Skip to main content

É possível manter a tradição familiar e inovar ao mesmo tempo? Quem tem a resposta é a empresária Letícia Lindenberg, que há dois anos assumiu o comando da Fazenda Três Marias, localizada às margens do Rio Doce, em Linhares (ES).

A propriedade, fundada há 85 anos pelo avô, Carlos Lindenberg, que foi governador do Espírito Santo, é uma referência na criação de gado guzerá e guzolando (cruzamento com a raça holandesa).

Leia também: Dia da Terra: sete maneiras de cuidar do solo de forma sustentável

Letícia Lindenberg, que há dois anos assumiu o comando da fazenda (Foto: Alex Gouvea)

 

A criação de gado é a atividade principal da fazenda, que vende bezerros desmamados para engorda, tourinhos da raça guzerá e fêmeas guzolando. O resultado operacional da pecuária nos últimos 20 anos foi negativo na propriedade de 5 mil hectares, onde são cultivados café, cacau, coco, milho e banana.

Ao olhar de forma holística para todo este ativo, Leticia Lindenberg estudou várias possibilidades de aumentar o faturamento da propriedade e chegou à conclusão de que era preciso mudar o sistema produtivo. A solução encontrada foi investir na integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF).

O histórico de gestão de Letícia não incluía o agronegócio. Antes da pandemia, ela era diretora do Grupo Gazeta, afiliada da TV Globo no Espírito Santo. Após décadas de relação com a mídia, a mudança da praia para o campo foi repentina, após a morte do pai, Carlos Lindenberg Filho.

Entre três irmãos, Letícia decidiu calçar botas e encarar o novo negócio. Sob seu comando, a fazenda passou por um minucioso pente-fino nas contas e ganhou uma visão empresarial. “A lógica é muito parecida com o mercado financeiro: a lavoura traz uma rentabilidade alta, mas com alto risco, enquanto a pecuária apresenta menos riscos, mas também menor retorno.”

Ser sustentável é muito mais do que ser bonzinho com o meio ambiente. Faz parte da estratégia para se manter no mercado"

Letícia Lindenberg,
Empresária rural

A fazenda nunca passou por tamanha transformação em tão pouco tempo. Quem conta isso são os funcionários da Três Marias, entre eles, Lucilena Souza Ferreira Falcão. Nascida na propriedade, onde trabalha há 24 anos como analista de recursos humanos, Lucilena não disfarça o entusiasmo com a nova gestão. “Leticia está mudando a cara da propriedade, deu mais vida, e agora tem a novidade da floresta de eucalipto.”

saiba mais

Programa constata emissão menor de carbono em lavouras de soja

Integração lavoura-pecuária acelera precocidade sexual de novilhas nelore

 

Ser sustentável, na opinião de Letícia, é muito mais do que “ser bonzinho com o meio ambiente” e faz parte da estratégia para se manter no mercado. “A pecuária, que, aparentemente, gerava resultado positivo trazia a pior rentabilidade por área”, lembra a produtora.

Quando ela decidiu inovar, a primeira hipótese foi incorporar a etapa de engorda e terminação dos bois, o que significaria abandonar a especialidade da fazenda. Letícia então cogitou a substituição integral da pastagem pelo café conilon, afinal, enquanto a taxa de lotação atualmente é de um animal por hectare, na mesma área cabem 5.500 plantas da espécie. “Se o café estiver R$ 700 a saca, numa conta baixa de 100 sacas por hectare, eu consigo faturar R$ 70 mil. Um tourinho por hectare eu vendo, quando muito, por R$ 17 mil”, explica.

Além do milho, na fazenda existem lavouras perenes como café, cacau, coco e banana (Foto: Alex Gouvea)

 

Foi, então, que ela se deparou com o conceito de integrar “o grão, o gado e o galho”. Depois de horas de estudo e consultas aos técnicos da Rede ILPF (organização formada por órgãos de pesquisa, como a Embrapa, além de empresas ligadas ao agronegócio e um banco), a empresária, convencida da eficácia do sistema para o bem-estar dos animais, decidiu implementar na fazenda. Muito em breve serão inseridas mudas de eucalipto em 622 hectares dos 3.850 hectares das áreas de pastagens. E para finalizar, em um formato inédito de contrato firmado com a Suzano, a área de floresta será arrendada à empresa de papel e celulose de forma que os riscos fiquem apenas com a Suzano. “É o primeiro modelo de arrendamento deles, então o risco para mim é nenhum. A proposta é que eles vão plantar, manejar, colher, vão me pagar um aluguel e ainda mantenho a disponibilidade de explorar dois terços da minha área com minha atividade produtiva (gado)”, descreve a empresária.  

Alzemar Veroneze, especialista em manejo florestal da Suzano, explica que o modelo de contrato convencional é o de fomento, por meio do qual a empresa fornece os insumos, enquanto o produtor é responsável pelo manejo, até vender a madeira à empresa. “A Letícia entende de gado e não precisa aprender a cultivar eucaliptos. Nós a deixamos com a expertise dela e assumimos a floresta”, esclarece.

Letícia entende de gado e não precisa aprender a cultivar eucaliptos. Nós a deixamos com a expertise dela"

Alzemar Veroneze
Especialista em manejo florestal

Veroneze explica que a integração na Três Marias se dará em um arranjo – como é chamada a disposição entre os elementos – de quatro linhas de eucalipto a cada 27 metros de pastagem, onde depois entrará em rotação com o milho e plantas de cobertura. O resultado esperado, diz ele, é o ganho de produtividade com base na experiência da Fazenda Ouro Verde, no Pará, onde se passou de 3,3 arrobas para 12 arrobas por hectare apenas com o sombreamento proporcionado pelo eucalipto.

A integração lavoura-pecuária-floresta vem despertando o interesse no Espírito Santo. Um dia de campo realizado em Nova Venécia, município capixaba onde imperam o gado leiteiro e o café conilon,  reuniu em abril dezenas de produtores também da Bahia e Minas Gerais. No encontro, promovido pela Rede ILPF, pesquisadores de diversas unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) esclareceram as dúvidas sobre como implantar o sistema.

O pecuarista Edvaldo Zon Prando, de Mucuri (BA), compartilhou que sua primeira tentativa de integrar pecuária-floresta não foi bem-sucedida, mas, por acreditar no conforto do animal, vai investir novamente no sistema. “Agora eu quero fazer bem-feito, estou tirando 150 litros de leite ao dia com 18 vacas e pretendo chegar aos 500 litros com a integração”, afirma ao dizer que também o número de óvulos da vaca aumenta no sistema silvipastoril.

Marcelo Müller, engenheiro florestal e pesquisador da Embrapa Gado de Leite,  chama a atenção para a falta de conhecimento dos produtores sobre o componente arbóreo no mosaico das fazendas. Tanto é que a segunda fase do Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC+), lançado em 2021 com metas até 2030, pretende reforçar a inserção das florestas na agropecuária, conforme complementa Renato Rodrigues, presidente do conselho da Rede ILPF.

saiba mais

Integração lavoura-pecuária recupera pastagens degradadas em Rondônia

Integração lavoura-pecuária é opção para produtor

 

Ainda assim, o investimento em ILPF está aumentando. De 2005/2006 – quando está datado o primeiro registro da integração no País – até 2020/2021, a área em ILPF no Brasil cresceu quase dez vezes. A média de crescimento é de 1,3 milhão de hectares por ano. Dados da entidade indicam que, atualmente, há 18,5 milhões de hectares nestes moldes no Brasil, após um salto de 52% de expansão da safra 2015/2016 em diante.

A meta da Rede é chegar a 35 milhões de hectares em modelo agrossilvipastoril até 2030. Renato Rodrigues considera o número factível, à medida que o país tem quase 90 milhões de hectares com área degradada e a ILPF é uma saída para a recuperação. “A ILPF tem amplo aspecto, desde ajudar o pequeno produtor a cumprir o Código Florestal e ter mais fontes de renda até atingir algo mais macro, como ajudar o Brasil a cumprir as metas de redução de gases de efeito estufa”, comenta.

Ainda assim, ele admite que aqueles interessados em iniciar a jornada de integração terão “mais pensamentos por hectare”, pois o novo modelo de negócio exige que as atividades sejam pensadas de forma conjunta e não mais individualmente.

Lucilena Souza Ferreira, analista de RH da Três Marias (Foto: Alex Gouvea)

 

A bem da verdade, é preciso dizer que a integração lavoura-pecuária-floresta não tem receita pronta. Tudo é caso a caso, mesmo de um vizinho ao outro. De certo, agricultores e pecuaristas gostariam de ter este arranjo já predisposto para apenas implementá-lo. Não é tão simples assim, mas a dedicação tem retorno. Renato, que também é pesquisador da Embrapa Solos, comenta que o ganho de rentabilidade é de cerca de 30% em relação à monocultura, além de benefícios socioambientais, como o sequestro dos gases de efeito estufa.  

Na prática, o primeiro passo é definir o que se pretende atingir com a adoção do sistema ILPF. No caso da Fazenda Três Marias, é o incremento de produtividade na pecuária de corte. Em outros casos, é possível que a finalidade seja, por exemplo, a comercialização da madeira ou o aumento da produção de leite. Em geral, Marcelo Müller explica que há dois tipos principais de arranjos: foco em pecuária com menos plantas por hectare e foco em silvicultura com espaçamentos mais fechados e mais árvores. 

É neste momento que as espécies arbóreas alternativas podem ser estudadas, conforme indica Ladislau Skorupa, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente.  “ILPF não é apenas produzir na mesma área, mas gerar interação entre elementos e o cuidado dos componentes. Com isso, é viável testar possibilidades desde que as espécies conversem”, diz ele.

Embora eucalipto não seja a única alternativa do componente florestal, o objetivo é que se tenha saída comercial e a espécie possibilite ter previsibilidade de colheita e identificar as características da madeira mais cedo do que uma espécie nativa. Ainda assim, para saber qual variação de modelo agrossilvipastoril é o ideal, deve-se levar em consideração a análise do solo, altitude da área, zona climática, capacidade produtiva da região, índice de evapotranspiração, entre outros fatores.

ILPF não é apenas produzir na mesma área, mas gerar interação entre elementos e o cuidado dos componentes"

Ladislau Skorupa,
pesquisador da Embrapa

E também deve-se fazer o seguinte questionamento: qual problema o produtor quer resolver?  Depois,  diagnóstico da área e identificação das demandas. Vale a pena mapear atores da região que possam contribuir com o desenvolvimento da integração, como entidades de fomento à pesquisa e assistência técnica. É assim, a quatro mãos, que o desenho da ILPF deve ser elaborado, para, então, buscar financiamento para implementação. Tirar o projeto do papel, no entanto, esbarra exatamente no problema da falta de assistência técnica e extensão rural públicas e crédito acessível.

A produtora Letícia Lindenberg conta que no início percebeu a resistência de outros agricultores do norte do Espírito Santo em relação à inclusão do eucalipto nas atividades da Três Marias, pois o cultivo da árvore ainda carrega o estigma de exaurir o solo e prejudicar mais do que beneficiar. “É um preconceito regional, que atrasa a expansão do ILPF”, opina.

Crispim Souza Santos, ajudante de vaqueiro (Foto: Alex Gouvea)

 

Mas há uma barreira mais grave que atinge todas as regiões do país: a ausência do cumprimento da política de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), atribuição do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Sem os técnicos agropecuários para fazer as devidas recomendações, acompanhamentos e saber auxiliar neste tipo de transição produtiva, trabalhadores do campo ficam sem acesso à informação.

O produtor que tem maior renda e pode pagar por uma consultoria particular sai na frente, mas é a realidade de poucos, e mesmo assim não significa o sucesso da ILPF, à medida que faltam técnicos no mercado que saibam olhar as produções de maneira holística e integrada.

saiba mais

A integração lavoura-pecuária-floresta está revolucionando a agropecuária do Brasil

Fundo investirá US$ 5 milhões em soja sustentável; veja projetos selecionados

 

O pecuarista baiano Edvaldo Zon Prando relata que, mesmo contratando um veterinário e ouvindo direcionamentos da Suzano, pecuária e floresta não ornaram. “O veterinário falou olhando apenas o gado, a empresa falou conhecendo mais o eucalipto. Eu fiz um pouco dali e daqui, mas não vingou. Falta assistência, a gente quer fazer (a ILPF), mas não sabe como. Não chega ninguém para conversar”, desabafa.

Assim, como todo produtor de pequeno porte, qualquer deslize pode comprometer a renda familiar e, por isso, ainda há resistência. Neste sentido, parte significativa do trabalho da Rede ILPF e Embrapa é capacitar técnicos nos conhecimentos sobre integração, para que os fundamentos sejam passados adiante. 

Aline Malta, gerente de produção agropecuária (Foto: Alex Gouvea)

 

Outro ponto que merece mais atenção, alerta Renato Rodrigues, é a questão dos financiamentos de incentivo à agricultura de baixo carbono. Ele cita como soluções já reais o Programa ABC, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e as linhas de crédito dos bancos privados. Porém, cita a importância de serem elaborados instrumentos de financiamento regionais, que se adaptem a cada realidade produtiva, bem como chama a atenção para o trabalho e a destinação de recursos dos comitês estaduais do Plano ABC.

A boa notícia é o apetite dos fundos de investimento internacionais por produções sustentáveis. Ele cita como exemplo a parceria prestes a acontecer entre a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) – instituição que fornece garantia de depósitos para o mercado financeiro americano – e a Cocamar Cooperativa Agroindustrial.

Outra possibilidade futura, mas que Renato não vê como prioridade, é a chance da ILPF ser uma porta de entrada para o mercado de carbono. Talvez o produtor não deva pensar neste tipo de crédito a curto prazo, mas certamente quem investir na integração, e consequentemente no sequestro de gases de efeito estuda e no arrefecimento do clima, poderá ter vantagens competitivas a longo prazo.  

Enquanto as regiões Norte e Nordeste são extremamente carentes de entidades de pesquisa e acesso à assistência técnica e ao crédito rural, embora sejam potenciais áreas para expansão da integração lavoura-pecuária-floresta, Estados como Mato Grosso do Sul e Mato Grosso concentram quase 5,5 milhões de hectares no sistema produtivo no país. Ainda é no eixo Centro-Oeste e Sudeste que a ILPF tem maiores chances – e área disponível – para o sistema decolar no país. 

Quer ter acesso a conteúdos exclusivos da Globo Rural? É só clicar e assinar!​

 
Source: Rural

Leave a Reply