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Em 3 de abril, três dias antes de morrer, vítima do novo coronavírus, o caminhoneiro Ronney Samora completou 32 anos em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Ele homenageou os profissionais da saúde em suas redes sociais. Em postagem no Facebook, retratou os médicos e enfermeiros que lutavam pela sua vida.

Na mesma data, ele foi transferido a um hospital de referência em Vitória, capital do Espírito Santo, apenas após o irmão, Robson Samora, acionar a Justiça e conseguir um mandado de segurança. Mas o caminhoneiro não resistiu e deixou, no dia 6 de abril, esposa, filha e enteado.

Histórias como a de Ronney dão uma ideia da vulnerabilidade dos caminhoneiros à pandemia de Covid-19, que já matou mais de 400 mil pessoas no Brasil. Categoria essencial, esses profissionais não tiveram suas atividades paralisadas pelas restrições decretadas em todo o país por causa do avanço da pandemia.

caminhoneiros-marmita-fab (Foto: Divulgação/FAB)

 

Com base apenas nos números oficiais do Ministério da Economia, não é possível verificar o quanto desse cenário está associado ao novo coronavírus. Mas os caminhoneiros são a categoria com maior registro de desligamentos por óbito desde o início da pandemia no Brasil, como mostram os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) compilados por Globo Rural.

A estatística leva em conta somente profissionais contratados com carteira assinada. Foram 4.036 mortes entre março de 2020 e março de 2021. A lista das dez ocupações com mais registros de desligamento por morte inclui ainda faxineiro, porteiro de edifício e vendedores do comércio varejista (veja gráfico abaixo).

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Em março de 2020, quando a pandemia começava a se espalhar no Brasil, foram 212 desligamentos de caminhoneiros por morte. Em março deste ano, foram 670 – um incremento de mais de 200%. Antes da pandemia, os registros no Caged não passavam de 200 no mês.

Coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, o professor Domingos Alves afirma que há uma correlação entre o aumento nos vínculos trabalhistas encerrados por morte e o acirramento da pandemia, que atingiu um patamar inédito de vítimas nos meses de março e abril de 2021.

"Esses números são compatíveis com o número de afastamentos e óbitos observado nas categorias que prestam serviços essenciais e não puderam parar, como mostrou um estudo recente. E a tendência é que essa situação piore", pontua o infectologista.

Ele acrescenta que com a disseminação das novas variantes do novo coronavírus, a faixa de idade nos casos fatais tem abaixado. E reforça que podem ajudar na prevenção de Covid-19 a adoção de medidas de higiene e o uso de duas máscaras, como recomendado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. "Mas falta o Governo Federal e também vários Estados brasileiros deixarem clara a gravidade da crise", declara.

Se para quem tem carteira assinada, a situação está difícil, para os autônomos, é ainda pior, avalia a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA). A entidade tem recebido relatos de caminhoneiros que contraem Covid-19 a quilômetros de casa. Sem possibilidade de abrigo seguro e adequado, os profissionais afirmam ficar isolados na boleia de seus veículos.

“Não temos um levantamento particular sobre o saldo de óbitos para os caminhoneiros autônomos, mas posso dar a certeza que o cenário é ainda pior”, afirma o assessor-executivo da CNTA, Marlon Maues. A entidade, junto com sindicatos, reivindica a instalação de bases de apoio aos motoristas que “não pararam de trabalhar em um momento sequer”.

Mas, para o dirigente, as péssimas condições de trabalho não são novidade. “A pandemia só veio para confirmar o que sabíamos há muito tempo”, ressalta. Na tentativa de mitigar as condições precárias, a CNTA também promove campanhas de conscientização e doação de equipamentos de proteção individual (EPI).

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Representante jurídico do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens do Estado de São Paulo (Sindicam/SP), Henrique Macedo Gonçalves vai na mesma direção: “No geral, as péssimas condições a que sempre foram submetidos os motoristas ainda perduram, sem qualquer preocupação ou adequação. Isso, infelizmente, não está restrito somente aos locais particulares, se estende, inclusive, a locais públicos como pontos de fiscalização”.

Na análise de Macedo, não houve por parte do Estado e, de um modo geral, por parte dos embarcadores ou recebedores de mercadorias, adoção de procedimentos necessários para evitar contágio. “São poucas empresas, na carga e descarga, que criaram protocolos sanitários para evitar contágio ou transmissão do vírus”, acrescenta.

Post de Ronney no Facebook do dia em que ele foi entubado
(Foto: Reprodução/Redes sociais)

Ronney Samora era autônomo. Assim como muitos de seus colegas de profissão, não teve condições de parar de trabalhar mesmo quando o auxílio emergencial ainda era de R$ 600. Ele era a única fonte de sustento para uma família de quatro pessoas. Além de ter que cobrir todas as suas contas e riscos.

Antes de confirmar a contaminação pelo coronavírus, o caminhoneiro ainda teve a sorte de chegar à Vitória, onde vivia com a família, retornando de viagem à São Paulo. Percebeu os primeiros sintomas já na região metropolitana da capital capixaba em 26 de março, uma sexta-feira. Decidiu fazer o teste e esperou a má notícia em casa.

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No caso de Ronney, a taxa de ocupação das UTIs, acima de 80% desde 10 de março no Espírito Santo, segundo o Governo do Estado, diminuiu as chances de sobrevivência. Após uma semana de idas e vindas à Unidade Pronto Atendimento (UPA), ele foi entubado lá mesmo, antes de conseguir transferência para o hospital Jayme Santos Neves, em Serra, na Grande Vitória. Quando o caminhoneiro morreu, no dia 6 de abril, o Brasil registrava 336.947 óbitos. A contagem ultrapassou os 400 mil no dia 29 do mesmo mês.

 

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O peso da informalidade

De acordo com as estatísticas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) referentes a 2020, o Brasil tem 695.593 transportadores autônomos registrados, 695.320 celetistas, 209.529 empresas de transporte rodoviário de cargas e 422 cooperativas no setor. Os profissionais independentes detêm cerca de 38 em cada cem caminhões —  836.988 veículos contra 2.209.440 na frota total.

A professora de administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Julice Salvagni, que abordou as relações de trabalho dos caminhoneiros em sua tese de doutorado, explica que o setor é “muito marcado pela informalidade. A grande maioria dos motoristas trabalha por conta própria, sendo proprietário do caminhão ou trabalhando como motorista de alguém, na maior parte das vezes, em um caráter informal”.

“O trabalho é regido pela demanda, e o pagamento também é feito por entrega. O profissional acaba tendendo a ganhar mais quanto maior a sua celeridade para concluir serviços”, ela acrescenta. Julice ainda aponta que os profissionais autônomos precisam comprar o veículo, via de regra, com financiamentos a perder de vista, e têm de arcar com quaisquer prejuízos que venham a ter na estrada.

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Com a promessa às empresas de ser o jeito mais fácil de encontrar os melhores fretes, aproximando caminhoneiros autônomos, a FreteBras é a plataforma on-line de transporte rodoviário de cargas com mais usuários na América do Sul (500 mil caminhoneiros e 12 mil empresas). Em seu balanço anual, a empresa de tecnologia anunciou ter movimentado R$ 48 bilhões em 2020. A previsão é de, apenas em 2021, investir R$ 20 milhões em ações de suporte aos caminhoneiros nas estradas.

“Com o aumento das contaminações por Covid-19 em 2021 e pensando em ajudar ainda mais, passamos a doar materiais de proteção à saúde. Ao todo, a FreteBras tem como objetivo distribuir 300 mil máscaras até o final do ano, alcançando cerca de um terço dos caminhoneiros autônomos do Brasil”, conta Bruno Hacad, Diretor de Operações da FreteBras, à Globo Rural, via e-mail.

A plataforma afirma ter realizado ações para apoiar o trabalho dos caminhoneiros durante a pandemia. Menciona a criação de uma rede colaborativa para mapear postos abertos e serviços básicos prestados. E a participação no envio de uma carta, com o apoio de várias empresas do setor, ao Ministério da Infraestrutura, solicitando o cancelamento temporário dos pedágios; além da operação de iniciativa de doações de alimentos para cobrir a falta de oferta nas estradas.

Em janeiro de 2021, a Fretebras publicou ainda um estudo feito com o objetivo de identificar quantos caminhoneiros haviam sido contaminados pela covid-19, com base em sua comunidade de usuários. O levantamento concluiu que a cada cinco caminhoneiros um havia contraído o novo coronavírus em 2020.

Também procurada por Globo Rural, a plataforma TruckPad, ressaltou, em nota, que “os caminhoneiros inscritos não são seus colaboradores, ou seja, não possuem vínculo empregatício. A plataforma é apenas um meio para fazer a ligação entre profissionais autônomos e empresas de transporte de carga”.

Ainda assim, a empresa declara ter distribuído, em parceria com a Associação Nacional Fabricantes de Implementos Rodoviários, “kits de higiene, tags de cobrança automática de pedágio e refeições gratuitas.”

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Críticas

Mas essas ações não livram as empresas de críticas dos representantes da categoria. Segundo eles, essas plataformas atuam como "atravessadores". “Sempre que tem um intermediário, o transportador perde dinheiro”, assinala Marlon Maues, da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos. 

Segundo ele, os aplicativos funcionam como um leilão. “A menor oferta de frete sempre vence. Assim o contratante paga o mínimo possível”, argumenta. O assessor-executivo da CNTA, afirma que a entidade negocia no momento com a Confederação Nacional dos Transportes para facilitar aos caminhoneiros a negociação direta com os contratantes, “para evitar os atravessadores”.

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Hoje, a tabela mínima de referência, garantida por lei, indexa um custo mínimo. Em 2021, após a Petrobras anunciar seis reajustes no valor do combustível, o preço do diesel subiu quase 37%. “Sempre que ocorrer oscilação no preço do óleo diesel no mercado nacional superior a 10% em relação ao preço considerado na planilha de cálculos de que trata o caput deste artigo, para mais ou para menos, nova norma com pisos mínimos deverá ser publicada pela agência”, afirma a ANTT.

Mas cabe ao transportador autônomo, avaliar e integrar a isso o preço do seu serviço. Para Henrique Macedo Gonçalves, do Sindicam/SP, no entanto, seguir o valor de referência não é o costume, uma vez que o mercado se ajustou de forma diferente e legou ao tomador de serviços o poder de oferecer preços, não permitindo uma negociação entre as partes.

“No fim, o profissional acaba tendo uma remuneração baixa. Enquanto não ocorrer mudança no comportamento do transportador autônomo, impondo o valor da sua mão de obra, não haverá como equilibrar o frete em face da alta dos insumos”, ele afirmou.

*Sob supervisão de Raphael Salomão, editor-assistente

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Source: Rural

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