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Seja a dança dos indígenas na Amazônia, sejam as orações dos fiéis no Pantanal, a esperança na chuva transcende o aspecto físico e passa a ser um pedido aos deuses. Rezadeiras se reúnem em Poconé, a 100 quilômetros de Cuiabá (MT), para pedir aos céus que o Pantanal seja inundado novamente pela água que faz rebrotar as pastagens, hidratar o gado e lavar a alma.

MARCAS DO OURO. Crateras formadas pelo garimpo e, ao fundo, a cidade de Poconé, porta de entrada do Pantanal mato-grossense (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

 

Também os peixes retornam em maior abundância, e é para isso que Maria Benedita Gertrudes Moraes Martins reza. Tão grande quanto seu nome é a fé da pantaneira, que carrega numa cesta as poucas piranhas recém-pescadas. A saída foi pescar no lago que se forma à beira da ponte que cruza a rodovia MT-060, mais conhecida como Transpantaneira. “É rezar para chover, porque sem Deus nós não somos nada”, diz ela.

Na opinião de Benedito Francisco da Silva, de 78 anosa, a religiosidade já foi mais forte. “O pessoal saía em procissão, para molhar a cruz, mas agora acabou esse tempo. Minha mãe mesmo juntava com umas mulheres e saía rezando. Muitas vezes chegava em casa e já chovia, ficava alegre e molhada”, ele lembra, sorrindo. 

Enquanto uns pedem aos céus, outros procuram a solução na terra. Luiz Vicente Campos é pantaneiro, filho de fazendeiro, e atualmente vive do turismo na Pousada Pouso Alegre, também em Poconé. Das queimadas do ano passado para cá, no entanto, ele se mantém com as reservas que fez, nos tempos de cheia no Pantanal.

Não foi falta de vontade, havia equipe, aviões com água. Mas se nem o rio controlava o fogo, que diár com aceiro"

Luiz Vicente, pantaneiro e dono de pousada

Para que o fogo não consuma ainda mais a região, várias instituições têm se unido para evitar que os incêndios se alastrem como em 2020, quando 26% do bioma virou cinzas. Só que agora a seca na região deve ser a pior dos últimos 50 anos e o cenário está ainda mais crítico: maior risco de fogo e menos água para apagá-lo. 

"Nós não sabemos se será só este ano ou mais  dez anos de seca, assim como daqui a dois anos pode ter uma inundação", diz Cátia Nunes da Cunha, coordenadora do Núcleo de Estudos Ecológicos do Pantanal da UFMT (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

“O fogo que piora a situação não é um fator ecológico, mas adicional, que encontra uma condição ambiental muito ruim, que é a seca. Aí propaga de uma forma que fica difícil de controlar”, diz Luiz Vicente. Como exemplo, ele conta que existem áreas em que 40%das árvores morreram depois dos incêndios e, este ano, mesmo sem o fogo, outras espécies já começam a padecer.

Apesar de ser característica da região, a estiagem exacerbada assusta até os pantaneiros mais antigos. Luiz Vicente lembra que o pai, em 1967, assistiu ao fogo cruzar o Pantanal e houve uma luta incansável para que as propriedades não se reduzissem a pó.

Em 2020, bombeiros, fazendeiros, voluntários e ONGs se esforçaram por dois meses e perderam a batalha. O fogo traiçoeiro “pulava o rio”, narra Vicente, passando por cima das águas e atingindo o outro lado da mata. “Não foi falta de vontade, havia equipe, aviões com água. Mas se nem o rio controlava, que dirá com aceiro”, diz Luiz Vicente.

O pantaneiro recorda que era preciso deslocar-se pelo menos 80 quilômetros para chegar até o Rio Cuiabá para captar água e levar até o foco de calor. Em julho deste ano, o rio estava apenas com 1 metro de profundidade.

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Sem as águas de janeiro para inundar o Pantanal, como canta Sérgio Reis na música "Comitiva esperança", pouco há de esperança para apagar o fogo que se inicia na região. Conhecido por uma atuação relevante no combate aos incêndios, o Sesc Pantanal viu 94% de sua Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) queimar no ano passado. Ao todo, a RPPN tem 107.996 hectares, sendo a maior reserva particular do Brasil. 

Christiane Caetano, superintendente da unidade, lembra de sobrevoar a região e avistar labaredas de 30 metros de altura. “Se o fogo for como no ano passado, talvez o maior incidente seja a falta d’água”, ela lamenta.

Ao caminhar pelo leito seco do rio, próximo a uma água verde, com aspecto sujo, é nítida a escassez para tudo, consumo, animais e combate ao fogo. “Água como refúgio para os animais, para escaparem do calor e fumaça, não vai ter”, afirma.

Pouca ajuda vem do governo, segundo Luiz Vicente, por isso, a solução é apelar para poços artesianos e, se tiver a oportunidade, usar um tanque-pipa para garantir água. Já no caso do Sesc Pantanal, o investimento é em formar equipes de brigadistas, preparados pelo Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Mesmo assim, Christiane revela o medo: “Não adianta termos equipes bem treinadas se não tiver água”.

TRANSPANTANEIRA. Um pequeno lago é o que resta do Rio Maneta sob a ponte da rodovia MT-060, em Poconé (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

 

Nem deu tempo de se recuperar do trauma do ano passado, e o fazendeiro  Francisco Campos, que viu 70% de sua propriedade, em Porto Cercado, queimar, relata incêndios na região novamente. "Há muita matéria orgânica, como palhada e madeira, espalhada pelos campos e que serve de combustível para o fogo. De dois anos para cá, não tem mais alagamento no campo. Está tudo sujo do fogo. Este ano, choveu 30% do esperado, foi garoa. O que sobrou é erva invasora, que tomou conta das pastagens”, conta.

O reflexo foi o pior possível: vender 300 das cerca de 500 cabeças de gado que tinha. A falta d’água foi fator decisivo na hora de abrir mão dos animais. Não tem água nem para hidratar o gado, nem para crescer a pastagem. “O fogo é a pior coisa que existe. O povo diz que é a gente que põe fogo, mas ele é nosso maior inimigo. A maioria do fogo sai da beira da estrada”, defende.

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Em outros casos, o gado não precisou ser vendido, mas teve de ser realocado para não morrer de sede e fazer o famoso papel de boi bombeiro. Foi o que aconteceu na região de Porto Jofre, onde uma área não pegou fogo em 2020, mas agora representa perigo. Elizeu Evangelista, gerente da Fazenda Jofre Velho, repete que o mato alto é propício para alastrar as chamas.

Para que isso não aconteça, algumas cabeças de gado da região de Porto Cercado foram transferidas para “o Jofre”, como dizem os locais, para se alimentar do pasto a que Elizeu se referiu. “No meu entender, essa comparação com boi bombeiro pode ser boi, pode ser cavalo, mas tem de ter algo para comer esse capinzeiro. Se isso aqui secar e não tiver nada para retirar, isso aqui vira um combustível e o fogo fica incontrolável”, comenta o pantaneiro.

De dois anos para cá, não tem mais alagamento no campo. Este ano, choveu 30% do esperado, foi garoa"

Francisco Campos, fazendeiro de Porto Cerrado

Há quem acredite que esta seca já estava prevista por Doninha do Caeté, uma conhecida vidente de Poconé, que dizem ter pressagiado a estiagem severa que ocorre atualmente. Nascida como Laurinda Lacerda Cintra, Doninha ficou conhecida pela atuação comunitária e religiosa na década 1930, tendo registros de previsões futuras e curas milagrosas. Contos da região espalham até hoje que um dos presságios dela é o de que a ganância do ser humano faria mal à natureza. Os pantaneiros relacionam essa visão
com o garimpo que se alastra no município mato-grossense e suja o pouco de água que aparece no lençol freático.

SECA. Christiane Caetano, dirigente do Sesc, mostra baixo nível do Rio Maneta (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

 

Para quem é adepto da ciência, há um outro argumento que aponta para as secas cíclicas no Pantanal. Assim como Luiz Vicente referiu-se ao pai em 1967, a coordenadora do Núcleo de Estudos Ecológicos do Pantanal (Nepa) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Catia Nunes da Cunha, lembra que uma grande seca acometeu o bioma entre os anos de 1963 e 1973.

Na infância, ela lembra que “via mulheres rezando, chorando, por causa do fogo, da seca, que matava animais, e tiveram de fazer poços artesianos para água dos animais domésticos e silvestres”. Com o passar do tempo, a pesquisadora diz que o Pantanal se constitui de ciclos e, com isso, secas mais severas podem acontecer.

Ela considera que há poucos estudos a respeito, mas o avanço das mudanças climáticas, do estudo do clima e a própria descoberta dos rios voadores – corredores de umidade vindos da Amazônia que formam as chuvas no Brasil central – mostraram que esse ciclo é real, de efeito plurianual. “Esses ciclos, não só o anual, mas o plurianual, moldam toda a paisagem na cobertura vegetal. Não a paisagem física, mas a cobertura vegetal.” 

Rezadeiras do pantanal (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

 

Catia revela que o Rio Paraguai já havia descido muito em 2018 e, com isso, a grande produção de biomassa se reverteu em fogo em 2019 e ainda mais em 2020. “Tudo em termos de clima já dizia que esse fogo iria acontecer, pelas condições favoráveis, como árvores secas, excesso de calor, falta de umidade, e chegou onde chegou”, diz, ao lembrar da calamidade. “Mas a gente da ciência já sabia que esse período de seca extrema aconteceria”, admite. “Nós não sabemos se será só este ano ou mais dez anos de seca, assim como daqui a dois anos pode ter uma inundação. Foi assim na década de 70, e pegou todo mundo de surpresa em 1974, que teve uma inundação calamitosa. Os dois extremos são problemáticos”, ela diz.

É por também compreender os ciclos da natureza que José Luiz Cordeiro, pesquisador e coordenador do Grupo de Estudos em Vida Silvestre (GEVS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que a fauna e a flora do bioma são adaptadas à seca, “mas os eventos extremos são o problema”. Foi ele quem coordenou um grupo de cerca de 20 pesquisadores voluntários, em parceria com o Sesc Pantanal, para identificar os animais mortos pelos incêndios do ano passado.

Cordeiro conta que, depois do fogo, foram mapeadas 51 espécies de grande porte vivas, mas medir tudo com exatidão é muito difícil. “É possível perceber que a fauna estámuda. E mesmo os animais que ainda estão vivos, talvez exista um  agravamento do sistema pulmonar, por causa da fumaça dos incêndios”, observa. Mesmo assim, ele se mostra otimista ao dizer que o Pantanal não morreu e é preciso entender que a prevenção ao fogo é a melhor alternativa. 

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Em paralelo ao ciclo climático, há ainda o ciclo migratório, que alguns pantaneiros também acreditam ser motivo para a intensa estiagem. Catia Nunes da Cunha, da UFMT, afirma que “tudo é mosaico no Pantanal” e, por isso, o manejo precisa ser adaptativo e sustentável. Mas quem vem de fora não parece entender. Prova disso, segundo ela, é a falta de conhecimento sobre a criação em áreas úmidas e que, em vez disso, “as pessoas querem o que está mais fácil, lá na loja, para trazer para cá”.

De acordo com a pesquisadora, quem arrenda pasto diz que há excesso de cabeça de gado e permanência maior que a capacidade suporta, então a qualidade do pasto fica comprometida. “Um fazendeiro de gerações sabe da capacidade de suporte, mas hoje são empresários que querem botar o boi para render”, diz. 

Enquanto escova a crina do cavalo, Wesley Júnior, de 17 anos, vê o que não gostaria: “Estão querendo transformar o Pantanal em cidade”. “Se deixar o Pantanal ser o Pantanal, acho que a seca diminui um pouco, vai ter mais água, não vamos passar tanta dificuldade como agora.”

SEDE. vaca enfraquecida pela fome morre onde era um reservatório de água que deveria estar inundado (Foto: José Medeiros/Ed.Globo)

 

FOME. Jacarés buscam o que comer nas águas que ainda restam do rio Maneta, em Poconé (MT) (Foto: José Medeiros/Ed. Globo)

 
Source: Rural

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