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(Foto: Marcelo Min/Ed. Globo/Divulgação)

 

*Publicaado originalmente na edição 420 de Globo Rural (Outubro/2020)

Ela pode não ser creditada, mas muitas das mudanças que vêm atingindo a produção agrícola mundial nos últimos anos devem ser atribuídas a uma mulher que viveu, produziu e escreveu em solo brasileiro.

Ana Maria Primavesi é o seu nome. Neste mês, a engenheira agrônoma de origem austríaca, principal referência da agroecologia e no estudo dos solos tropicais, completaria cem anos de vida. Morta em janeiro, teve uma vida repleta de episódios que, como diz o ator Marcos Palmeira, dariam um filmaço.

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Em décadas de uma atividade intensa, Primavesi sempre esteve interessada na parte técnica da agricultura. Sua ideologia era o solo; sua doutrinação, a técnica. Não entendia porque era premiada por seu trabalho. Em 2012, ela recebeu o One World Award, considerado o Nobel da agricultura orgânica.

“Sempre estive convencida de que o solo é a base de toda a vida. Meu trabalho foi direcionado, e não me preocupei com o que outros pensam e falam, segui fazendo aquilo em que acredito firmemente”, disse Ana durante a cerimônia.

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Nascida numa família de origem rural, ela estudou Agronomia na Universidade de Boku, na Áustria, onde ficou impressionada com os ensinamentos de um professor de ecologia. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando foi inclusive feita prisioneira de um campo de concentração inglês, veio para o Brasil com o marido, o também engenheiro agrônomo Artur Primavesi. Em pouco tempo, constatou que havia alguma coisa errada por aqui.

As técnicas eram praticamente todas importadas de países de clima temperado, notadamente da Europa. Quando começou a escrever, na década de1960, passou a bater numa mesma tecla: a importância do solo vivo. Em 1980, um de seus livros se tornou referência. A importância do trabalho é denunciada pelo título: Manejo ecológico do solo. A obra é considerada por muitos a bíblia da agroecologia, ramo da agricultura que já foi chamado de agricultura alternativa e que hoje se confunde com a produção orgânica.

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Depois dele, Primavesi passou a produzir com grande intensidade até pelo menos a metade da década de 2000. Mas ela não era apenas uma teórica. O trabalho intelectual era simplesmente a continuidade de sua atividade como agricultora. Sua fazenda, em Itaí (SP), tornou-se durante muitas décadas referência na produção orgânica.

Hoje, as sementes de seu trabalho estão espalhadas por todos os lados e seus frutos fortes e maduros na agroecologia começam a crescer também em meio à agricultura convencional. A agrônoma está a cada dia mais importante e atual, sendo fundamental no processo de transição para uma agricultura ambientalmente correta. Parece óbvio, mas o óbvio pode permanecer oculto. Até que surja alguém que o torna inteligível a todos, como foi o caso de Ana Maria Primavesi.

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O discípulo

Leontino Balbo Júnior, vice-presidente executivo da Native (Foto: Divulgação)

 

 

Quando se fala em produção orgânica em escala, é impossível não falar de Leontino Balbo Júnior. O produtor promoveu uma verdadeira revolução no negócio de cana da família quando criou a Native, principal marca de açúcar orgânico do mundo. Na entrevista, Leontino vai até a estante atrás da cadeira de seu escritório e exibe orgulhoso o livro Manejo ecológico do solo, que conheceu na faculdade de agronomia.

“Ela e esse livro são algumas das minhas principais referências. Há quatro coisas aqui que passam despercebidas pela maioria dos agrônomos e que são a base do meu trabalho com a agricultura regenerativa do solo: a importância da bioestrutura ativa do solo, as interações radiculares, o uso de rotação de culturas e o conforto ambiental.”

Base biológica

 

José Pedro Santiago, agrônomo, produtor e consultor rural (Foto: Divulgação)

 

 

“Ela foi a pessoa certa no momento certo”, diz José Pedro Santiago, amigo de Ana Primavesi desde 1980. Eles se conheceram quando ele coordenava o Grupo de Agricultura Alternativa, que daria origem, em 1989, à Associação de Agricultura orgânica (AAo), da qual Ana Maria Primavesi seria a sócia número um e Santiago, o primeiro presidente.

“Ela deu a base técnica que nós não tínhamos. Falava-se muito da importância da matéria orgânica, mas era uma coisa meio en passant.” Seu aparecimento, segundo Santiago, mudou a cabeça de várias gerações de agrônomos. “Eu acho que a agricultura mundial está se transformando numa agricultura biológica graças a pessoas como a Primavesi.”

Encantado

 

Marcos Palmeira, ator e empresário (Foto: Divulgação)

 

O ator Marcos Palmeira conheceu o trabalho de Ana Primavesi quando começou a trabalhar na fazenda da família, no sul da bahia, nos anos 1990. Naquela época, ganhou de um amigo o livro Manejo ecológico de pastagens. “Fiquei encantado, ela se tornou uma referência para mim. Depois, fiz um curso em que ela era uma das palestrantes.”

Hoje produtor rural orgânico de hortaliças e leite na região serrana do rio, ele destaca a importância do trabalho da “doutora Ana”. Ele revela o desejo de transformar sua vida em filme. “Mandei a biografia dela para o meu pai, o produtor de cinema Zelito Viana. O que estamos buscando hoje é esse olhar para a terra, para o solo que ela já trazia. Sua vida daria um filmaço.”

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Quarenta anos

Fabio Ramos, consultor e diretor da Agrosuisse (Foto: Divulgação)

 

 

Como muitos agrônomos, Fabio ramos conheceu o trabalho de Primavesi a partir do Manejo ecológico do solo, lido quando ainda estava na faculdade. “Havia ali uma premissa universal do manejo dos solos.” Desde então, os conhecimentos da agrônoma acompanham Fábio nos trabalhos que desenvolve tanto na agricultura convencional quanto na agroecológica.

“Após um uso intenso do solo como o verificado nos últimos anos, você constata a exaustão do modelo tradicional de manejo, com sinais de inviabilidade econômica. É aí que os produtores convencionais começam a buscar alternativas. É aí que o trabalho da doutora Ana se torna tão importante, como se dissesse: ‘Gente, mas eu falo isso há 40 anos’.

Pioneirismo

Luiz Carlos Demattê Filho, CEO de Korin Agricultura e Meio Ambiente e Coordenador geral do Centro de Pesquisa Mokiti Okada (Foto: Divulgação)

 

 

Ana Primavesi foi durante 20 anos consultora do Centro de Pesquisa Mokiti Okada, que está na origem da Korin, hoje referência em produção sustentável de alimentos. Luiz Carlos Demattê, que conviveu com a doutora, lembra de sua visão voltada para a microbiologia do solo. “Ela desenvolveu técnicas para os solos tropicais, inclusive com as plantas espontâneas e indicadoras da saúde do solo.”

Demattê ressalta como o entendimento das relações que existem entre um solo fértil e os sistemas tropicais ajudaram a fundamentar as legislações voltadas a uma agricultura mais natural, como a própria Lei dos orgânicos, regulamentada em 2011, e o recente Programa Nacional dos bioinsumos, lançado neste ano. “E ela foi a pioneira de toda essa perspectiva.”

Nova revolução

Celso Tomita, engenheiro agrônomo e diretor da AgroÖikos (Foto: Divulgação)

 

 

Consultor de projetos na área de produção orgânica e sustentável, mas também convencional, Celso tomita diz que os princípios de Ana Primavesi fundamentaram algumas práticas estudadas na academia e que ele aplica até hoje em plantações, inclusive de commodities como soja e algodão.

“Ela foi a primeira a dizer que o manejo do solo estava errado, mas as pessoas só descobrem quando a lavoura começa a desandar.” “Já existem muitos produtores de soja trabalhando com os conceitos desenvolvidos por Ana Primavesi. Esse olhar para a produção natural é uma tendência mundial. Você pode ver a política dos bioinsumos. A revolução verde está em decadência.”
Source: Rural

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