Skip to main content

O baiano Itamar Vieira Junior realizou um feito que raramente acomete a literatura brasileira. Torto arado, romance lançado simultaneamente em Portugal e no Brasil em 2019,
arrebatou a crítica e o público, colocando em cena duas irmãs que vivem em condições de
trabalho escravo e populações do campo espoliadas.

Sua obra de estreia, vencedora de alguns dos mais cobiçados prêmios literários de língua portuguesa, como o Leya, o Jabuti e o Oceanos, já vendeu mais de 170 mil cópias. Agora, enquanto Torto arado continua no topo das listas dos mais vendidos, o festejado escritor soteropolitano volta com um novo livro, Doramar ou a odisseia (Todavia), uma coletânea de contos, mais uma vez, protagonizados por excluídos e ambientados em cenários rurais. Itamar está apenas começando.

Itamar Vieira Junior, premiado autor de Torto Arado e Doramar ou a odisseia(Foto: Divulgação)

 

GLOBO RURAL: Doramar ou a odisseia reúne uma produção anterior a Torto arado, mas os contos também se inserem no universo das populações excluídas do campo. Gostaríamos que comentasse essa opção de sua literatura. 
ITAMAR VIEIRA JÚNIOR: O meu interesse por esse público advém justamente do meu trabalho, da minha atividade, mas não só isso. Remonta a lugares que ocupei, a lugares que minha família ocupou durante muito tempo. Então é um tema e personagens que mesão familiares desde sempre. Para mim, émuito natural falar sobre eles. Eu penso que, talvez por uma ausência, uma falta de habilidade mesmo, seria estranho se falasse de outros personagens. Se eu contasse a história, por exemplo, de um político ou de um grande proprietário de terra, talvez não tivesse a capacidade dedesenvolver personagens com essa natureza. Pela falta de convivência.

GR: Você se refere ao seu trabalho como analista no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra)?
VIEIRA JÚNIOR: Sim, meu trabalho no Incra é voltado para um público muito específico. Essa atividade, com certeza, influencia de maneira decisiva na minha narrativa, pela experiência que eu pude adquirir, trabalhando há mais de 15 anos andando pelos campos. Trabalhei no  Maranhão. No Estado da Bahia, continuo trabalhando. E viver esse país do campo, esse Brasil do campo, foi de fato um privilégio que abriu portas e possibilidades para que eu pudesse entender ainda mais a nossa constituição histórica, o nosso país.

Leia mais Entrevistas no site da Globo Rural

GR: Qual foi a experiência no campo que mais te marcou nesse trabalho?
VIEIRA JÚNIOR: É difícil contar uma só. Eu já fiz muitas ações no Incra, passando pela  documentação de produtor rural, assistência técnica para trabalhador rural, até regularização de territórios quilombolas. Ou seja, muitas experiências me marcaram de inúmeras formas. Eu acho que elas aparecem nas minhas narrativas. E estão ali diluídas em meio à imaginação. 

GR: Um dos aspectos que chamam a atenção na sua obra é o apuro da linguagem. Poderia falar sobre a influência da linguagem oral na sua escrita?
VIEIRA JÚNIOR: Tem uma influência muito proeminente. Eu sou geógrafo formado pela Universidade Federal da Bahia. Minhas primeiras experiências de campo foram na  universidade. Nesse percurso, pude encontrar muitas pessoas, muitas histórias. Às vezes, eu era provocado a gravar histórias, gravar entrevistas, anotar, sempre com caderno de campo, informações relevantes, inclusive para o trabalho administrativo, para instruir processos. Passava horas transcrevendo as histórias, e essas informações foram utilizadas para a minha tese de doutorado no programa de qualificação no serviço público. Fiz muitas transcrições e fiquei muito impressionado como aquelas histórias eram narradas, como tinha harmonia, tinha uma beleza muito própria. E vi que ali havia um poderoso projeto estético mesmo, literário.

saiba mais

É preciso considerar os ciclos da natureza, não a urgência monetária, diz Ailton Krenak

Novo livro de Itamar Vieira Junior destaca vida no campo e povos originários

 

GR: Você acredita que falta às pessoas das cidades compreensão sobre os desafios do campo?
VIEIRA JÚNIOR: Com certeza. Meu pai, meus avós, meus bisavós eram lavradores, não tinham sequer terra. Trabalhavam em terra alheia como em Torto arado. Então, essas memórias familiares em relação ao campo sempre fizeram parte da minha vida, mas eu nasci e cresci em uma cidade grande, Salvador, e acho que as pessoas nas cidades vivem um tanto alienadas do que é o Brasil, do que é esse país. Elas não têm dimensão da importância do campo. Nem da atividade agropecuária, nem da atividade agrícola e dos povos do campo, inclusive na conservação ambiental.

GR: Também há incompreensão sobre as desigualdades no campo, não?
VIEIRA JÚNIOR: E eu acho que tudo que se passa pelo país, boa parte das nossas desigualdades, das nossas diferenças, surge no campo. Inclusive, porque o passado do Brasil está muito presente no nosso cotidiano, no dia a dia, seja pelas permanências, pela falta de acesso à terra que permanece para muitas camadas da sociedade. E aí eu falo especificamente no campo e em comunidades tradicionais, comunidades étnicas, como as comunidades indígenas e quilombolas, que continuam à parte nesse processo. Elas sofrem com essa espoliação permanente de seu território. O Brasil fez uma opção no passado por essa lei de terra, que é uma lei muito excludente. Só quem tinha dinheiro poderia ter o domínio da terra.

Eu nasci e cresci em uma cidade grande, Salvador, e acho que as pessoas nas cidades vivem um tanto alienadas do que é o Brasil

Itamar Vieira Júnior, escritor

 

GR: Você obteve enorme sucesso em meio a uma produção literária majoritariamente urbana. Como seu trabalho se insere nesse contexto? 
VIEIRA JÚNIOR: De fato, era uma ausência que eu percebia na nossa literatura contemporânea. Mas é aquela máxima que a (escritora estadunidense) Toni Morrison disse: quando você procurar por um livro para ler e não encontrá-lo, escreva-o. Trabalhando há tantos anos no campo, eu deparei com essa ausência. Como admirador de literatura, e estou sempre lendo e descobrindo coisas novas, eu percebia que era uma lacuna, que era uma ausência. Daí também é a minha vontade de explorar esse campo. De contar essa história, de dizer que esse Brasil ainda vive, e que esse Brasil ainda é muito importante para o que somos. Se a gente quer ser uma sociedade mais justa, mais humana, a gente deve olhar para o campo também.

GR: Você já disse que, ao escrever Torto arado, leu muito a literatura regionalista, sobretudo o romance da geração de 1930, que também tinha esse olhar. 
VIEIRA JÚNIOR: A influência dessa geração vem mais para a escrita literária, mas também é uma influência sobre o olhar sociológico que aqueles autores deram para esse tema, que é muito interessante. Porque é pensar a literatura não apenas em si, mas como um veículo para comunicar algo relevante para uma sociedade. Ainda que essa não seja a função da literatura. Mas os leitores podem dar um sentido a essa expressão artística também.

saiba mais

Brasil é "inevitável" em debates ambientais apesar de Bolsonaro, diz cientista político

“A fome é o limite dos limites”, diz Drauzio Varella sobre avanço da Covid-19 no Brasil

 

GR: A sua obra tem essa ligação com o sertão baiano. Com o avanço da fronteira agrícola na região, o senhor percebeu transformações na paisagem? 
VIEIRA JÚNIOR: As transformações ocorrem em um tempo impensável. Até para a gente que está tão acostumado a mudanças. A cidade muda o tempo todo. Como a gente está  confinado, muitas das atividades foram suspensas. A gente não tem ido a campo. Eu ando com medo de saber, quando voltar, como é que vou encontrar as coisas. E uma  transformação muito agressiva termina espoliando comunidades inteiras de seus direitos. Há um embate a todo tempo sobre a necessidade de uma visão desenvolvimentista, que nunca foi abandonada por nenhum governo. Vale a pena a gente dizer. Nenhum dos governos que passaram pelo Brasil teve essa sensibilidade de entender que esses projetos terminavam extinguindo comunidades inteiras.O camponês tem uma percepçãomuito acurada do ambiente. Eles precisam ser mais ouvidos, para que a gente possa avançar. Ao mesmo tempo modernizar e garantir uma modernização para todos., que acolha todos. Que também não agrida o ambiente deles. 

Capa do novo livro de Itamar Vieira Junior (Foto: Divulgação)

GR: Como o senhor vê a presença do agronegócio no campo?
VIEIRA JÚNIOR: Embora eu seja contrário a muitas coisas, como o uso disseminado de agrotóxicos, compreendo a importância do agronegócio para a balança comercial brasileira. É importante para o país. Mas há um desequilíbrio nas existências do campo. Acredito que o agronegócio pode coexistir com outras formas de produção agrícolas, inclusive as do pequeno agricultor, a das comunidades tradicionais. Minha fala não é contra essa atividade econômica, mas ela deve ter, o que já existe no nosso país, marcos regulatórios. E o que está descoberto deve ser sempre coberto por legislação, para que essa atividade não gere danos irreversíveis para a fauna e para a flora e, principalmente, para os seres humanos, para as pessoas que vivem no campo. Para que as duas atividades coexistam, o Estado tem de estar muito presente, porque o Estado é o mediador entre aqueles que têm o poder econômico e aqueles que estão mais vulneráveis, que não têm. Para garantir, inclusive, a dignidade, a redistribuição de terras, o fomento para a agricultura dos pequenos agricultores. 

GR: O trabalho é um forte elemento constitutivo de sua obra. Por quê?
VIEIRA JÚNIOR: Todos os dias, praticamente, a gente lê notícias de trabalhadores resgatados em condição de escravidão. Não por acaso, aparece em Torto arado, porque é algo que me deu um tanto de revolta quando descobri que ainda existia. Da mesma forma, foi algo chocante quando eu fui para o campo e encontrei pessoas vivendo em regimes de servidão. É algo muito presente, muito marcante no campo. Não é um tema para ser discutido na literatura. Ela não tem a função de discutir nada. Mas é um tema que deve voltar e não deve abandonar a pauta política. Porque eu acho que todos nós devemos ser abolicionistas enquanto o último ser humano não estiver livre.
Source: Rural

Leave a Reply