BR-158 tem 120 km de estrada de terra. (Foto: Fernando Martinho/Ed.Globo)
Imprevistos de viagem sempre acontecem. E nesse dia não foi diferente. Em decorrência de alteração de uma entrevista em Querência, município da região nordeste de Mato Grosso, a rota da expedição Caminhos da Safra 2019 sofreu leve alteração. A equipe da Globo Rural aproveitou a estadia em Ribeirão Cascalheira para visitar o escritório da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), cujo escritório fica na cidade. Após a entrevista com a advogada Glinia Cardoso, indigenista especialista do órgão, rumamos para Alô Brasil e Bom Jesus do Araguaia, onde está localizada uma das sete aldeias da reserva Marãiwatsédé. Em Alô Brasil, a BR-158 diz adeus ao asfalto, impondo aos viajantes 120 quilômetros de estrada de terra.
Apesar das questões ideológicas do atual governo, a maior preocupação de Cardoso é com relação à dificuldade para a liberação de recursos engessa para a Funai. A interlocução do órgão com os índios é primordial entre governo, fazendeiros e empresários para o desenvolvimento sustentável do nordeste de Mato Grosso.
A BR-080, por exemplo, uma estrada de 197 quilômetros que sairá de Luiz Alves, em Goiás, passando por Ribeirão Cascalheira, Querência e Canarana, em Mato Grosso, teve o seu traçado rejeitado pelos índios da região no ano passado, pelo fato de o seu trajeto passar por áreas de influência das reservas indígenas.
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Com a BR-158 não é diferente. Os 120 quilômetros de estrada de terra não poderão ser asfaltados. Devido à pressão dos índios xavantes de Marãiwatsédé, o governo negociou no ano passado um desvio de 185 quilômetros. “Esse desvio vai valorizar vários municípios pequenos, como Bom Jesus e Terra Nova. Serão beneficiadas muito mais pessoas do que passar por fazendas grandes e em terras indígenas. E vai ter asfalto, mesmo sendo distante será mais rápido”, afirma Cardoso.
Ela também questiona a posição do presidente do Sindicato Rural de Nova Xavantina, o produtor e consultor Endrigo Dalcin, para quem a retomada da área de Marãiwatsédé foi uma grande injustiça com os posseiros. “O comentário geral é que os posseiros vão voltar para a terra indígena. É difícil colocar na cabeça deles o direito do indígena, que não foi nada ilegal”, explica.
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em 2012, a retirada das 5 mil pessoas que se instalaram na localidade, quando o governo transferiu os índios dessa área, em 1960, para vários outras terras indígenas. Hoje, 1.200 índios vivem nesta reserva. “Eles dizem que foi a Dilma Rousseff, mas é um processo muito antigo, da década de 1960, que terminou no governo dela, mas não tem nada a ver.” A aldeia tem escolas municipal e estadual, com cerca de 300 alunos, contando com professores e coordenadores indígenas.
Da esquerda para a direita, o pajé Zezão, Cosme Rité, professor e filho do cacique Damião da aldeia Maraiwatéséd, e o seminarista e professor Elédio (Foto: Fernando Martinho/Ed.Globo)
Em Marãiwatsédsé, os xavantes estão em pé de guerra por causa da BR-158. Mesmo com o projeto de construção do desvio da rodovia, a retórica inflamada do governo de Jair Bolsonaro deixou os índios em alerta. “Estamos em risco”, alerta o professor Cosme Rité, filho do cacique Damião. Ele também conta que a relação da aldeia com os fazendeiros que a margeiam não é a das melhores. Rité diz que na aldeia Madzadze, aviões que pulverizavam plantações sobrevoaram a reserva, deixando crianças intoxicadas. Talvez, pelo fato da vitória xavante em reconquistar o território faça com que a relação com os produtores seja ruim, uma mentalidade muito questionável.
Produção indígena
Com o espírito das palavras de Fábio Tsitobrowe, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena da aldeia Sangradouro, em Primavera do Leste, que no segundo dia de nossa viagem defendeu o direito de os índios produzirem em suas terras para deixar para trás a miséria, perguntamos a opinião de Cardoso.
“Eu concordo com a posição do Ministério Público Federal, que a reserva indígena é uma reserva. A ideia de ser empresário e produzir em larga escala e ver a comunidade como miséria é questionável, porque você vive do que você produz, tem acesso ao que você precisa e tem acesso aos conhecimentos tradicionais de seu povo”, afirma Cardoso, natural do Piauí e há um ano na Funai. “E chamar isso de miséria tem que ter perspectiva na hora de falar isso. Você só chama de miséria se você confronta com o capital, porque a lógica é totalmente do dinheiro quando você vai ser empresário e ter máquina e tudo.”
A alternativa, explica Cardoso, é o desenvolvimento da economia do turismo nas aldeias, o incentivo a artesanato e atividades com produtos naturais. Em Nova Nazaré tem a aldeia Tritopa que tem iniciativas de pomar, de horta. As mulheres estão trabalhando com a castanha do baru, um projeto que a Funai vai incentivar nesse ano. E há, inclusive, agências de turismo especializadas em turismo indígena. A 120 quilômetros de Querência, já no Xingu, há uma aldeia Kisêdje na qual há produção de mel e castanha do pequi.
Em Marãiwatsédé também há discussão sobre produção própria, com o objetivo de suprir a aldeia com recursos para sobrevivência. Cosme explica que em 2016, durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff, os recursos da Funai ficaram ainda mais escassos. E os índios se uniram e decidiram arrendar parte de suas terras para pecuaristas, visto que a reserva tem apenas 30% de mata.
O Ministério Público Federal (MPF) de Barra do Garças está acompanhando o processo com a negociação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Nos pasto dos xavantes, há cerca de dez mil cabeças de gado. “A Funai está enfraquecida, não tem como atender com o que precisamos. Se é bom ou não, tivemos várias reuniões para validar esse acordo”, diz Cosme Rité. “Nós confia muito na Funai, mas poderia ajudar mais.”
“A autonomia pode ser consultado, discutido, na ideia de produção. A gente é capaz de fazer de alguma forma produzir. O governo deveria repassar um recurso para criar uma associação na comunidade onde socializa o propósito da comunidade e necessidades principais. Queremos um maquinário, próprio operário indígena. Acho que essa ideia temos condições de fazer produção para consumir e vender, gerar renda”, diz Cosme Rité, professor e filho do cacique Damião.
Wilian Alves, 31 anos, ficou dias cuidando de carga de soja tombada. (Foto: Fernando Martinho/Ed.Globo )
A questão do arrendamento de terras também é algo que a comunidade aceita discutir, mas não é muito bem vista. Ele também avalia interessante realizar um projeto de desenvolvimento sustentável, produção de artesanato. “Pode ser uma forma de produção coletiva. Hoje a mulher produz cestos, que vende para o turismo. Não deixa de ser uma forma de produzir também. Há falta de apoio”, diz Rité, mestre pela Universidade de Brasília (UNB) em Desenvolvimento Sustentável, que pode ajudá-lo a desenvolver projetos de produção sustentável na comunidade.
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Rité também agradece o apoio de ONGs, que ajudaram a comunidade a ter várias conquistas, como um projeto de mulheres coletoras. “Eu acho que a ONG aqui faz um trabalho importante, o próprio governo não quer incentivar o trabalho que a gente desenvolve: fortalecer o trabalho coletivo, a produção necessária. Isso tudo (ele mostra as árvores e plantas) tudo vem de apoio da ONG, pequi, manga laranja, jenipapo. Para nós, xavantes, é tudo apoio da ONG. O governo está aí também, com a Sesai, Funai. Mas eles estão falando que não tem recurso para dar toda assistência que nós precisamos. Se não tivesse ONG aqui nós ficamos parado. Precisamos ainda do apoio da ONG, porque se coloca do lado de nossa causa. Por isso que esse governo não quer a permanência da ONG.”
Soja de caminhão tombada é armazenada em bags improvisados à beira da estrada.(Foto: Fernando Martinho/Ed.Globo )
Dois córregos com águas cristalinas separam os 30 quilômetros da aldeia até o posto Arnon, próximo a Alô Brasil. Logo pelo asfalto, reencontramos Wilian Alves, 31 anos, que há dias está numa curva a dois quilômetros de Alô Brasil tomando conta de uma carga de soja derramada na pista após o tombamento de um caminhão. É o segundo capotamento nessa área em menos de 15 dias. Ganhando R$ 80 por dia e R$ 100 por noite para ficar alí na pista, sob sol forte sem chapéu e proteção, Alves vai fazendo bicos para sobreviver. “Ontem eu dormi na pista, nem tomei banho”, diz.
Entre Ribeirão Cascalheira e Alô Brasil, a BR-158 está passando por recapeamento, mas há ainda deformações na pista. Retornamos rumo a Querência para nossas próximas entrevistas do quinto dia de expedição.
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Source: Rural