Criado em 1970, ainda durante o regime militar, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é uma autarquia federal cuja missão prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. Contudo, em Senador José Porfírio, no Pará, esse papel foi deixado de lado para apoiar a exploração de ouro em 2,43 mil hectares de terras destinadas ao assentamento de agricultores familiares. Elas foram cedidas pelo órgão a uma mineradora canadense, a Belo Sun, cujo projeto é alvo de pelo menos sete ações judiciais apontando irregularidades no seu licenciamento ambiental.
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Acampamento da Belo Sun Mineração (Foto: Divulgação Belo Sun)
“O que a gente identificou é que em momento algum o Incra exerceu essa função de defender o assentamento e a reforma agrária, nos parece que ele tem agido muito nesse caso como se fosse um particular”, observa a defensora regional de Direitos Humanos no Pará, Elisângela Machado Côrtes, autora de um interdito proibitório contra a Belo Sun após denúncias de que a empresa estaria ameaçando agricultores familiares na região de Volta Grande do Xingu, no coração da Amazônia.
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“A Belo Sun colocou uma segurança armada na região e a gente recebeu vários relatos de que essa segurança armada tem maltratado e ameaçado os moradores, falando que o empreendimento vai sair de qualquer jeito. Então as pessoas ficam com muito medo, principalmente depois que essa segurança armada foi colocada lá”, conta a defensora. Antes de firmar o contrato com o Incra, a Belo Sun já vinha adquirindo terras públicas de maneira irregular na região, comprando diretamente de assentados – o que configura crime. Essa prática é alvo de outra ação, movida pela Defensoria Pública do Estado do Pará.
De acordo com a defensora pública Bia Albuquerque, a Belo Sun realizou a compra de três áreas de terras públicas federais somando 1.734 hectares “Eles fizeram essas transações como se fossem fazendas, grandes áreas rurais, mas são comunidades tradicionais que estão instaladas ali”, detalha Bia ao mencionar, entre outras, a Vila Ressaca – localizada ao lado do projeto de assentamento Ressaca que teve 1.439 hectares cedidos pelo Incra para o empreendimento.
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“Como é que o Incra aceita isso e em momento algum censurou esse comportamento da Belo Sun, apenas acatou essa compra e depois é como se a Belo Sun estivesse ainda sendo premiada com a celebração do contrato”, critica Elisângela. Em seu site, a Belo Sun afirma que possui autorização para a exploração de 160 mil hectares na região e que os trabalhos preliminares de exploração identificaram “inúmeras ocorrências de ouro e possíveis alvos futuros de crescimento que serão sistematicamente perfurados e explorados”.
Já na documentação entregue no processo de licenciamento ambiental, a empresa alega que a exploração de ouro na Volta Grande do Xingu causará impacto a uma área menor, de 1,4 mil hectares – o que motivou a abertura de uma ação civil pública pela Defensoria Pública do Estado diante do subdimensionamento do projeto. “Houve recorte apenas nas áreas em que foi proposta a instalação dos aparelhos e das estruturas físicas e em razão disso há subdimensionamento da área porque quando se vai realizar estudos de impacto ambiental precisa ser levado em conta a área de instalação do imóvel rural da empresa, não de recortes”, completa Bia Albuquerque.
Placa instalada pela empresa Belo Sun mineração em áreas de assentamento na região de Volta Grande do Xingu (Foto: Divulgação/DPE-PA)
Com o subdimensionamento, a DPE aponta que foram excluídos do estudo de impacto ambiental comunidades tradicionais vizinhas ao projeto de assentamento ressaca, incluindo indígenas da etnia Juruna e Xipaya que dependem de serviços públicos como postos de saúde e escolas situadas na área de instalação do projeto. A ação movida pela DPE aponta ainda irregularidades no Cadastro Ambiental Rural da Belo Sun, já que a área declarada pela empresa se sobrepõe a essas comunidades. Com base nessas alegações, o órgão chegou a obter uma decisão liminar favorável à suspensão da licença de instalação do projeto, revertida em segunda instância pela empresa.
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Contudo, uma outra ação judicial, movida pelo Ministério Público Federal, mantém os planos da Belo Sun suspensos atualmente. Ela questiona a falta do componente indígena nos estudos de impacto ambiental e não cumprimento da Convenção 69 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário e exige que, nesses casos, seja realizado consulta livre previa informada das comunidades tradicionais atingidas pela obra. A decisão da Justiça Federal em Altamira é de que a licença permaneça suspensa até que a empresa realize essa consulta.
Área já impactada
A consultora jurídica da Amazon Watch, Ana Carolina Alfinito, destaca que a região de Volta Grande do Xingu é uma área que já enfrenta impactos ambientais de outra grande obra, a usina de Belo Monte. A instalação da hidrelétrica, explica a ambientalista, tem reduzido a vazão do rio Xingu e seus afluentes, comprometendo a fauna, a flora e as atividades extrativistas das comunidades tradicionais que dependem dessa bacia hidrográfica.
“A gente precisa esperar no mínimo alguns anos para ver quais vão ser os impactos e o que esse ambiente suporta sem entrar em colapso porque ele já está entrando em colapso”, alerta Ana. Ironia ou não, o impacto de Belo Monte sobre a vazão do Xingu torna ainda mais conveniente a mineração da região. “Para quem quer minerar ouro, lavrar minério, é melhor que esteja mais seco mesmo. Isso baixa o nível de agua e aquele minério se torna mais acessível, tem que drenar menos o solo e as aguas subterrâneas para acessar esse minério”, explica a consultora jurídica da Amazon Watch.
Usina Hidrelétrica de Belo Monte na bacia do Rio Xingu, norte do estado Pará (Foto: Divulgação/Norte Energisa)
Na avaliação dela, o avanço da mineração ganhou força na Amazônia, em parte impulsionada por acordos como o realizado com o Incra e outros órgãos federais. “A ordem é clara: entregar essas terras para o extrativismo intensivo industrial internacional. Essa é a ordem. A ordem não é defender a reforma agrária, representar assentados, pensar o desenvolvimento social no campo. É o contrário”, denuncia a ativista ao apontar que, embora o projeto Volta Grande do Xingu exista desde o início dos anos 2000, "a velocidade, a agressividade e o caráter absolutamente autoritários com que isso tem avançado nos últimos anos" é algo novo.
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“Temos Incra e Funai trabalhando de cima pra baixo no sentido que contraria o interesse das pessoas que deveriam estar sendo fortalecidas por essas agências e um governo federal que está completamente entregue e alinhado com os diferentes setores extrativistas”, afirma Ana ao citar o Projeto de Lei 191, de autoria do executivo, que autoriza a mineração em terras indígenas e a inclusão do projeto da Belo Sun em sua Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos, chamada de “Pró-Minerais Estratégicos”.
“É uma sinalização evidente de que lado esse governo está quando ele coloca esse projeto tão repleto de ilegalidades, com oito ações correndo no judiciário, como uma prioridade estratégica e diz que vai tentar facilitar o licenciamento ambiental. O contrato com o Incra e a nomeação como estratégico dentro do PPI, tudo isso foi acontecendo ao mesmo tempo e foi então que a gente foi percebendo que é muito séria a situação, que não é brincadeira. Eles querem essa licença de instalação ainda nesse governo e farão de tudo para ter isso”, completa Ana.
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Procurado, o Incra confirmou que o seu Conselho Diretor referendou o contrato de concessão de uso de 2.428 hectares para a empresa Belo Sun Mineração Ltda, firmado em 26/11/2021 após a empresa obter autorização para instalar empreendimento minerário por parte da Agência Nacional de Mineração e órgão ambiental. Segundo o Incra, a autorização de uso refere-se a uma área que representa cerca de 3,5% do projeto e não haverá retirada de famílias assentadas, “por inexistirem beneficiários da reforma agrária no local que será afetado pelo empreendimento”. “No caso da área cedida na Gleba Ituna, a empresa deve identificar eventuais ocupantes e apresentar plano de remanejamento e indenização”, afirma o Incra em nota.
Já a Belo Sun destacou em nota que seu projeto está com a Licença de Instalação (LI) suspensa pelo TRF1 e que o licenciamento segue todos os ritos pertinentes. “A empresa está sempre à disposição das comunidades, entidades e órgãos envolvidos no processo de licenciamento e reforça seu compromisso com a região da Volta Grande do Xingu, respeitando a legislação brasileira nos âmbitos federal, estadual e municipal”, afirma a Belo Sun.
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Source: Rural