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Nascida em uma tradicional família de cafeicultores mineiros, mas com boa parte da vida profissional fora do setor, a doutora em gestão Vanusia Nogueira terá, nos próximos anos, a missão de mediar discussões e administrar interesses de países produtores e consumidores de café. É a primeira mulher a assumir a direção-geral da Organização Internacional do Café (OIC), entidade que completa 60 anos em 2023.

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Vanusia Nogueira é a primeira mulher a comandar a OIC (Foto: Breenda Rabelo)

 

Em entrevista à revista Globo Rural, Vanusia fala sobre o novo direcionamento que quer dar à OIC, levando o dinamismo do setor privado a uma entidade tradicionalmente ligada à diplomacia. "Em alguns momentos, vou precisar ser diplomata, apesar de não ser diplomata de carreira, mas levar esse ritmo do setor privado", resume. 

Para assumir o novo cargo, a partir de 1o de maio, deixará a presidência da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA). Ela atribuiu sua eleição ao respeito que conquistou no setor, nos últimos anos, e demonstra estar ciente da missão de atuar em um segmento majoritariamente masculino. 

Nesta entrevista, Vanusia fala ainda sobre as expectativas da mudança para Londres, no Reino Unido, onde fica a sede da OIC, e como tem lidado com esse processo junto à família, aos amigos e ao Brasil. "O coração, tem horas, que fica superapertado, mas é algo que vou poder fazer como uma homenagem às minhas raízes", afirma.

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Globo Rural: Atuar em um setor majoritariamente masculino não é tarefa simples para uma mulher. Quem é a Vanusia que conquistou esse espaço? Conte um pouco da sua história na cafeicultura, no mundo dos negócios.
Vanusia Nogueira: Eu vivo no café desde antes de nascer, sou neta e filha de cafeicultores. Tive uma vida característica de uma filha da cafeicultura brasileira. Era uma época em que quem decidia ir trabalhar com os pais era da turma que não queria estudar, que ia trabalhar, mexer com as propriedades, com o café. Quem queria fazer alguma coisa diferente também não tinha o menor incentivo da família para ficar no interior. Fui a primeira mulher da família do meu pai a sair de casa que não fosse para casar. Fiz engenharia de sistemas e estatística, me formei e comecei a trabalhar na área de TI. Na época, um chefe me disse que eu tinha uma veia boa para gestão e me sugeriu terminar o curso de administração. Segui trabalhando na área até que, em 2002, de volta a Minas, o pessoal me convenceu a fazer alguns trabalhos para o setor de café. Aos 40 anos de idade, fui resgatar minhas origens. Entrei no mundo do café e não saí mais. Comecei a trabalhar no mundo todo. Foi assim que passei a ser reconhecida.

GR: Como foi esse o processo eleitoral na OIC e a indicação do seu nome?
Vanusia: O meu nome foi indicado pelo setor privado e, em pouco tempo, tivemos muito apoio. É uma campanha mesmo. Eles (OIC) lançam um edital e todos os países-membros podem apresentar seus candidatos. Teve um candidato do Congo, que saiu da disputa porque não falava inglês, que é a língua oficial da organização, e ainda concorri com um companheiro vietnamita. Foi feita toda uma sondagem, e o Vietnã renunciou à candidatura para que eu fosse eleita por aclamação. A OIC vai fazer 60 anos em 2023 e até hoje apenas por oito anos não houve uma diretoria sem um brasileiro. Tive o apoio imediato da ministra Tereza Cristina (da Agricultura), do Itamaraty, da Casa Civil e do presidente Jair Bolsonaro, que fez a minha indicação oficial. 

 
GR: Você acredita que sua eleição é uma mudança de paradigma na cafeicultura e no agronegócio?
Vanusia: Com certeza. Acho que é uma demonstração de que o que vale é a competência, independentemente do gênero. Mas, nós, mulheres, primeiro, precisamos provar que somos competentes, porque, assim, os homens começam a nos ouvir e nos respeitar. Eu tenho 60 anos. É uma fase da minha vida em que só faço aquilo em que eu acredito e gosto. Apresentei tudo o que eu sou e cheguei a um ponto que dizem “que bom que é uma mulher, mas que bom que ela é tão competente também”. Não vamos cair no clichê de sermos apenas mais uma organização apresentando uma mulher.

Os homens vão poder deixar de fazer um monte de coisas que a gente faz com o maior prazer. Aceitar vai tornar a vida deles muito mais leve"

Vanusia Nogueira, diretora-geral da OIC 

GR: Você já enfrentou dificuldades simplesmente por ser uma mulher? 
Vanusia: Acaba acontecendo sim. É um setor que ainda tem muitos rituais, muitos eventos com mesas de cerimoniais. E, muitas vezes, você vê que, mesmo na posição mais alta, a mesa é formada só por homens. Mas temos de desconsiderar, porque é muito pequeno diante de todo o conteúdo que a gente tem para oferecer. O principal é brigar para ser ouvida nos momentos que são realmente importantes. Ah, não querem me ouvir? Deixo os homens falarem, vou compilando. Até que chega a certo momento, levanto meu dedinho e falo. Faço um compêndio de tudo o que concordo e tudo o que eu acho que tem de ser de outra forma. Eles param e falam, "Realmente, não pensamos nisso", e seguimos. De forma delicada, mas algumas vezes dura, mas sempre muito transparente nas minhas colocações, com muitos argumentos. Nunca concordei com aquela coisa de que eu tenho de valorizar só porque sou mulher. Tenho de valorizar porque é bom e porque eu sou muito boa no que faço.  

GR: Qual a importância de os homens tomarem consciência da importância de abrir espaço para a diversidade?
Vanusia: Em termos empresariais, está mais do que comprovado que a gente tem formas e percepções muito diferentes. A importância de que caiam esses tabus é a possibilidade da visão por diferentes ângulos. São perspectivas que, com certeza, são complementares e vão fazer com que um negócio, uma empresa, um setor, não só cresça, mas que a gente consiga esse crescimento de forma natural e tranquila. Do lado pessoal, tenho certeza de que, por essas diferenças entre o feminino e o masculino, os homens vão poder deixar de fazer um monte de coisas que não gostam, e que a gente faz com o maior prazer. Aceitar vai tornar a vida de vocês, homens, muito mais leve. Ninguém vai mudar o mundo do dia para a noite. São mudanças paulatinas. 

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GR: Quão distantes você acha que estamos desse objetivo? 
Vanusia: Depende muito do local, do setor… Me perguntaram como eu pretendia ir para países onde ainda existem restrições muito grandes à atuação das mulheres. A gente tem de ir mudando isso aos poucos, mostrando sem confrontar. Eu não tenho vaidade alguma de dizer que, em alguns países, não poderei ir porque não serei ouvida, e vou ter de ceder lugar para um homem. E a gente tem de saber conviver com essas questões. 

 
GR: Você já disse que uma de suas metas é dar um novo direcionamento para a OIC. Qual é esse novo direcionamento?
Vanusia: É o dinamismo que a gente está precisando. A OIC segue a linha de um organismo intergovernamental de caráter eminentemente diplomático. Mas o mundo, hoje, é muito do setor privado, de parcerias público-privadas. Salvo raríssimas exceções, o funding, o recurso financeiro, está na mão do setor privado. Em alguns momentos, eu vou precisar ser diplomata, apesar de não ser diplomata de carreira, mas tenho de levar o ritmo de dinamismo do setor privado, olhar para o setor privado e para os governos para que entendam que é preciso agir de outra forma, em conjunto, como uma cadeia com elos fortes.

 

GR: Como será a sua logística a partir de agora, assumindo a OIC? 
Vanusia: A sede da OIC é em Londres, e vou me mudar para lá, mas confesso que ainda não está muito claro para mim como vai ser essa dinâmica. Se eu quero juntar todo mundo, congregar todo mundo, vou ter de andar, mas terei uma base em Londres, porque é lá que fica o escritório. Eles continuam trabalhando em um ritmo de apenas dois dias por semana no escritório. Eu perguntei para o atual diretor executivo, “Vai até quando esse esquema de três dias no home office?", e ele disse, "Até quando o diretor executivo decidir". E, então, eu quero decidir junto com o pessoal que está lá. 

 
GR: E a família, eles te acompanham e se mudam para lá? Porque essa é uma questão desafiadora para uma mulher…
Vanusia: Eu sou divorciada e não tenho filhos, infelizmente. Por esse lado, sou bem livre, mas eu tenho pessoas muito queridas em Minas e no Rio de Janeiro. Tenho um desafio muito grande, que é meu pai, que tem uma doença neurodegenerativa. Ele está lúcido, mas é 100% dependente. Fui o apoio para a minha mãe durante esses últimos 12 anos, mas, agora, estou passando esse bastão para o meu irmão. Quando houve a possibilidade de assumir (a OIC), eu conversei muito com eles, principalmente com a minha mãe. E foi uma decisão nossa, um consenso. Fácil não está sendo. O coração, tem horas, que fica superapertado, mas eu acho que é algo que vou poder fazer. Eu tenho essa esperança de fazer a diferença para um setor que amo tanto. É assim que vou para lá. Com muita vontade de trabalhar, com muita raça e muitas ideias. Espero que as pessoas compreendam e entendam tudo isso.  

 
GR: E você continua fazendo parte da BSCA? 
Vanusia: Não. Eu vou me desligar, porque geraria conflito de interesses. Seguramente, eles vão continuar no meu coração. Mas na gestão, em si, não posso continuar, porque lidarei com concorrentes do Brasil e preciso ter uma posição bastante neutra. Eu assumo em 1o de maio. Até abril, estarei na BSCA. 

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Source: Rural

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