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No tempo quente e seco do Cerrado, trigo ganha espaço com o desenvolvimento de variedades mais tolerantes, mas a doença conhecida como brusone ainda é uma preocupação na região (Foto: Acervo/Ed. Globo)

 

O produtor rural Hélio Dal Bello trocou o Rio Grande do Sul pelo Distrito Federal há 43 anos e levou junto sua paixão pelo cultivo do trigo, cultura que está se expandindo pelo quente e seco Cerrado brasileiro com a proposta de reduzir a dependência de importação e até garantir a autossuficiência do Brasil em alguns anos na produção desse grão básico para a panificação.

Na última safra, Dal Bello plantou 800 hectares de trigo, sendo 60 irrigados. Em 2021, vai semear 1.100 hectares, incentivado pelas condições ideais de plantio na região, pelo benefício que o cultivo de trigo deixa no solo para as outras culturas, como soja, feijão e milho, e pela alta qualidade do grão do Cerrado, que rende bônus por tonelada nos moinhos.

A produtividade do trigo irrigado de Dal Bello chega a 7.800 quilos (130 sacas de 60 kg) por hectare e no sequeiro, de 1.900 a 2.500 quilos. No Paraná e Rio Grande do Sul, que produzem 90% do trigo brasileiro, a produtividade média é de cerca de 2.700 quilos, mas a área plantada tem caído nos últimos anos devido à instabilidade do clima, que eleva os riscos, e à concorrência com soja, milho e outras culturas.

“Todo sulista é apaixonado pelo cultivo do trigo. Eu era descrente de plantar no Cerrado, mas, com as novas variedades resistentes ao calor e à seca que garantem um sistema radicular profundo que beneficia outras culturas, tenho colhido um trigo de muita qualidade, branqueador, que me garante um bônus de cerca de R$ 100 por tonelada nos moinhos”, diz o agricultor oriundo de Maximiliano de Almeida, que também planta soja e feijão no DF.

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Além de produtores como Dal Bello que triplicaram a área plantada de trigo nos últimos dez anos, fechando a última safra com 200 mil hectares, também apostam no trigo no Cerrado a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo) e consultores especializados em agronegócio.

Anualmente, o Brasil importa cerca de 6,4 milhões de toneladas, especialmente da Argentina (85% do total), para suprir o consumo estimado em 12 milhões de toneladas. O plano é elevar a área plantada no Cerrado em mais de 20 vezes, ocupando 2,5 milhões de hectares em Goiás, DF, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia e São Paulo.

Lucilio Alves, pesquisador do Cepea/Esalq/USP, diz que a única possibilidade de elevar a oferta doméstica do grão é o plantio no Cerrado. “Devido aos altos riscos da cultura, muitos produtores do sul que poderiam semear trigo deixam até 80% de suas áreas sem cobertura verde na segunda safra, o que vem derrubando a área plantada.”

Segurança alimentar

“Com a pandemia, ficou muito clara a vulnerabilidade do Brasil em um produto tão sensível como o trigo. Estudos já mostraram que 18% dos alimentos do país contêm farinha. Ter cerca de 60% do consumo dependente da importação cria uma questão de segurança alimentar. Felizmente, não aconteceu, mas se um navio de trigo tivesse sido impedido de entrar no porto, teríamos problemas”, diz o embaixador Rubens Barbosa, presidente-executivo da Abitrigo.

Ele conta que, no final de 2018, entregou à ministra Tereza Cristina um documento formulado pela cadeia intitulado Política Nacional do Trigo que, entre outras coisas, sugere ações para ampliar a produção do trigo no Cerrado. “Há um crescente interesse no plantio de trigo naquela região. Com investimento e novas plantas na área, podemos ter uma produção significativa em dois, três ou quatro anos.”

O dirigente ressalta que o plano de autossuficiência não significa fechamento ou reserva de mercado. “Queremos aumentar a oferta para os moinhos brasileiros, que podem até passar a exportar. Temos o exemplo da Rússia que se tornou o maior exportador de trigo em dez anos.”

Genética

Julio Albrecht, pesquisador em melhoramento genético de trigo da Embrapa Cerrados, diz que a região tem área, clima estável e favorável ao trigo, sementes adaptadas e bons produtores, a maioria vinda da região Sul, para elevar o plantio para 2,5 milhões de hectares em alguns anos.

“O trigo pode repetir no Cerrado a trajetória de sucesso da soja. É uma excelente opção para rotação de culturas porque quebra ciclo de doenças e reduz a infestação de plantas daninhas e nematóides. No médio prazo, o Cerrado pode produzir as 6 milhões de toneladas que faltam ao Brasil.”

Segundo o pesquisador, o trigo produzido na região é o melhor em qualidade de panificação do país, comparável ao grão americano e superior ao argentino. Atualmente, 40% da área de plantio no Cerrado é irrigada, mas o plano é crescer no cultivo de sequeiro, que rende menos, mas tem custo de produção muito menor e menos competitividade por terras.

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A Embrapa desenvolve cultivares resistentes à seca e ao calor na região desde a década de 80. Os cultivos são em altitudes superiores a 600 metros. A variedade BRS 264, para terras irrigadas, é a mais plantada devido a sua precocidade, 105 dias entre plantio e colheita, e o rendimento de até 8.000 kg por hectare.

A mesma variedade, diz Albrecht, chega a ser plantada em áreas de sequeiro, rendendo 2.000 kg, mesma produtividade da cultivar BRS 404, especial para sequeiro, que necessita de menos adubo e correção de solo porque geralmente é semeada após a soja.

Cooperativa

A Cooperativa Agropecuária da Região do Distrito Federal (Coopa-DF) mantém parceria com a Embrapa no cultivo de trigo desde a década de 80 e tem um moinho com capacidade para processar 18 mil toneladas por ano. Atualmente, 90 associados plantam o grão, sendo 30 no sistema irrigado, que tem área estável de 4.000 hectares.

“Os produtores do Cerrado estão prontos para o desafio de diminuir a dependência brasileira do trigo importado. O crescimento de área é geométrico. Há cinco anos, tínhamos 100 hectares de sequeiro entre os cooperados. Para 2021, a área plantada deve atingir 20 mil hectares”, diz Cláudio Malinski, agrônomo e responsável técnico da cooperativa.

Há 40 anos acompanhando o plantio de trigo, o agrônomo diz que o grão está inserido no sistema de produção da região devido a sua importância na rotação das culturas e pela renda gerada. “Nos últimos cinco anos, o produtor teve bons lucros em quatro. Só perdeu em 2019, quando houve muita chuva em março e ataques de pragas.”

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Outra vantagem do trigo do Cerrado, segundo Malinski e Albrecht, é o fato de estar disponível para o mercado na entressafra da região Sul e da Argentina. “Começamos a colheita em agosto, um período seco sem chuvas, quando os moinhos têm pouco ou nenhum estoque, já que o Sul colhe a maior parte da safra entre outubro e dezembro. Por isso o produtor consegue melhores preços por sua produção e facilidade na comercialização”, diz o pesquisador da Embrapa.

O sucesso do trigo no Cerrado já chamou a atenção de empresas privadas de sementes, como a Biotrigo e OR Sementes, que desenvolveram cultivares específicas para o bioma. Segundo o produtor Dal Bello, uma indústria argentina de sementes também está “namorando” a região.

Faltam moinhos

Um problema que impede o avanço mais acelerado do cultivo é a falta de moinhos na região. Há indústrias de moagem em Goiânia, Uberlândia, Uberaba, Belo Horizonte e Brasília, mas as principais do país ficam no litoral, próximas dos portos, visando facilitar as importações. Albrecht diz que um novo moinho deve ser instalado em Luis Eduardo Magalhães, no sul da Bahia, no próximo ano.

Helio dal Bello, produtor rural. Ele resolveu apostar no trigo como cultura no Cerrado (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo o embaixador Rubens Barbosa, já está desaparecendo o ceticismo dos grandes moinhos do Sul em relação à capacidade de produção do Cerrado. “É certo que a qualidade e a produtividade são maiores, mas ainda falta logística e apoio do governo para ampliar a produção de forma significativa.”

Cesar Hallum, secretário de Política Agrícola do Mapa, diz que o governo já apoiava a ampliação do trigo no Centro-Oeste e Matopiba, com as pesquisas da Embrapa, e intensificou suas ações após receber o documento da Abitrigo. Segundo ele, o melhoramento genético das sementes no Cerrado tem surpreendido com produtividades de 100 sacas por hectare, enquanto no sul é de 40 sacas e na Argentina, 45 sacas.

“Essa alta produtividade deve compensar os problemas de logística que poderemos ter com a ampliação da produção”, diz o secretário, se referindo ao custo de frete para levar o trigo da região central do país para os moinhos do litoral. Ele acredita, no entanto, que, à medida que a produção aumentar, novas plantas industriais vão se instalar na região.

O secretário cita como duas ações de incentivo do governo o acesso do produtor de trigo às linhas de crédito do Plano Safra e o bônus de R$ 105 por tonelada pago pelos moinhos ao trigo do Cerrado, na comparação com o grão do Sul do país.

Doença

Outro problema da cultura no Cerrado é a doença brusone, causada por um fungo que seca as espigas e derruba a produtividade e a qualidade. Os produtores vêm reforçando o manejo, mas não há produtos específicos para combate à brusone. As plantas atacadas pelo fungo só servem basicamente para ração. Há dois anos, Hélio Dal Bello perdeu praticamente toda a produção de uma área atingida pela doença.

O pesquisador Albrecht conta que a brusone foi descoberta no Brasil, mas já preocupa triticultores de outros países. “Bangladesh perdeu 50% de sua safra com a doença.” A Embrapa está desenvolvendo uma cultivar resistente ao fungo, que deve ser lançada em 2022.
Source: Rural

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