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Com a terceira maior produção de soja e o segundo maior rebanho de bovinos da região Norte do país, Rondônia é um Estado que tem se destacado na agropecuária. Em 2020, as exportações do agronegócio na região cresceram 9%, atingindo R$ 1,3 bilhão – R$ 1,15 bilhões em produtos do complexo soja e carnes.

Esse avanço, contudo, está longe de ser pacífico. No último ano, o Estado teve o segundo maior aumento no número de conflitos por terra na região Norte, com 133 ocorrências – 62% a mais do que em 2019, segundo dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc), mantido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Polícia Militar de RO durante Operação de Patrulhamento Rural em Chupinguaia (Foto: Divulgação/PM-RO)

 

“Essa região é um barril de pólvora justamente porque ainda há muita terra púbica não destinada e essas terras públicas estão na mira tanto de grandes quanto de pequenos especuladores”, avalia o pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Afonso Chagas.

Ele lembra que mais de 60% do território rondoniense é composto por terras da União. "Muitas dessas áreas foram arrematadas em processos licitatórios para fazer especulação imobiliária depois. E o que acontece hoje? A fronteira agropecuária avançou e essas áreas, que são todas mais próximas do escoamento, aumentaram de valor”, completa Chagas.

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Amazônia

A história de Rondônia se repete nos demais Estados da Amazônia Legal, ocupados na década de 1970 sob incentivo da ditadura militar. Além de assentamentos de reforma agrária, também foram criados contratos de alienação de terra pública com empresas e grandes produtores da região Sul e Sudeste, que em troca deveriam implementar projetos de exploração econômica da terra.

“A maioria dessas pessoas que recebeu esses lotes abandonou. Não deu destinação social e não cumpriu as cláusulas contratuais, fazendo com que essas áreas voltassem ao patrimônio da União”, explica o procurador do Ministério Público Federal, Raphael Bevilaqua.

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Não à toa, os Estados da Amazônia Legal concentraram 62,4% dos conflitos por terra registrados em 2020 e mais de 83% dos assassinatos relacionados a questões fundiárias do país nesse período.

Entre os casos mais chocantes, está a morte do líder indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau, encontrado morto a pauladas em abril do ano passado numa estrada do Distrito de Tarilândia, no norte de Rondônia. Segundo a CPT, indígenas e quilombolas foram alvo de 59% das ações de violência no campo no último ano.

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Risco de novo massacre

“Tem muita coisa muito grave acontecendo e a repressão é muito forte. Eu nunca vi isso. Desde que cheguei em Rondônia, nunca vivi uma situação para o povo do campo como esta que está acontecendo agora”, desabafa o coordenador da CPT em Rondônia, Adilson Alvez.

Com 50 anos, ele ainda lembra dos tempos do massacre de Corumbiara, em 1995, quando uma ação de reintegração de posse gerou a morte de 12 pessoas na região. O caso foi o primeiro após a redemocratização do país e levou o Brasil e Rondônia a responderem na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA) por violação do direito à vida e dos direitos humanos.

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“Tem muita ocupação em terra púbica ainda que pode sofrer despejo e o povo pode se revoltar, sim. Eu temo que hoje a gente está vivendo pior que a época do massacre de Corumbiara. A tensão é maior”, relata o coordenador regional da CPT. Ele estima que uma única ação em julgamento na Justiça Federal represente risco a 30 mil hectares de assentamentos de reforma agrária já demarcados.

O processo reúne demandas repetitivas no Estado questionando a anulação dos Contratos de Alienação de Terras Públicas inadimplentes feitas pelo Incra ainda em 2008. “Se isso acontecer, essas áreas vão ser tituladas para pessoas que nunca tiveram a posse, com contrato inadimplente, e o que é mais grave ainda: em terra pública”, alerta Alvez.

Violência Estatal

O pesquisador da Unir, Afonso Chagas, também compara o momento atual do Estado com a época de Corumbiara. Segundo ele, paralelamente à violência privada, protagonizada por milícias armadas, o uso das forças policiais em operações de reintegração de posse baseadas nesses títulos também tem crescido em Rondônia. 

"Quem cumpre uma ordem judicial não é a Polícia Militar, é o oficial de justiça. A polícia só vai dar acompanhamento ao oficial. Usa-se dos meios da Justiça para uma desobediência judicial", critica o pesquisador. Segundo ele, "há uma proteção explicita à grilagem de terras à partir do reposicionamento do Estado em relação a esses conflitos".

“O Estado vem se prestando muito a esse serviço. E o que vem acontecendo agora é que todo mundo tem medo de reeditar o que aconteceu em 1995, no massacre de Corumbiara, porque naquela época foi exatamente isso: descartou-se as possibilidades de fazer acordos possíveis”, ressalta Chagas ao lembrar que o atual secretário de segurança pública do Estado, coronel José Hélio Cysneiros Pachá, foi um dos oficiais que comandou a ação há 26 anos.

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“De 2017 para cá a gente fez várias conversas com as organizações como CPT, órgãos de Direitos Humanos, Comitês de Defesa e tiramos centenas de pessoas do Estado. Pessoas que tiveram que ir para a proteção às vítimas porque eram gente marcada para morrer. E se você olha o perfil dessas pessoas, eram todas lideranças, a maioria mulheres e jovens”, afirma Chagas.

Ele menciona, ainda, que são catalisadores dessa tensão no campo o desmonte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o avanço de propostas que afrouxam os critérios para a regularização dessas áreas, como o projeto de lei 510/2021.

Anistia à grilagem

Em tramitação no Senado, a proposta citada por Chagas amplia de dezembro de 2011 para dezembro de 2014 o marco legal de regularização dessas áreas, anistiando as invasões de terras públicas ocorridas nesse período.

“Toda vez que você tem uma expectativa de regularização fundiária, há valorização dessas terras. Por isso, tanto para quem vende quanto para quem vai comprar, esse projeto de lei é um sonho, é uma possibilidade de enriquecer enorme”, explica Bevilaqua ao ressaltar que as mudanças legais realizadas nos últimos quatro anos facilitaram a grilagem na região.

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“A forma tradicional é fazer um georreferenciamento aleatório, pedir o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural junto ao Incra e, agora, também é possível emitir uma Certidão de Reconhecimento de Ocupação. Esses papéis, que são expectativas de direito, são vendidos e, quando isso ocorre, eles desmatam porque, desmatando, valorizam três vezes o valor do imóvel, mesmo não tendo título de propriedade”, descreve o procurador do MPF.

É nesse cenário de especulação crescente que os conflitos por terra encontram solo fértil em Rondônia e demais Estados da Amazônia Legal.

“O caminho é esse. A fronteira do desmatamento vai se abrindo e a boiada vai passando. E  com preço de soja, milho e carne nas alturas, isso vai acontecer desse modo desenfreado e ainda com incentivo do Estado e sem política pública para produtor pequeno. Eu não sei até onde isso vai chegar, mas nós não temos previsões boas para o povo do campo, não, principalmente para os pequenos”, lamenta Alvez.

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Contraponto

Procurada, a Secretaria de Segurança, Defesa e Cidadania de Rondônia (Sesdec), por meio da Superintendência Estadual de Comunicação do Estado, afirmou que "os casos de violência no campo têm sido causados por organizações criminosas que agem sob o manto de serem movimentos sociais" e que "para buscar conter essas ações, está realizando de forma intensificada o patrulhamento rural e também conduzindo investigações específicas direcionadas às lideranças dessas organizações criminosas". 

"A situação está sob controle, foi realizada a prisão de alguns líderes, apreendido diversos itens que serviriam para agredir as forças policiais em caso de aproximação, foram identificados e desarmadas armadilhas e recolhidos diversos apetrechos para ataques às forças policiais. A Sesdec continuará envidando todos os esforços para que as forças policiais permaneçam com ações que propiciem impedir novas invasões de terras no Estado e consigam êxito", informa a secretaria em nota.

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O Ministério da Agricultura, por sua vez, destacou em nota que “os conflitos agrários em Rondônia ocorrem em áreas públicas e privadas e são acompanhados por núcleo de mediação instituído pelo Governo do Estado com a participação de representantes de órgãos públicos estaduais e federais, além de representantes do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública”.

A pasta ressalta ainda que as áreas públicas rurais em nome da União ou do Incra objeto de conflito fundiário, de embargo ambiental e infração ambiental não são passíveis de regularização fundiária e que mantém parceria com o governo de Rondônia e o Incra desde julho do ano passado para promover a regularização de ocupações em áreas públicas no Estado, com a previsão de emitir 10 mil títulos.

“O objetivo é legalizar as ocupações, em conformidade com a legislação vigente, contribuindo assim com a redução de conflitos agrários no Estado”, afirma o governo em nota.
Source: Rural

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