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O cliente encosta no balcão da cafeteria e pede um pacote de café da Etiópia, torrado na hora. Também pode ser da Colômbia, igualmente disponível em embalagens de 250 gramas. E tem ainda o do Sul de Minas. O atendente pergunta se prefere torra clara, média ou escura – e em 11 minutos de deleite para quem estiver perto do torrador, aquele cheiro bom toma o recinto e o produto estará apto a ser embalado, em pó ou grãos, ao gosto do freguês. No caso de preferir moído, poderá optar por moagem fina, média ou grossa, conforme o método de extração da bebida.

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Máquina que faz a torra de café na cafeteria. Nestlé está testando a tecnologia em 19 estabelecimentos (Foto: Divulgação/Nestlé)

 

A cena não chamaria atenção nos Estados Unidos, Europa ou Japão – nem mesmo no vizinho Uruguai. Mas em Campinas, no interior paulista, cidade que, aliás, enriqueceu com o cultivo do café, trata-se de uma novidade e tanto, em discreta operação há seis meses na cafeteria independente Malabarista, há 16 anos no shopping Galleria, correndo o risco de passar despercebida.

Talvez fosse essa a intenção da gigante Nestlé, o maior grupo de bebidas e alimentos do planeta, ao menos por ora. A companhia trouxe da Europa, sem alarde, em plena pandemia e pouquíssimo movimento nas cafeterias, a linha de máquinas de torra Roastelier, lançamento mundial iniciado na Grécia, em fase de teste de marketing no mercado brasileiro desde o ano passado.

Com potencial para criar ciúme nos produtores brasileiros, a multinacional suíça, grande compradora do café nacional, pisa em ovos ao explicar o movimento. E toma todo o cuidado para diferenciá-lo do “curto-circuito” de 2014, quando os cafeicultores brasileiros estrilaram ao saber que a Nestlé pretendia importar grão verde, também da Etiópia, o berço botânico do café, para suprir sua fábrica de cápsulas em Montes Claros (MG).

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Da intenção à prática, não levou muito tempo. E, para preocupação dos produtores nacionais, em 2015, já na gestão da ex-ministra Kátia Abreu, o Ministério da Agricultura baixou uma instrução normativa autorizando a importação de café verde do Peru, medida festejada então pela indústria brasileira de café.

Na época, a reação do Conselho Nacional do Café (CNC), principal entidade de representação dos cafeicultores, foi instantânea. “O CNC entende como inaceitável e inconcebível a autorização para se importar café arábica do Peru, justamente no período da entrada de safra do Brasil, o maior produtor mundial. Esse tipo de postura é extremamente danosa ao país, pois o ingresso de grãos do exterior, quando temos café para satisfazer as nossas necessidades, pressionará ainda mais os preços da commodity para baixo, fazendo com que os produtores, já endividados, percam renda e competitividade”, afirmou o CNC em nota.

“Dessa forma, entendemos esta medida como extremamente negativa e que poderá retirar muitos cafeicultores da atividade, a qual, do ponto de vista social, é a principal geradora de empregos no campo”, concluiu, na época.

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Equipamento da Roastelier na cafeteria (Foto: Divulgação/Nestlé)

Passados oito anos, a postura do CNC segue a mesma. O que mudou foi a forma de atuação da multinacional suíça. “As restrições fitossanitárias seguem valendo, e são inegociáveis”, diz o ex-deputado federal Silas Brasileiro, presidente do CNC desde 2011, que avalia como positiva a atual iniciativa da Nestlé, ao contrário da anterior. “A nossa legislação permite a importação de quantidades pequenas de café torrado, semitorrado ou em pó. Não permite a importação do café verde, mas não pela concorrência, e sim porque pode trazer praga ou doença. Normalmente esses países não têm o cuidado que o Brasil tem, e de repente pode até dizimar a nossa cafeicultura”, afirma Brasileiro, que também foi prefeito de Patrocínio (MG), cidade líder no ranking municipal de produção.

Para o produtor mineiro Henrique Cambraia, presidente da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês), a iniciativa é positiva. “É uma iniciativa nova, com produto torrado ou semitorrado na Grécia, e pela informação que fomos buscar a Nestlé cumpriu todos os procedimentos legais e sanitários no que toca à questão de um produto importado, que no Brasil conhecemos apenas já industrializados. E se baseiam em uma portaria da Anvisa, e com o café sendo torrado a 100 graus, como estão dizendo, não traria o risco fitossanitário para o parque cafeeiro brasileiro”, avalia.

Encarregada de promover o café brasileiro de melhor qualidade, interna e externamente, a BSCA considera que os produtos da Colômbia e Etiópia ampliarão o mercado de cafés ditos especiais. “Vai aumentar a participação dos consumidores de cafés especiais, já que é uma nova experiência, sem dúvida será benéfica para o mercado de cafés especiais no Brasil. Mas talvez ficássemos muito enciumados se não tivesse o Brasil no programa [da Nestlé], já que Brasil é Brasil, e ponto”, afirma o presidente da BSCA, para quem trata-se de uma “experiência” que a companhia suíça faz para testar o mercado brasileiro de maior valor agregado.

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No ano passado, a Nestlé do Brasil importou 1,5 tonelada (equivalente a 25 sacas de 60 kg) de café semitorrado, esse que abastece as máquinas Roastelier, usando um método que interrompe a torra, realizada a 100 graus Celsius, assim que o grão perde a cor verde, indicando que a desidratação já ocorreu – e que, portanto, não há mais risco de doenças e pragas.

“A lei não permite que a gente importe café verde, mas nesse caso trazemos da Europa já pré-torrado, ou seja, torramos o café até tirar praticamente toda a umidade. E interrompemos a torra ali durante o processo de caramelização, no primeiro crack, como dizem, o que neutraliza as questões relativas à sobrevivência dos microrganismos”, comenta Janine Gonçalves, head de marketing de bebidas da Nestlé Professional, divisão responsável pelo contato comercial com as cafeterias.

A entrada no país do primeiro lote de cafés da Etiópia e Colômbia ocorreu em agosto de 2021, segundo a Nestlé, porém quase ninguém do setor cafeeiro ficou sabendo, como aliás é costume ocorrer nos testes de marketing que as empresas fazem antes do lançamento em larga escala. Hoje existem já outras 18 operações do tipo, na Grande São Paulo, mas também em Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, com o aluguel das máquinas de torra, com o fornecimento de outros itens e treinamento.

“Temos tido um feedback muito bom de donos de cafeterias, atendentes e baristas, tanto qualitativo como por dar oportunidade aos consumidores de conhecer o café de outros países. É a primeira oportunidade de levar a torra aos olhos dos consumidores, de poderem sentir o aroma e o frescor do café torrado na hora”, diz a executiva da Nestlé Professional. Ela prevê a expansão no segundo trimestre deste ano para outros estados, começando por Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro.

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Consultor da Nestlé na adaptação do projeto Roastelier ao mercado brasileiro, o engenheiro químico Ensei Neto, um dos principais especialistas em torra no país, ficou encarregado de fazer o que ele chama de “defesa técnica” junto ao mercado brasileiro. “Conheci esse método, de interrupção da torra no Japão, uns trinta anos atrás. Em regiões muito frias, próximas do Círculo Polar, como os grãos verdes possuem umidade de 11%, há o risco de a água ao congelar e ganhar volume, estourar as células do café, prejudicando a qualidade, daí a alternativa de fazer uma torra parcial”, afirma. “A torra é interrompida quando é possível preservar todas as características sensoriais do café. Porque se o grão congelar com água, ficaria aquele gosto de café molhado”, diz consultor.

Especialista em torrefação desde 2016, o economista Thiago Martinez, sócio do irmão Gustavo em uma microtorrefação em Presidente Prudente (SP), com um site de e-commerce e clube de assinaturas chamado Grão Café, também vê com bons olhos a entrada em cena dos cafés estrangeiros. “É importante porque o consumidor brasileiro em geral tem dificuldade em aceitar pagar mais por um café de qualidade. Essa iniciativa acaba fortalecendo a cultura do café e da torra”, diz Martinez.

Para os entendidos no tema, no entanto, não é o caso de tratar o café como se fosse pãozinho francês, cujo “pico de sabor” ocorre assim que ele sai do forno. No dia a dia da microtorrefação de Martinez, por exemplo, é consenso que a “janela ideal” para saborear o café recém-torrado ocorre entre o terceiro e o quinto dia após a torra, quando os grãos já liberaram o gás gerado no processo.
Source: Rural

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