96% artesanais e os demais industriais.

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O farol da Praia de Galinhos, no Rio Grande do Norte, é um dos principais pontos turísticos da península. Para chegar lá, um atrativo passeio pelas dunas esconde a triste realidade que poucos conhecem: o lixão a céu aberto. Sem aterro sanitário e água encanada, moradores já viveram majoritariamente da pesca, mas agora precisam arranjar outras atividades para sobreviver, porque lá, literalmente, o mar não está para peixe.

Rosângela da Silva, presidente da Colônia de Pescadores de Galinhos, reclama que os resíduos sólidos geram o chorume, penetrando no lençol freático. “Cada pessoa tem poço nas suas casas, e essa água está contaminada. Além do consumo direto, isso também contamina mariscos, peixes, além do lixo voar e ir para o oceano”, conta, ao caminhar entre os resíduos.

Miquelina Solano é esposa de pescador e afirma que “hoje, se a pessoa viver de pesca em Galinhos, vai morrer de fome, pois é uma península ameaçada”. Segundo ela, a atividade também começou a escassear a partir da maior exploração da carnicicultura. Na prática, os restaurantes realmente têm mais camarão do que peixe para oferecer.

Lixão localizado na altura de um dos pontos turísticos mais importantes de Galinhos (RN), o Farol Galinhos (Foto: Léo Caldas)

 

Para Miguel Accioly, professor de ecologia costeira e maricultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a maior exploração do camarão a fim de atender ao turismo, em paralelo à expansão do mercado imobiliário, tende a aterrar os manguezais, e isso se reflete diretamente na pesca.

A especulação imobiliária também acelera o processo de erosão costeira. Marli Lucas da Silva sobrevive da coleta de mariscos em Galinhos e, graças a ele, conseguiu construir uma casa simples na areia da praia. Passados 12 anos, no entanto, viu o avanço do mar destruir a construção e diz que a situação se agravou após pousadas serem erguidas além da faixa de areia permitida.

 

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Conhecedora da região, Zuleide Maria Carvalho Lima, professora titular do departamento de geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), lembra que o processo de erosão é algo que sempre existiu.

Ainda assim, ela concorda que há construções, como bares e pousadas, que estão em uma área chamada de "pós-praia", em que “a onda precisa se espraiar e a prefeitura infelizmente concedeu permissão para construção na ponta da enseada”.

E complementa: “A água tem de ir para algum lugar. Então, se não vai para onde deveria, acaba se deslocando para a faixa de areia que está aberta”. Procurada, a prefeitura de Galinhos não retornou o contato da Revista Globo Rural.

A pesca artesenal está sendo muito afetada pela poluição das indústrias, das petroquímicas e dos portos de mineração

Miguel Accioly, professor de ecologia costeira e maricultura da UFBA

Correntes marinhas que interligam os oceanos propiciam também o tráfego de resíduos sólidos e líquidos; por isso, jogar a rede de pesca tem sido cada vez mais um ato impreciso.

É o que acontece no município de Nísia Floresta, a cerca de 40 quilômetros da capital potiguar, Natal. Ariocó, cioba, serra, tainha e bonito são algumas espécies de peixes da região, mas que na rede vêm acompanhadas de tampas, garrafas e restos de sacola plástica.

Em um singelo rancho de pescadores com vista para as falésias, Susana Araújo, presidente da Colônia de Pescadores de Pirangi do Sul, busca na memória tempos em que se pescava entre 30 e 40 quilos de peixe em poucas horas. Passada uma década, o barco que viajou dez horas entre ida e volta rende apenas um cesto, o qual ela carrega nos braços, com no máximo 10 quilos de pescado.

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“Outra diferença grande é na sardinha. Aqui perto da costa era muita sardinha, fácil de pescar, para comer e vender. Agora, com pessoas de fora vindo pescar e sem o defeso, já vemos o volume diminuir”, conta.

Para Alitiene Pereira, pesquisadora especialista em aquicultura da Embrapa Tabuleiros Costeiros, a alteração na dinâmica de reprodução dos peixes está ligada à ocupação humana desordenada. Isso inclui poluição e especulação imobiliária, causando assoreamento de áreas costeiras e piorando a qualidade da água, mediante a redução da concentração de oxigênio.

Era muita sardinha, para comer e vender. Com pessoas de fora vindo pescar e sem o defeso, já vemos o volume diminuir

Susana Araújo, presidente da Colônia de Pescadores de Pirangi do Sul, em Nísia Floresta

“A poluição dos oceanos é uma realidade que afeta o ecossistema marinho sob diferentes aspectos, principalmente pela presença de poluentes orgânicos persistentes, oriundos dos efluentes domésticos, industriais e agrícolas, que agem como desreguladores endócrinos em organismos marinhos, causando problemas reprodutivos, comportamentais e deficiências imunológicas”, explica a pesquisadora.

Visivelmente presentes na praia de Barra de Tabatinga, em Nísia Floresta, rochas que deveriam ser avermelhadas dão lugar a uma coloração escura, sinalizando a herança do derramamento de óleo por um navio petroleiro em 2019, o que agravou a escassez de pescado na região.

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Lígia Rocha, coordenadora da ONG Oceânica, que atua no Rio Grande do Norte, mostra uma coleção do que chama de lixo internacional, com rótulos do Vietnã, Malásia, África do Sul, China, Coreia do Sul, Namíbia, entre outros, recolhido na faixa de areia entre as praias de Tabatinga e Búzios.

Marcas do combustível derramado por navio petroleiro que chegou à Praia de Tabatinga, no município de Nísia Floresta (RN) (Foto: Léo Caldas)

 

“São garrafas do que parece ser água, produtos de limpeza, detergente, sinalizando lixo trazido por navios, talvez da tripulação”, ela sugere.

Ela observa que não há uma legislação que cuide do lixo descartado por embarcações na costa brasileira, tampouco qualquer estudo e acompanhamento por parte da Secretaria da Pesca quanto ao desdobramento disso para a atividade. Consultado, o órgão federal não respondeu à Revista Globo Rural. 

De uma escala global para uma escala local, Miguel Accioly, professor da UFBA, explica que a pesca artesanal é muito mais afetada pela poluição que a atividade industrial.

“A pesca artesanal já está sendo muito afetada por vários tipos de poluição, das indústrias, petroquímicas e portos de mineração, mas o impacto não é mensurado oficialmente e a população sente isso diretamente. Inclusive na qualidade do pescado, que vem contaminado, e na quantidade, pois algumas espécies são mais impactadas, por não conseguirem se reproduzir, devido à pesca industrial abusiva ou à falta de defeso."
Source: Rural

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