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Cacau da fazenda Leolinda, de João Tavares (Foto: Divulgação)

 

Há cerca de 10 anos, produtores da Bahia talvez não imaginassem que em 2020 haveria um Concurso Nacional de Cacau Especial no país. O cultivo da amêndoa que dá origem ao chocolate ainda estava muito ligado às boas lembranças do passado, em que a produção enriqueceu a região sul do estado e se fazia presente nas histórias de Jorge Amado. As dificuldades, no entanto, impediam a nostalgia de dar lugar à esperança de dias melhores. 

Os agricultores que conseguiram sobreviver à crise nos anos 1990 provocada pela praga vassoura-de-bruxa estavam desanimados. O fungo reduziu a produção brasileira de quase 400 mil para cerca de 180 mil toneladas ao ano, tirando do país a posição de maior produtor mundial. Hoje, são importadas pouco mais 50 mil toneladas anualmente. Com a perda de milhares de hectares, alguns até abandonaram a atividade.

Mas a situação começou a mudar. Entre 2004 e 2005, João Tavares, cacauicultor da Fazenda Leolinda, de Ilhéus, iniciou um trabalho para valorizar o cacau de qualidade e entrar no mercado Bean to Bar (a tradução leva o conceito de uma pequena parcela da indústria que trabalha o chocolate desde o cultivo da amêndoa), algo que nem era cogitado no Brasil, mas estava em ascensão no exterior. Os primeiros anos foram difíceis. Era preciso convencer os produtores de que havia um mercado disposto a pagar pela excelência em cada etapa da produção.

“Os produtores estavam endividados e sem capacidade para novos investimentos. O caminho que eu encontrei foi trabalhar com cacau de qualidade. É o mesmo cacau, mas o beneficiamento é diferente. Minhas dornas são redondas, fazendo a fermentação em baixas temperaturas por um tempo maior. Com isso, conseguimos uma amêndoa com baixo amargor e acidez e notas florais”, afirma Tavares. Atualmente, a Leolinda possui uma área total de 698 hectares, onde, além de cacau, ele cultiva seringueiras para a extração da borracha e possui áreas de preservação ambiental. Nos 340 hectares com a cacauicultura, Tavares colhe cerca de 130 toneladas da amêndoa ao ano, sendo 100 de cacau fino.

O cuidado na fermentação, secagem e seleção das amêndoas tem rendido bons frutos. Em 2010, João Tavares venceu o prêmio International Cocoa Awards, no Salão de Paris, pela qualidade e sabor do seu material.

“Meu pai achava que eu era um sonhador. Ele dizia: ‘nunca vi ninguém pagar R$ 1 a mais por cacau’. Quando recebi o prêmio, houve até uma discussão. Os produtores da Colômbia, Venezuela e Peru se questionavam como aqueles países, que eram referência em questão de qualidade, haviam sidos superados por um brasileiro”, relembra. Para não deixar dúvidas, ele venceu novamente a premiação no ano seguinte.

João Tavares, cacauicultor de Ilhéus, na Bahia (Foto: Divulgação)

 

Cacau gourmet

É com exemplos como o dele que a cadeia produtiva busca incentivar uma nova geração de produtores, direcionados para a produção de cacau considerado gourmet. E é essa alta qualidade que espera mostrar na segunda edição do Concurso Nacional de Cacau Especial, que será realizado na segunda-feira (31/8), às 18h, com transmissão via internet pelo Centro de Inovação de Cacau (CIC)

O evento é organizado pelo CIC em parceria com a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), órgão do Ministério da Agricultura (Mapa). E tem o apoio de importantes marcas da indústria de chocolates, além do Sistema FAEB/SENAR.

Dos 63 produtores de três estados brasileiros que se inscreveram para a disputa, 27 lotes foram selecionados para a segunda etapa, a de análise sensorial do cacau processado. Na terceira e última fase, um júri de convidados especiais composto por 15 profissionais de diferentes áreas de atuação – chefs, jornalistas, chocolate makers (aqueles que fazem as barras desde a escolha das amêndoas) e pesquisadores – irão avaliar os chocolates elaborados a partir dos líquors.

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Para este ano, além da categoria blend, em que são analisadas as melhores misturas de diferentes variedades, e a varietal, onde são escolhidas as amêndoas de uma única genética, há também a categoria experimental, para premiar o cacau com um pós-colheita diferenciado.

"É uma estratégia de valorização da qualidade do cacau brasileiro para colocar o país entre os que produzem uma amêndoa de boa qualidade. Em setembro de 2019, o Brasil foi reconhecido pela Organização Internacional do Cacau (ICCO, na sigla em inglês) como país exportador de cacau de origem. O Brasil exportou por volta de 750 toneladas, pouco perto do que produz, mas é maior que alguns países da América Latina. Isso tem atraído traders e chocolate makers  para a matéria-prima do Brasil", afirma Cristiano Villela, diretor científico do CIC e presidente do Comitê Nacional de Qualidade de Cacau Especial.

De acordo com Villela, os melhores colocados na etapa nacional poderão participar da disputa em Paris em 2021, onde o Brasil tem 10 vagas. Para isso, os cacauicultores selecionados precisam ter pelo menos 10 quilos a mais da mesma amêndoa utilizada no concurso brasileiro.

"A gente está falando de uma cadeia que é mercado de nicho. Mas, se você fizer um paralelo com o café, há esse potencial e alavancagem. Eles (cafeicultores) construíram essa imagem do café especial lá fora. Nós queremos valorizar esse mercado e reconhecer esses produtores nas diferentes regiões do Brasil”, diz ele.

Sustentabilidade

"Não adianta o agricultor ganhar um prêmio e não ter responsabilidade social e ambiental", diz Adriana Reis, líder do painel do Concurso Nacilnal de Cacau Especial (Foto: Divulgação)

 

Junto com a qualidade das amêndoas, o consurso vai analisar  o modo como são produzidas. No atual momento, em que a origem dos alimentos e o debate sobre meio ambiente ganham cada vez mais importância no Brasil, o entendimento dos produtores e especialistas é que a cacauicultura pode ter maior destaque. Além das notas nas etapas classificatórias, os produtores precisam atingir uma média em critérios de sustentabilidade.

“Não adianta o agricultor ganhar um prêmio e não ter responsabilidade social e ambiental na fazenda, como áreas de desmatamento ou mesmo trabalho escravo. Esses são dois pilares dessa produção diferenciada”, explica a doutora em biotecnologia e gerente de qualidade do CIC, Adriana Reis. Ela também é líder do painel do Concurso Nacional de Cacau Especial.

 No Pará, por exemplo, as árvores de cacau no bioma Amazônia, de onde a amêndoa é originária, dividem espaço com o plantio de outras culturas, como banana e açaí, e têm potencial para ajudar no reflorestamento de áreas desmatadas para a criação de gado. Já na Bahia e no Espírito Santo, a produção se dá no meio da vegetação nativa do bioma Mata Atlântica, em um sistema agroflorestal conhecido como Cabruca, onde a sombra das árvores e a umidade do ambiente são proeminentes para o desenvolvimento da planta.

E a diversidade da produção traz também diferentes características, explica ela. O cacau originário da Bahia, por exemplo, tem um sabor mais forte. Já o do Pará é amadeirado, algo mais doce e suave.

“O Brasil tem maior possibilidade de mostrar que é, de fato, uma nação sustentável. O Brasil é um país continental, um país dentro de vários países se comparado à Europa, por exemplo. O concurso é uma forma de trazer informações para a área técnica e uma forma de valorizar a produção de excelência”, resume Reis. 

Mercado externo

A possibilidade de participar de um concurso no exterior pode atrair os olhares o mercado externo. Como aconteceu com o João Tavares, da Fazenda Leolinda, lá pelos idos de 2010 e 2011. As amêndoas da variedade Catongo Branco, cultivadas por ele, são usadas na produção das barras da Le Chocolat, marca reconhecida do chef francês Alain Ducasse.

“Há uma tendência por alimentos saudáveis e uma busca pela redução no consumo de açúcar, e você só consegue isso com uma matéria-prima de excelência. É preciso dizer que cacau premium é comercializado por mais do que dobro na comparação com o preço pago pela commodity, o que permite que eu tenha uma relação justa com meus colaboradores. Isso é uma parte importante do processo.”

Mais recentemente, as as fazendas Paronama e Bom Tempo, no município paraense de Uruará seguiram caminho semelhante. As duas propriedades ficaram em primeiro e segundo lugar na categoria blend da primeira edição do Concurso Nacional de Cacau Especial, com amostras de Ervino Gutzeit e das filhas Eunice e Elcy Gutzeit. Fillho de Eucy e neto de Ervino, Elton Gutzeit explica que o trabalho da família envolveu investimento e convencimento.

“Em 2018, investimos em uma estrutura dos cochos e estufa para a secagem lenta. Havia uma insatisfação histórica com a natureza do cacau como sendo uma commodity, além da vontade de criar uma coisa mais original. Mas, o principal investimento foi a mudança de mentalidade para a qualidade da produção e o convencimento de todas as pessoas que trabalham com a gente sobre qual é o futuro da cultura”, afirma.

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Após o prêmio nacional, os Gutzeit criaram a marca que leva o nome da família e tiveram suas amêndoas com notas florais de jasmin selecionadas entre as 50 melhores do mundo em 2019, no Salão de Paris. Começaram, então, os contatos para negócios com a centenária Chocolat Bonnat, do chef Stephane Bonnat, da França.

“Basicamente, uma propriedade nova que faz qualidade acaba tendo que se provar aos olhos da comunidade de produtores de chocolate. Depois do prêmio, a sensação foi um ganho de respeito e de pertencimento ao futuro. A parte mais difícil foi a comercialização. É necessário não apenas encontrar alguém que compre o cacau, mas que trabalhe com o chocolate de qualidade. É uma parceria”, explica Elton Gutzeit.

Atualmente, a família produz cerca de 280 toneladas de cacau por ano em 500 hectares. Apenas 15 toneladas são de cacau fino. Mas quer mais. A perspectiva é triplicar a quantidade de cacau gourmet nos próximos anos. “O cacau é uma cultura com um potencial tremendo nos planos econômico, social e ambiental. Agrada gregos e troianos. Temos muito o que desenvolver ainda e estamos apenas começando.”

Valor diferenciado

A revigoração da cadeia produtiva e a busca por um cacau de melhor qualidade, principalmente, na Bahia, tem encontrado respaldo também da indústria nacional. No mercado desde 2017, a Dengo Chocolates, idealizada pelo co-fundador na Natura, Guilherme Leal, paga aos produtores um ágio de acordo com a qualidade das amêndoas.

Segundo a empresa, são avaliados aspectos como acidez, defeito e umidade. Mas, o critério mais importante é ter 70% das amêndoas com boa fermentação. Isso incide diretamente no aroma e sabor do cacau – o percentual da fermentação é o mesmo utilizado para o pagamento adicional os produtores, que pode chegar a 100% sobre o cacau tradicional.

O laudo de qualidade é emitido pelo Centro de Inovação de Cacau (CIC). E, se tiver certificado orgânico e possui Indicação Geográfica, o ágio pago pela empresa aos cerca de 160 cacauicultores parceiros pode ser ainda maior. No total, segundo a Dengo, pode chegar a 160% em relação à amêndoa convencional.

"Em um primeiro momento, havia uma descrença. A gente fazia reuniões para apresentar a proposta de comprar cacau de qualidade com 10 produtores e apenas um mandava a amostra para teste", pontua a gerente de Rede de Fornecedores da empresa, Andresa Silva.

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Em 2017, a meta da empresa era comprar 500 sacas de 50 quilos de cacau gourmet. "Em setembro, eu não tinha nem 150. Mas, aos poucos, foi acontecendo. A gente finalizou o ano com 800 sacas. Foi uma surpresa porque nós também estávamos descrentes e questionávamos: ‘será que isso vai mesmo dar certo?’ O produtor teve que retornar às suas origens, tirar a poeira do cocho que ele não usava mais. A partir daí, vendo o benefício de fazer uma venda com valor agregado, o movimento foi se espalhando”, explica.

Atualmente, a marca compra entre 150 a 200 toneladas de cacau por ano, com barras de chocolate distribuídas em 18 lojas próprias em todo o país. Há planos de expansão pós-pandemia, mas ideia é incentivar mais chocolaterias a comprarem o cacau de qualidade da Bahia, Espírito Santo ou Pará – ou mesmo de estados que estão despontando, como Rondônia.

“Se todos os produtores se dispuserem a fazer de cacau de qualidade, não poderemos comprar tudo. Entretanto, seguimos engajados, até para outras chocolaterias ajudarem nessa causa. Os agricultores querem essa luz para serem vistos como produtores de cacau de qualidade”, afirma a executiva.
Source: Rural

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