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Espírito Santo do Pinhal (SP), a 200 quilômetros da capital paulista, vive uma efervescência. Conhecida como capital estadual do café, o município vem diversificando a paisagem. Além dos cafezais, quem passa por lá depara com olivais e vinhedos incrustados na Serra da Mantiqueira. A produção de uvas viníferas é algo recente, mas colocou pela primeira vez o Brasil na capa da prestigiada revista inglesa Decanter com o vinho Syrah Vista da Serra 2017, da Vinícola Guaspari, a pioneira na região.

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VARIEDADE. A uva syrah é uma das mais emblemáticas da região (Foto: Getty Images)

 

A história da vitivinicultura em Pinhal começou quando Ângela e Paulo Brito – família  controladora da mineradora de ouro Aura Minerals – compraram uma fazenda no município. Profundos conhecedores de geologia, eles encomendaram estudos e identificaram que o solo da propriedade, granítico e bem drenado, era semelhante ao de regiões da França como a Borgonha. “Daí surgiu o sonho de produzir vinho na região”, conta Fabrizia Zucherato, diretora executiva da Guaspari. 

A ideia ganhou força com a constatação de que o inverno em Pinhal, com dias quentes e noites frias, tinha o mesmo clima da época da colheita das uvas viníferas na Europa. “O dono comparava a temperatura daqui com a da França e estava igualzinho”, diz Fabrizia. A única coisa que não se encaixava era a fisiologia da videira, que se caracteriza por produzir no verão, período de chuva na região, o que favorece a propagação de doenças e prejudica a qualidade da uva.

Naquela época, o pesquisador Murillo de Albuquerque Regina estava na Epamig e conduzia uma pesquisa sobre a técnica da dupla poda, que consiste em inverter o ciclo natural da videira, possibilitando a colheita das uvas no inverno. A família Brito soube, fez contato e trouxe as nove variedades (todas francesas) da estação de pesquisa para um plantio experimental na fazenda.

GUASPARI: Fabrizia Zucherato é a diretora executiva da vinícola que provou ao mundo o potencila brasileiro de produzir vinhos tintos de guarda (Foto: Vitor Pickersgill)

 

Rótulo da Guaspari, que produz vinho em Espírito Santo do Pinhal (SP) (Foto: Vitor Pickersgill)

 

Todas se adaptaram, e dois anos depois, em 2008, foi feita uma microvinificação com a colheita das primeiras uvas. O resultado foi apresentado a especialistas franceses, que disseram que o produto tinha potencial.

O feedback incentivou a continuidade do projeto. A primeira safra oficial ocorreu em 2010, mas a entrada dos vinhos da Guaspari no mercado foi no final de 2014. Todos os rótulos são produzidosno conceito de terroir, que é adequar a variedade da uva ao talhão com características de solo, altitude (de 850 a 1.300 metros), temperatura e manejo ideais para a casta revelar seus melhores atributos.

Depois de colhidas, as uvas vão para a indústria, e cada variedade tem um rito de fermentação, dependendo do que a equipe de enologia, sob o comando do americano Gustavo Gonzalez, deseja ressaltar no produto final. Terminada essa fase, a maior parte do vinho segue para barricas de carvalho francês. O tempo de permanência varia de acordo com o rótulo.

Em 2016, com menos de dois anos de histórico comercial, a vinícola inscreveu o vinho Syrah Vista do Chá 2012 no concurso da Decanter e recebeu a primeira medalha de ouro. De lá para cá, a Guaspari coleciona prêmios que levaram à quebra de dois paradigmas. O primeiro afirmava que o Estado de São Paulo não tinha vinhos de qualidade. O segundo proclamava que o Brasil não tinha potencial para produzir tintos de guarda.

As pessoas queriam conhecer, por isso abrimos o enoturismo, com mais de 3.500 pessoas na fila de espera para visitação"

Fabrizia Zucherato, diretora executiva da Guaspari

O êxito da Guaspari despertou a curiosidade de todo o Brasil. “As pessoas vinham bater na porta, querendo conhecer, por isso, em 2017, abrimos o enoturismo, com mais de 3.500 pessoas na fila de espera para visitação”, diz Fabrizia. “Hoje, o turismo representa 50% do faturamento, uma meta que tínhamos para 2025.”

A Guaspari provocou um efeito cascacata na região. Cafeicultores e apaixonados pelo mundo de Baco começaram a sonhar em produzir seu próprio vinho. Entre eles, o grupo de cinco amigos (Cristian Sepúlveda, André Sano, Roberto Ferrari, Otávio de Luca e Edsandro Rocha) que trabalhavam na vinícola pioneira. Descompostos fenólicos essenciais para um bom vinho”, diz.

Segundo o enólogo, terroir é algo complexo. “Você tem grandes áreas e vai especificando em microterroirs à medida que encontra setores com características diferentes, com mais altitude, mais insolação, vinhedos dependendo da face da lavoura e do solo, se mais ou menos argiloso.” Esses fatores, somados à tecnologia da dupla poda, têm possibilitado a produção de um vinho de extrema qualidade. “A safra de inverno consiste em enganar a videira. Você faz uma poda em janeiro para a produção das uvas em junho e julho. E outra poda em setembro, para a formação dos ramos”, explica Sepúlveda.

GUASPARI: Alguns rótulos ficam 18 meses em barricas de carvalho francês (Foto: Vitor Pickersgill)

 

Hoje, a Vinícola Terra Nossa está com 5 hectares de vinhedos. A maior parte de syrah, uma casta deuva tinta que se adaptoubemna região. “Mas temos cabernet sauvignon, cabernet franc, malbec e chardonnay”, diz Sepúlveda. A produção da Terra Nossa está em torno de 30 mil garrafas ao ano, mas o projeto é para 50 mil. Além dos vinhos da casa, a vinícola vinifica para parceiros, como a CasaTés, do Vale da Grama, e a Vinícola Amana, de Pinhal.

Há mais de 30 projetos vitivinícolas sendo implantados na região. “Os cafés e os vinhos de qualidade consagram o município como cidade turística e têm alavancado outros empreendimentos, como novos hotéis e restaurantes”, diz Ana Cristina Campos Salles, secretária de Turismo de Espírito Santo do Pinhal.

Os cafés e os vinhos de qualidade têm alavancado outros empreendimentos, como novos hotéis e restaurantes"

Ana Cristina Campos, secretária de Turismo de Espírito Santo do Pinhal

A Vinícola Amana é um exemplo. Trata-se de um projeto de 43 sócios, alguns de Pinhal, outros de fora, mas todos com um denominador comum: a paixão pelo vinho. Em 2017, esse grupo comprou uma propriedade na cidade e deu o pontapé inicial a um empreendimento orçado em R$ 25 milhões, que contemplará 25 hectares de vinhedos, um olival, estrutura de vinificação com capacidade para 125 mil litros, receptivo para o enoturismo com loja, wine bar e restaurante.

TERROIR: o chileno Cristian Sepulveda, enólogo da Vinícola Terra Nossa, presta consultoria a vários projetos da região de Espírito Santo do Pinhal, como o da vinícola Amana  (Foto: Vitor Pickersgill)

 

O nome da vinícola é uma referência à Serra da Mantiqueira, que vem das palavras indígenas amana (chuva) e tykyra (gota).Já o capital para a implementação do projeto é proveniente dos sócios investidores. “Hoje, temos implantados 8 hectares com as variedades syrah, sauvignon blanc, chenin blanc, cabernet sauvignon e cabernet franc, todos manejados com fertirrigação”, diz Antonio Sergio Nogueira, um dos sócios da vinícola, que
está em fase de implantação e conta com a assessoria de Cristian Sepúlveda.

Como a produção de uvas viníferas de inverno é algo novo na região, toda a adequação da tecnologia tem sido feita de forma empírica. No entanto, a Amana firmou um convênio com o IAC (núcleo de fruticultura de Jundiaí), que está conduzindo ensaios com diversas variedades
viníferas em diferentes porta-enxertos. “Eles descobriram, por exemplo, que quem plantou a cabernet sauvignon no porta-enxerto europeu, paulsen, não conseguiu uma boa produção, porque ela não vegeta o suficiente para a colheita em julho. Por isso a colocaram em portaenxertos tropicais, o IAC 313 e o IAC 572”, diz Nogueira.

Enquanto o projeto arquitetônico da vinícola não começa, a Amana tem feito seu vinho na Terra Nossa. “Mas o projeto paisagístico está na fase final, e estamos realocando a infraestrutura técnica e de serviços para uma outra área, o que possibilitará o início das obras da vinícola propriamente dita e do complexo turístico em março deste ano”, conta Nogueira. O plano dos sócios é inaugurar o complexo turístico no segundo semestre de 2023 com diversas opções de passeios, visitas guiadas e degustações para os visitantes.

VISTA PRIVILEGIADA: Jeyson Ferreira, da Vinicola Mirantus, que organiza piqueniques e eventos para turistas no parreiral, tem o projeto "Uma vinícola para chamar de sua"  (Foto: Vitor Pickersgill)

 

Por sinal, o turismo é peça fundamental para os empreendimentos vitivinícolas na região fecharem no azul. Isso porque o custo das uvas de inverno é o dobro de quem produz no verão. “Você tem dois manejos agrícolas para uma única produção”, diz Fabrizia. O preço médio do vinho de entrada das vinícolas é R$ 150.

Esse cenário faz com que os projetos da Serra de Mantiqueira se encaixem no conceito de vinícola butique. “São empreendimentos pequenos, com alto padrão, pouca produção e muita qualidade”, diz Sepúlveda. “Diferente das produções no Chile e na Argentina, onde são
megaindústrias concentradas nas mãos de poucas pessoas, aqui os negócios são pulverizados.”

O turista só encontra aqui uva e café na mesma região. Em nenhum outro local ele vai encontrar as duas culturas"

Cristian Sepúlveda, enólogo e um dos sócios da Terra Nossa

Cada projeto tem seu “modus operandi”. A Vinícola Mirantus, por exemplo, está situada a 1.300 metros de altitude e têm a vista mais privilegiada da região. Isso levou Jeyson Ferreira, CEO do projeto, a iniciar o turismo com vinhos de parceiros, já que a primeira colheita
do seu vinhedo será este ano. O empresário organiza piqueniques e eventos no parreiral e tem a iniciativa “Uma videira para você chamar de sua”.

Trata-se da adoção de uma parreira por um ano-safra no valor de R$ 500. “A pessoa vem, escolhe sua planta e tem aulas teóricas e práticas. Pode acompanhar o desenvolvimento da videira e aprender tudo sobre terroir, dupla poda e desbrota. E, quando a planta der frutos, o adotante receberá uma garrafa de vinho com seu nome no rótulo”, explica Ferreira, que nos
próximos meses irá inaugurar um wine bar e quatro suítes no local.

Na visão de Sepúlveda, o Sudeste brasileiro é um lugar único no mundo. “O turista só encontra aqui uva e café na mesma região. Em nenhum outro local ele vai encontrar as duas culturas”, diz. E fora o turismo rural, o visitante pode se deliciar com a rica gastronomia
do interior paulista e viajar na história do Brasil, conhecendo o patrimônio arquitetônico de Espírito Santo do Pinhal, que tem edificações do século XIX.

Serviço
loja.vinicolaguaspari.com.br
vinicolaterranossa.com.br
@vinicola_mirantus
@vinicola_amana

*reportagem publicada originalmente na edição 434 da revista Globo Rural (fevereiro/2022)
Source: Rural

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