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Todos nós sabemos, mas não custa lembrar: o mundo do trabalho rural é formado predominantemente por mão de obra masculina. Tradicionalmente, no Brasil, é o homem quem vai para o mercado de trabalho e se responsabiliza pelo sustento da família.

Isso não significa que as mulheres não trabalhem. Pelo contrário, elas estão ocupadas com a reprodução social da família, ou seja, o cuidado com o lar e filhos, finanças domésticas, saúde e tantas outras coisas que sustentam o dia a dia de uma casa. E quando elas trabalham fora, acumulam as duas frentes, a da reprodução social e a da produção econômica. Corroborando essa realidade, o relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, CEPAL (2020), mostra que 92% das mulheres declaram ter realizado trabalhos domésticos não remunerados no próprio domicílio, enquanto só 78% dos homens declararam realizar essas tarefas. Essa diferença fica ainda maior quando se compara o tempo dedicado ao trabalho doméstico, que chega a 21 horas semanais para mulheres, enquanto os homens dedicam em torno de 11 horas às mesmas tarefas, segundo a pesquisa “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

O mercado de trabalho rural vem mudando nas últimas décadas, mas ainda é muito excludente para absorver a mão de obra feminina. O último censo Agropecuário de 2017, elaborado pelo IBGE, apontava a existência de 4 milhões de trabalhadores empregados no campo. Apenas 12% eram mulheres. Esse cenário não mudou nos últimos quatro anos. A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD Contínua), realizada em 2020, apontou que, dos trabalhadores assalariados no campo, que somam cerca de três milhões de pessoas, 346 mil são mulheres, cerca de 11% do total. 

Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) através de dados obtidos na PNAD Contínua, no ano de 2020, as principais atividades que absorveram a mão de obra feminina no contexto rural foram a criação de aves (30%), a horticultura (22%), o cultivo de frutas cítricas (20%) e café (19%).

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Os salários também não são equiparados para as mesmas tarefas. Ainda de acordo com os dados da PNAD Contínua 2020, o salário médio de um assalariado no campo é de R$1.214,00, enquanto o salário médio de uma mulher assalariada é de R$1.159,00. Esses valores mudam conforme a região, chegando a R$ 1.595,00 no Centro-Oeste e R$ 569,00 no Nordeste.

Quando pensamos em faixas etárias, as assalariadas rurais com idade de 20 a 29 anos representam 18% do total, entre 30 e 39 anos, 26%, entre 40 e 49 anos, são 30% e com mais de 50 anos, são 22% das mulheres.

É curioso, no entanto, que, mesmo com salários inferiores, elas possuem maior escolaridade que os homens — 6% das mulheres possuem curso superior enquanto apenas 2% dos homens cursaram universidade — 25% possuem ensino médio completo, ao mesmo tempo em que os homens apresentam um contingente de 18%.

Informalidade e invisibilidade no campo

A informalidade é também uma das dificuldades enfrentadas por elas. De acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (CONTAR), das 346 mil trabalhadoras, 48% ou, um total de 166 mil mulheres, não possuem vínculo formal e trabalham sem quaisquer direitos. Um dos graves problemas apontados por essa organização, segundo estudos e depoimentos de trabalhadoras, é caracterizar as mulheres como titulares de direitos, por exemplo, quando “residem com seus maridos ou companheiros em propriedades de empregadores, que embora desempenhem atividades típicas de uma relação de emprego, são tratadas como acessório e não tem direito sequer a receber salário”. O tema da invisibilidade das mulheres foi destacado pelo estudo “Trabalho Escravo e Gênero”, dentro do Programa “Escravo Nem Pensar” da Repórter Brasil, e é apontado como fator que dificulta as ações de enfrentamento ao trabalho escravo. 

O estudo realizado pela Repórter Brasil, entre os anos de 2003 e 2018, mostra que, dos trabalhadores resgatados do trabalho escravo em todo o país, 5,2% eram mulheres, número que sobe para 18,3% quando se analisa apenas o estado de São Paulo. Do total de 1.889 mulheres encontradas em situação de trabalho escravo entre 2003 e 2018, 59% tinham entre 30 e 50 anos, e 71,3% eram oriundas do trabalho rural, 62% eram analfabetas ou não concluíram o quinto ano do ensino fundamental. Os dados mostram também que havia uma disparidade racial relevante entre as resgatadas: mais da metade (53%) é negra, das quais 42% pardas e 11% pretas. As mulheres eram provenientes principalmente dos Estados do Maranhão (16,4%), Pará (12,8%), Minas Gerais (10,6%), Bahia (10,4%) e São Paulo (10,2%). 

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As mulheres mantêm também desvantagem na busca de trabalho e possuem alto grau de vulnerabilidade em diversos aspectos, situação que se agrava no atual cenário de mudanças climáticas. O relatório da CEPAL destaca “a situação de vulnerabilidade das mulheres, que sofrem mais os efeitos socioeconômicos associados aos impactos das mudanças climáticas. Elas são mais pobres, tanto em termos monetários quanto de tempo disponível, são sobrecarregadas de trabalho de cuidados não remunerado, têm condições de emprego, salário e contratação mais precárias, com menos direitos trabalhistas, são as primeiras a perder o emprego e/ou as suas rendas diante de situações de crises e apresentam menor representação nos espaços de tomada de decisão. Porém, continuam sendo as principais responsáveis pelos cuidados e tarefas domésticas, remuneradas e não remuneradas. Assim, diante dos efeitos das mudanças climáticas, as mulheres estão na linha de frente, pelo qual experimentam uma sobrecarga de trabalho física e mental e uma maior exposição, sobretudo no caso das mulheres em condições de maior vulnerabilidade, e um menor acesso a ferramentas e recursos para enfrentar tais mudanças”.

Todo o quadro pintado acima mostra a necessidade de ações concretas por parte dos governos, empresas, instituições e até mesmo da academia. No que depende delas, em diferentes espaços de luta e resistência, as mulheres do campo defendem seus direitos, participam de sindicatos, atuam em diferentes atividades produtivas, movimentando a economia e gerando renda e conhecimento. No entanto, essa luta deve estender-se a toda sociedade, com transformações estruturais que incentivem e garantam a equidade e a igualdade de gênero. A presença de mulheres em espaços de decisão é essencial para organizar e articular todas as reivindicações e reverter as assimetrias de gênero tão enraizadas em nossa sociedade. 

*Heidi Buzato é socióloga, especialista em questões sociais no Imaflora; Aline Fransozi é engenheira florestal, analista de geotecnologias no Imaflora; Celma de Oliveira é pedagoga, coordenadora de projetos no Imaflora e Júlia Niero Costa é estudante de Engenharia e estagiária de geoprocessamento do Imaflora

**as ideias e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva de suas autoras e não representam, necessariamente, o posicionamento editorial da revista Globo Rural
Source: Rural

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