Participantes da cavalgada em São Lourenço (MG) (Foto: Charles Verza)
*Publicado originalmente na edição 413 de Globo Rural (março/2020)
"Isso é uma ação feminista?”, pergunto. A resposta me confunde: “Sim! E não!”. Ao longo do dia, vou entendendo essa aparente contradição.
A manhã de sábado brotava linda na Baia Santo Amaro, bairro Floresta, na periferia de São Lourenço (MG), quando uma cena me parece fora do lugar: bem ao lado de um piquete, no chão batido coberto com um toldo de aluguel, vejo um salão de beleza improvisado.
Maquiadores e cabeleireiros como numa linha de montagem, colocando cílios, fazendo escova, retocando batom, sombras, cintilando blush – enfim, servindo um talento completo de make-up.
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Quem olhasse só para os rostos, talvez viesse a achar que as mulheres ali se preparavam para uma balada, uma festa. Os trajes responderiam que não: em vez de salto, bota de montaria; calça jeans e camisetas no lugar do vestido; lenço no pescoço e, sobre o cabelo arrumado, chapelão de copa alta e aba larga.
Do lado de fora da tenda, começa a ferver a alegria dos encontros e reencontros entre bancas vendendo arreios e tralhas, trailers com produtos para equinos e acessórios femininos (brincos, colares, pulseiras, tudo com imagens de tropa), e as bancas de patrocinadores da 8ª Cavalgada das Patroas.
A edição deste ano da cavalgada reuniu 180 mulheres (Foto: Charles Verza)
“Miga!! Que delícia te encontrar de novo!!”, saúdam umas às outras, com abraços, gritos de satisfação, caras e bocas e mãos se espalmando. “Não acrediiito que você veeeeio!!”
Um caubói da linha “rústico-sistemático”, que julgasse fútil e afetada essa movimentação, iria amarelar o sorriso crítico ao ver a chegada de um caminhão branco trazendo 12 cavalos. Ao volante, boca vermelha e óculos escuros, Marcela Fortes.
Com destreza irretocável, ela manobra no espaço estreito onde já há outros caminhões parados. Desvia de carretinhas e de cavalos já sendo escovados e arreados. Dando ré! Um olho no retrovisor, outro no grupinho de amigas que acenam para ela: “É nóis, geeente!”.
Emoção e homenagem
Uma lágrima suspende a ebulição dos preparativos de saída. Cento e oitenta mulheres, respeitosamente, depositam seus chapéus no chão e, de mãos dadas, formam um enorme círculo de oração. O coro de vozes arrepia. “Ave Maria, cheia de graça…”
Um murmúrio de choro contido se espalha, acendendo saudades de uma companheira muito divertida em cavalgadas passadas: Natália Gonçalves, esfaqueada num feminicídio, no ano anterior, aos 21 anos de idade. À lembrança dela a cavalgada é dedicada.
As igrejas de São Lourenço batem 10 da manhã quando os cascos da tropa cantam nas pedras da estância mineral, atraindo moradores e turistas para as calçadas. No sul de Minas, a passagem de comitivas ganha status de espetáculo de rua. “Boa viagem!!”
A cavalgada reuniu cavaleiras de cinco Estados: Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Bahia e Paraná (Foto: Charles Verza)
Cavalgar na Serra da Mantiqueira é um desfrute de sensações. O ar puro das terras altas, o contorno de montanhas ondulantes. Paisagens que acariciam o olhar.
Com a experiência de já ter participado de muitas cavalgadas (é um hobby para mim) só masculinas, vez ou outras mistas, me admira como a Cavalgada das Patroas é musical.
Claro, tivemos aqueles momentos de vivência, silêncio de falas, olhos e pensamentos compenetrados no galeio das montarias; o batido das patas sincronizando com o do coração. Não deixa de ser uma espécie de meditação: “Respira na marcha!”.
Evidências
Mas, na maior parte do tempo, ouço constante algaravia. De conversas e, principalmente, de cantos. Na estrada, é natural a fragmentação da comitiva em grupos. Em quase todos, ou alguém puxa uma música e as demais encorpam a capella, ou alguém liga a caixinha portátil de som clicando a playlist de sucessos sertanejos.
Bonito, comovente de novo, o radiante coro de vozes femininas, agora preenchendo os ecos do espigão. “Quando eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo… ”
Prosear a cavalo é muito prazeroso. O balanço da marcha parece que vai empurrando os assuntos. E a mim foi dado um privilégio de muita responsa e honra: ser o único homem a participar montado da comitiva em oito anos. O que tomo, e agradeço, como um reconhecimento ao Globo Rural.
Da esquerda para a direita: Dani Boiadeira, Priscila Carvalho e Ana Áurea Vieira (Foto: Charles Verza)
Quem são essas cavaleiras? Difícil categorizar os perfis, dada a diversidade. A mais nova da turma é Ana Flávia Junqueira de Oliveira, de 8 anos e que cavalga desde os 3; a mais velha, dona Geni Bello, de quase 80, dona de casa.
A Marcela Fortes, que vi chegando no caminhão boiadeiro, de 31 anos, um filho, me surpreende ao contar que é editora de fotografia numa loja de ótica e vídeo de Itajubá. Trabalha de segunda a sexta-feira e, nos fins de semana, ajuda o marido, que tem empresa de transporte. “Transporto gado, porco, cavalo, cereais, o que tiver.” Quando não, vai cavalgar com as amigas.
“Na minha região não tem isso, reunir essa quantidade de meninas. É uma liberdade que não tem igual. Brincar, falar o que quiser, zoar uma com a outra, cantar… Olha: é muito bom fazer as coisas sem ninguém no seu pé criticando, isso não é assim, não pode…”
Inclusão
Entendo e provoco: mas estão excluindo os homens? "Não se trata de exclusão dos homens, mas sim da inclusão da mulher, que vem conquistando muitos espaços. Por que não também no meio do cavalo?”
Quem responde é a Priscila de Carvalho, de 31 anos, veterinária, explicando que a cavalgada “só de meninas”, apesar de ser mais barulhenta, é mais tranquila, especialmente para os animais, pois a mulher é mais cuidadosa.
“Homem é mais bagunceiro. Corre com o animal, vai para frente, volta, vira nos pés… A gente respeita mais a montaria.”
Aos poucos, vou percebendo que o encontro tem um viés feminista, sim, mas sem caráter ativista.
O percurso da última cavalgada somou 28 quilômetros (Foto: Charles Verza)
“O que estamos fazendo é mais uma ação de empoderamento da mulher. Como em tantos outros setores, a mulher também pode se dar o direito de passar um tempo longe dos seus afazeres domésticos e de trabalho para curtir as delícias de um passeio a cavalo.” Esta já é a explicação da idealizadora da Cavalgada das Patroas, a técnica em zootecnia Daniele Nunes Paiva, de 34 anos, mais conhecida como “Dani Boiadeira”.
Em 2012, ela reuniu 11 amigas. Depois, cada uma foi trazendo outra, e outra… Agora, a organização já toma três meses, as participantes podem parcelar no cartão a taxa de inscrição ao longo do ano (cerca de R$ 30 por mês), para ter direito a café da manhã, lanches, refeições, pouso e serviços de apoio. Menos a montaria: cada uma leva a sua.
Juntas pela igualdade
Entre outras ajudas, o projeto resplandeceu com o apoio de duas Áureas. Uma é a assistente social Áurea Gonzaga Paulino, de 35 anos, que trabalha com inclusão de famílias pobres na periferia de São Lourenço. A outra é a industrial de plástico no Vale do Paraíba (SP) Ana Áurea Vieira, de 41, criadora, domadora e praticante de esportes equestres.
Nelas encontro o ativismo, espelhando a maioria das cavaleiras: mas é a militância de quem “aaaaama” os cavalos.
“O cavalo é minha paixão. Recarrega as minhas energias. Me ensina a ser calma e me deixa à vontade como em nenhuma outra situação encontro” , diz Áurea Vieira. No que Áurea Paulino completa: “O cavalo congrega, estreita amizades. Seja pobre, seja rica, casada, solteira, viúva, aqui nos sentimos iguais”.
Iguais no abrir o coração e escancarar sorrisos; iguais no respeito entre si e para com os animais. Nos 28 quilômetros de percurso, não presencio aquelas cenas de macheza autoafirmativa de esporear, abusar do animal. Ao final da cavalgada, a tropa chega inteira. Como o moral e a autoestima das cavaleiras.
*Nelson Araújo é repórter, editor e apresentador do Programa Globo Rural da TV Globo
Source: Rural