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Com a experiência de quem representou setores produtivos na Ásia por mais de quatro anos, o professor Marcos Jank alerta para o impacto no agronegócio brasileiro do processo de “desglobalização” que está em curso no mundo, devido ao esvaziamento das organizações multilaterais e que leva à formação de coalizações, como a que teria, de um lado, Estados Unidos/Europa e, do outro, Rússia/China. Ele explica que a fragmentação no sistema internacional, com muitos países voltando a conceder subsídios e a impor barreiras às importações, para assegurar o abastecimento do mercado interno e controlar a inflação, vai exigir uma nova postura dos exportadores brasileiros, como maior presença nos mercados compradores, para mostrar que o nosso modelo é competitivo e sustentável. 

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Marcos Jank, coordenador do Centro Insper Agro Global  (Foto: Divulgação )

 

Globo Rural: Como você analisa a atual conjuntura geopolítica mundial?
Marcos Jank: Estamos vivendo um período de altíssima incerteza e volatilidade, porque ninguém esperava uma pandemia sucedida por uma nova guerra na Europa. A pandemia causou grandes distúrbios na oferta e demanda globais, não só nas commodities agropecuárias, mas também em insumos como fertilizantes, máquinas e defensivos agrícolas. E também na energia, com os preços extremamente altos do petróleo e do gás natural. No agronegócio, existe um desequilíbrio entre oferta e demanda como a gente não via há muito tempo.  

GR: E como esta conjuntura impacta o agro brasileiro? 
Jank: Existem consequências positivas e negativas. Um fator positivo é que a demanda mundial por alimentos continua firme. Cada vez mais a exportação se consolida como um vetor dinâmico do crescimento do agro brasileiro, que se dependesse do mercado interno estaria enrolado. Outro fator bastante positivo é que estamos assistindo lentamente a uma diversificação dos modais de transporte e redução da dependência que tínhamos por caminhões. Já contamos com ferrovias e hidrovias mais eficientes, que permitem escoar várias safras de maneira sequencial, sem grandes dificuldades.

GR: E qual é o impacto negativo? 
Jank: O principal é a inflação de alimentos no Brasil e no mundo. Se olharmos para o IPCA, tivemos 15% de inflação acumulada entre 2020 e 2021. A inflação de alimentos chegou 23,5%. O grupo alimentação tem sido o que mais pesa no índice. A população sente esses aumentos de preços desde o início da pandemia, num país que cresce muito pouco e que ainda sofre com a perda de empregos. Esse problema de inflação é muito crítico hoje, porque há um grande risco de assistirmos a um movimento crescente de insegurança alimentar no mundo, principalmente nos países que mais dependem de importações, particularmente o norte da África e o Oriente Médio, que têm condições desérticas e dependem fortemente, por exemplo, do milho da Ucrânia e do trigo da Rússia.

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GR: E essa insegurança alimentar no mundo preocupa? 
Jank: Temos acompanhado muitos estudos que mostram que a situação hoje é parecida com a de 2008 a 2012, quando os preços das commodities dispararam, por causa das quebras de safra e de restrições às exportações por parte de alguns países. Naquela ocasião, a explosão de preços agropecuários levou à Primavera Árabe, com os primeiros protestos vindos do mundo islâmico. Temos visto vários problemas no Egito, Líbano, Turquia, Iêmen e Líbia, além de outras regiões do mundo como Indonésia, Índia, Etiópia, Mauritânia, Tanzânia, Bangladesh e Nigéria. Na maioria desses países, o peso da cesta de alimentos é muito alto em relação à renda das famílias, até porque os preços dos alimentos são elevados e o coeficiente de importação em relação a um consumo doméstico é igualmente alto. Essa situação leva à insegurança alimentar e facilmente vira alvo de protestos nas ruas.   

GR: Então é uma volta ao passado?
Jank: De certa forma é uma volta ao passado. A pandemia e a guerra desarranjaram as cadeias produtivas globais, não só de commodities, mas também dos insumos, da energia e dos fretes. Há vários elementos ao mesmo tempo causando enorme incerteza, volatilidade e especulação. É uma situação complicada, pois, se a guerra perdurar e se polarizar ainda mais, será um “chute frontal” na globalização, que se consolidou desde a construção das grandes organizações internacionais no pós-guerra. Durante 60 anos, houve avanço na busca de livre-comércio, democracia, direitos humanos e paz. O mundo viveu um período vigoroso de crescimento. Agora, de 2000 em diante, a gente começa a ver sinais de que estamos entrando em um processo de desglobalização. 

GR: O que seria essa desglobalização?
Jank: Hoje há uma crise forte nas instituições multilaterais criadas no pós-guerra, pois não têm capacidade de coordenar quase nada. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que é tão importante na questão da abertura de mercados e redução dos subsídios e protecionismos, se tornou inoperante, porque o órgão de apelação, que é a última instância, não funciona, porque não tem juízes nomeados. Os países, principalmente os Estados Unidos, se recusam a nomear juízes para o órgão de apelação que analisa os contenciosos. Sem a OMC vira um vale-tudo, como aconteceu na guerra comercial iniciada pelo governo de Donald Trump contra a China, que gerou um acordo que desrespeita as regras multilaterais. Eu diria que o multilateralismo entrou em choque até na Organização das Nações Unidas (ONU), que hoje é inoperante para lidar com a guerra na Ucrânia.  

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GR: E quais seriam as consequências?
Jank: Estamos assistindo a uma nova fragmentação no mundo, com os países tomando atitudes como subsidiar seus agricultores e taxar as suas exportações para assegurar o abastecimento do mercado interno e derrubar a inflação, como é o caso da nossa vizinha Argentina. Aí começam os grandes desarranjos que temos visto, com vários países aumentando os subsídios e impondo barreiras ao comércio. É uma ideia que não faz sentido, porque a solução não é taxar e produzir menos, mas sim abrir os mercados e produzir mais. O que temos visto realmente no mundo é um aumento da vontade dos países de caminhar para a autossuficiência e a soberania alimentar, o que durante 50 anos se tentou eliminar. O mundo deixa de ser pautado pelo “livre- comércio”, em que ganha quem é mais competitivo, para dar lugar ao “comércio administrado”, pautado por relações políticas preferenciais entre os países.   

GR: Então o mundo estaria dividido? 
Jank: Sim, dividido em coalizões. Um exemplo é o caso da guerra na Ucrânia, pois uma das razões do conflito é que boa parte dos antigos membros da antiga União Soviética aderiram à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A Rússia leva muito a sério essa questão territorial. Então, aconteceu que a Otan ficou de um lado, com Estados Unidos, Europa e vários ex-membros da União Soviética, e, do outro, a Rússia e seus novos aliados. Logo após a invasão da Ucrânia, o presidente da China vai à Rússia e diz que os dois países terão uma “relação fraterna sem precedentes e sem limites”. O que estamos assistindo é a formação de um bloco euroasiático, que eventualmente pode incluir a Índia e outros países asiáticos.

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GR: Isso poderia prejudicar o Brasil?
Jank: O que vemos é uma situação em que, diante de um maior conflito, como no caso da guerra da Ucrânia, a China pode dar preferência para a Rússia, que caminha para ser um grande concorrente do Brasil, em setores como oleaginosas (girassol), trigo e milho, além de carnes de aves e suínos. O maior concorrente da América Latina na exportação de commodities é justamente a Rússia e o Leste Europeu, que têm um potencial agrícola extraordinário. Estima-se que a Rússia tenha pelo menos 100 milhões de hectares que podem ser incorporados à produção agrícola, além do fato mudanças climáticas favorecem a expansão em áreas frias, como está acontecendo no Canadá. Um aspecto importante é que as receitas das nossas exportações do agronegócio cresceram seis vezes de 2000 a 2020, mas os próximos 20 anos não serão fáceis, pois, caso as coalizões se consolidem, o mundo vai ficar mais polarizado e com comércio administrado.  

GR: O que se deve esperar do setor privado nesta situação? 
Jank: O mantra que venho repetindo há muitos anos é que o setor privado brasileiro deveria estar mais presente nos países que são hoje os nossos grandes clientes. O nível de representatividade do setor privado no exterior é baixíssimo, com exceção de algumas poucas empresas brasileiras que têm escritórios de representação comercial pelo mundo afora. A grande maioria, sejam produtores ou empresas, não sabe direito o que se passa com o nosso produto depois de sair dos portos brasileiros. A gente teve a felicidade de o mundo ter vindo comprar no Brasil nesses últimos 20 anos, principalmente a Ásia e particularmente a China, sem precisar se envolver muito na questão da diplomacia comercial. Nossa participação nos países compradores é extremamente reduzida quando a gente se compara não só com os Estados Unidos e Europa e Canadá, mas também com Chile, Peru, Austrália, Nova Zelândia e outros países muito menores que o Brasil no agronegócio. 

GR: A questão é só a venda de produtos ou há outros fatores importantes?
Jank: Além do aspecto comercial, temos de trabalhar muito melhor a nossa narrativa para levar fatos sobre assuntos que o mundo atualmente está cobrando do Brasil, como a questão ambiental. A questão do desmatamento na Amazônia, por exemplo, já afeta o Risco Brasil. Temos de implementar o Código Florestal, pois, se não fizermos a regularização fundiária e controle do desmatamento ilegal, não há campanha de comunicação que funcione, sem ações concretas e reconhecidas. O Brasil tem como aumentar a oferta sem desmatar, embora obviamente o produtor ainda pode desmatar dentro da lei. Eu costumo dizer que a década de 2020 será marcada por duas revoluções. Uma revolução na logística, que vai se tornar cada vez mais eficiente com a intermodalidade. E a revolução do pasto. Temos hoje 80 milhões de hectares agrícolas e 160 milhões de hectares de pastagens, o dobro da área agrícola, e possivelmente 30 milhões a 50 milhões de hectares de pastos vão se converter em agricultura no sistema de integração lavoura-pecuária.

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Source: Rural

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