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Aos 67 anos, o líder indígena, ativista e escritor Ailton Krenak mantém acesa a esperança de ver um Brasil sustentável. Sem linha telefônica, mas graças ao Wi-Fi, ele conseguiu atender ao pedido de entrevista da Revista Globo Rural para achar um ponto de convergência entre produção agropecuária e proteção ambiental.

Para ele, esse ponto é o solo. Na opinião de Krenak, os cuidados com a terra passam pela integração entre pecuária e floresta e pelos sistemas agroflorestais, que garantem a longevidade dos ciclos da água.

“Monocultura não é o fato de trabalhar apenas com uma espécie específica, mas é um pensamento”, diz, convicto de que esse é um modelo ultrapassado, que drena as potencialidades da biodiversidade brasileira.

Ailton Krenak, líder indígena, ativista e escritor (Foto: Guito Moreto/O Globo)

 

Globo Rural: No seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, você menciona que a gente não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra. O que é sustentabilidade para o senhor?

Ailton Krenak: Quando nós nos perguntamos sustentabilidade para quê, estamos colocando em questão a própria ideia, que é muito recente, de sustentabilidade. A pessoa que vive trabalhando na terra precisa que ela tenha saúde e que os ciclos das estações sejam respeitados. Não dá para imaginar um ciclo sustentável quando estamos atacando o corpo da Terra dessa maneira, com a contaminação do solo ou das águas por agrotóxicos. Ele (o solo) sofre com as mudanças climáticas e com os eventos de intempéries, uma série de práticas que nós humanos imprimimos na terra e na água. A maior parte das ações que realizamos não são sustentáveis. Como pode ser sustentável uma indústria que cria 10 milhões de frangos, abate e joga aqueles resíduos na natureza? Existem muitos riscos ao manipular animais vivos em ambientes que não são adequados e que podem criar uma desordem sanitária, alguma doença, como esse vírus (da Covid-19).

GR: Há algum ponto de sinergia entre a grande produção agropecuária e o ambiente equilibrado?

Krenak: Parece que a fórmula da ideia de sustentabilidade implica exatamente o presente e o futuro. A questão é que o agronegócio só pensa no presente e tem uma máxima que é da monocultura, apenas uma variedade, duas ou três e as outras são excluídas. Isso nos expõe a pragas incontroláveis, que só podem ser combatidas com muito veneno, e estamos entrando num rodízio perigoso do uso de pesticidas. Parece que estamos diante do dilema: vamos matar as galinhas dos ovos de ouro e vamos ter paciência e só recolher os ovos? Pode ser uma metáfora muito simplória, mas o solo é a nossa galinha dos ovos de ouro. Se a gente adoecê-lo, vamos perder a galinha dos ovos de ouro, com um solo pobre.

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GR: Então o problema começa na monocultura?

Krenak: Tudo começa quando achamos que é só beber água e a gente vai ficar com saúde. Se a gente beber água demais, a gente se afoga. Monocultura não é apenas o fato de trabalhar com uma espécie específica, mas é um pensamento. Monocultura é uma lógica. Se a gente tivesse agrofloresta no Brasil, poderia continuar produzindo, competindo no mercado, sem matar as outras espécies, como depredar o Cerrado inteiro. As pesquisas bem-sucedidas que a Embrapa fez tornaram o solo medíocre, como diziam os especialistas, em um jardim da monocultura da soja. Isso não é inteligente. A gente tinha milhares de espécies diferentes das outras, tinha pequi, baru, jatobá… Você passa um trator em cima disso, mete soja ali e, do ponto de vista comercial, vai bombar, mas, do ponto de vista da biodiversidade, vai virar uma miséria, um samba de uma nota só.

GR: Qual a sua visão sobre a Embrapa?

Krenak: A Embrapa merece todos os prêmios sob o ponto de vista da eficiência, da dedicação à pesquisa. Só que quem decide que tipo de uso você vai fazer da pesquisa não são os pesquisadores, é o governo. Não foi a Embrapa que decidiu que ia devastar o Cerrado e só colocar soja lá. Quem decidiu isso foi a prioridade política do Estado brasileiro, em sucessivos governos desde o final da década de 1980. Que tal se a gente tivesse um grande produtor e outros 300 empreendedores cultivando outras variedades? Por que todo mundo precisa fazer a mesma coisa? Parece burrice. Se você ganhar dinheiro plantando cana, então todo mundo vai plantar cana?

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GR: Por que o Brasil deveria apostar em agroflorestas?

Krenak: A diversidade que a floresta proporciona, a experiência de alternar floresta com cultivos, que é a agrofloresta, a possibilidade de criar gado no meio da mata, o cacau que dá dentro da mata. Tem tantas espécies que o mercado se interessa, que são comerciais também. Senão, as pessoas vão ficar falando que eu só falo em alternativas que não dão dinheiro. Só que tem gente que quer ganhar dinheiro rápido demais, e na natureza não é assim, tudo tem seu tempo.

Nós estamos diante de um impasse grave e estamos ficando numa situação escandalosa de abandono da vida"

Ailton Krenak, líder indígena, ativista e escritor

GR: Mas há muitos produtores de commodities que estão aderindo aos biológicos, aos sistemas integrados de lavoura, pecuária e floresta, à agricultura regenerativa e às agroflorestas.

Krenak: Há dez anos, eu ouvi prognósticos de que o Brasil não precisaria desmatar mais nem um quilômetro de floresta para continuar tendo áreas agricultáveis suficientes para concorrer no mercado com o mundo inteiro. O problema é que, de lá para cá, nós já desmatamos milhares de quilômetros de floresta, e, com isso, estamos desequilibrando o ciclo das chuvas, que se formam nas florestas densas, que é a nossa Amazônia, e se formam com a friagem dos Andes e produz um fenômeno muito bonito, chamado de "rios voadores", compreendido só recentemente. Essa é a questão. Nós temos de pensar nos ciclos da natureza, e não na urgência monetária. Hoje mesmo temos uma discussão no Brasil se o que é mais importante é a vida das pessoas ou a economia. Nós estamos diante de um impasse grave e estamos ficando numa situação escandalosa de abandono da vida.

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GR: Os outros biomas, como Cerrado e Mata Atlântica, também perderam muito de sua vegetação nativa. O senhor acha que o Brasil está displicente com os outros biomas e olhando apenas para a Amazônia?

Krenak: Eu sou de uma área de transição de Mata Atlântica e Cerrado e estimo muito esse ecossistema. Criei uma reserva de biosfera que tem uma característica chamada de ecótono, porque junta três, quatro biomas se encontrando na Serra do Espinhaço. Ali você tem campos de altitude, campos rupestres, mata de galeria, Mata Atlântica e Cerrado. É maravilhoso. A Unesco reconheceu como Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço. Eu sei que a Mata Atlântica já foi devastada em cerca de 87% de toda a cobertura original. Eu acho que não é verdade que estamos apelando para a Amazônia a cada crise ambiental.

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GR: Você tem acompanhado as discussões no Congresso Nacional sobre licenciamento ambiental e regularização fundiária? Qual sua opinião?

Krenak: Eu acompanho com muita preocupação. Eu vi que as comissões internas da Câmara dos Deputados que encaminham esses projetos não têm interesse em pensar amplamente a questão. É tudo fatiado. Eles têm prioridade em determinado assunto, aprovam um projeto de lei que depois fica inviável, porque vai conflitar com outras diretrizes do próprio governo, seja o Ministério do Meio Ambiente, seja o Ministério da Agricultura, ou a Agência Nacional de Águas. Desse jeito, não tem economia que aguente, e isso vira um bingo. No caso dos povos indígenas, o Congresso não consulta ninguém. Essa regulamentação é feita através de lobby, quem faz parte do jogo entra no lobby. É a bancada do boi, a bancada da bala, a bancada da Bíblia, as frentes parlamentares, então eu acho que estamos fatiados e isso se reflete em uma sociedade perplexa, que não sabe o que está fazendo como comunidade. Porque a ideia de comunidade supõe cooperação, colaboração, respeito mútuo, e isso não está presente, é um vale-tudo.

Ailton Krenak, no Rio de Janeiro, em sessão de fotos para o jornal O Globo (Foto: Guito Moreto/O Globo)

 

GR: Condicionar o crédito à produção sustentável seria uma solução?

Krenak: Levando em consideração aquele conceito de agir localmente e pensar globalmente, que era um lema da década de 80, você deve trabalhar onde você vive, mas pensar no mundo, nas relações que temos com o mundo inteiro, 30 anos depois, estamos sendo convidados a fazer parte de um mercado em que temos de respeitar regras. Então, assim: bem-vindo à normatização desse uso do solo, da água, e que a agricultura no mundo tenha disciplina. O mundo não é uma feira, pode ser um mercado, mas exige certo ordenamento. E o Brasil está totalmente no vermelho.

GR: Mas o agronegócio já apresenta dois discursos distintos, entre aqueles que ainda defendem o desmatamento e outros que estão preocupados com a questão ambiental. O senhor enxerga isso?

Krenak: Eu acho que isso sempre teve. Eu não acredito que houve unanimidade quando se decidiu sentar a soja no Cerrado e esquecer toda a diversidade daquele ecossistema. No Pampa também não foi todo mundo que quis acabar com tudo. Teve resistência e continua tendo. A questão é que quem tem investimento massivo, com capital externo e que pode ampliar a capacidade de investimento, não tem amor à terra. É gente especuladora, eu nem os coloco no meio dos produtores. Eu sei que tem uma participação ativa do segmento da agricultura que está trabalhando nos debates da Convenção da Biodiversidade e é muito bom esse debate, muito benéfico.

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GR: Ainda dá tempo de reverter a imagem desgastada lá fora e o Brasil ser uma potência agrícola com mais consciência e cuidado com a natureza?

Krenak: É claro que sim! Nosso país, no sentido do uso da terra, é muito novo. A gente tem todas as chances do mundo, mas não é por causa disso que vamos colocar veneno na nossa própria caixa d’água. Se nós vimos que o Velho Mundo chegou ao ponto de recuperar seus rios com muito investimento, de ter de parar de jogar controladores de água e solo e passar, inclusive, pela privação para ter de novo alguma possibilidade de vida, eles deveriam ser considerados por nós como uma lição, para não repetirmos o mesmo erro. E não ficar com essa bobagem de dizer que eles estão querendo nos controlar.

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Source: Rural

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