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(Foto: Ernesto de Souza/Ed. Globo)

 

Com apenas 2,7 milhões de toneladas (6%) negociadas da próxima safra de soja (2020/2021) da Argentina, que começa em dezembro, o produtor local ainda possui uma montanha grãos do ciclo comercial 2019/2020, que vende a conta-gotas. Para financiar-se, ele usa o que guardou da última colheita sem comprometer a futura, diferente do que em feito os brasileiros, que já negociaram mais de 50% do ciclo 2020/2021. O sojicultor argentino também recorre à poupança própria ou aos financiamentos bancários e comerciais.

No país que tem uma moeda fraca, instável e com diferentes tipos de cotação de câmbio, a cultura é a de “sentar em cima” do produto que é cotado no mercado pelo dólar para preservar seu valor. Este comportamento é histórico e não responde às políticas do atual presidente Alberto Fernández, nem de seus antecessores.

O único momento em se aproximou ao estilo brasileiro de comercialização foi na década de 90, durante os dois mandatos de Carlos Menem (Partido Justicialista, também chamado Peronista), quando o regime monetário denominado de “conversibilidade” esteve atrelado à moeda norte-americana: um peso argentino valia um dólar.

“Há um problema grande, que é a pouca confiança que os argentinos têm na própria moeda e o comportamento dos produtores de guardar suas produções e ser mais cauteloso – sem vender a safra que ainda nem começou a plantar – é uma reação a esta desconfiança, é a maneira que encontrou para manter sua atividade econômica reduzindo riscos em um contexto de muita instabilidade na política de câmbio”, afirma o diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Negociações Internacionais da Sociedade Rural Argentina (SRA), Ezequiel de Freijo.

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Ele explica que é um estilo de gerenciar os negócios que o setor desenvolveu para proteger sua liquidez em um contexto de desconfiança e sem a cultura nacional de usar ferramentas no mercado financeiro. As políticas macroeconômicas dos governos dos últimos 20 anos e anterior a 1991 geraram expansão do gasto público, com alto endividamento e emissão monetária.

“Para tentar não gerar inflação, estes governos emitem papéis que os bancos compram e isso quita dinheiro que poderia ser emprestado para a produção, ou seja, a emissão leva os bancos a desviar boa parte dos recursos que poderiam ser emprestados ao produtor”, detalha Freijo.

A situação se reflete no baixo financiamento à produção agrícola pelo sistema financeiro. Segundo relatório da Bolsa de Comércio de Rosario (BCR), os bancos participam com 32% dos créditos no mercado, enquanto 20% das necessidades são cobertas com recursos próprios. Os 48% restantes são de cooperativas, cerealistas e fornecedores de insumos, que adiantam os recursos para receber o valor equivalente em produtos após a colheita.

A SRA estima que a produção agrícola total da Argentina demanda um volume de investimentos de entre US$ 10 bilhões a US$ 12 bilhões. “Isso varia conforme a decisão de plantio do produtor que é baseada não só pela conjuntura econômica, mas climática”, afirma Freijo.

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Impasse na comercialização

Porém, não é o financiamento que provoca polêmica na Argentina, já que o estilo de manter estoques de colheitas anteriores para financiar as próximas é um comportamento natural. Às vésperas do início do plantio da safra 2020/2021, as atenções estão voltadas para o impasse na comercialização dos grãos colhidos no ciclo passado, que mais uma vez divide o campo, as exportadoras e o governo.

Sem pressa para fixar preços, os agricultores venderam 64% de sua produção, mas ainda retêm cerca de 30,122 milhões de toneladas de soja e milho que podem gerar US$ 11,674 bilhões em divisas para o país. Desta soma, US$ 3,190 bilhões irão diretamente para os cofres do governo, graças aos impostos cobrados pelas vendas externas, chamados de retenções ou direitos de exportação.

O governo argentino conta com esta arrecadação para aliviar a pressão sobre o mercado de câmbio, provocada pelas baixas reservas depositadas no Banco Central em permanente estado de contração. Sem investimentos externos e com o comércio exterior dependente das vendas agrícolas, o desespero oficial por obter divisas levou a uma série de medidas no mês passado, entre as quais a mudança temporária do esquema de retenções sobre o complexo da soja, para incentivar os produtores a acelerar suas vendas.

A consultoria Pablo Adreani e Associados calcula que a soja retida pelos produtores equivale a U$$ 9,944 bilhões e no caso do milho U$S 1,730 bilhão. “Neste momento, os produtores têm em seu poder 14,2 milhões de toneladas de soja em seus silos-bolsa e 7,8 milhões de toneladas a fixar preço já entregue às esmagadoras. São 22 milhões de toneladas de soja a ser vendidas e terem preços fixados. No caso do milho os agricultores têm em poder 3,9 milhões de toneladas e 4 milhões de toneladas entregues sem fixar preços, num total de 7,9 milhões de toneladas”, detalha Adreani à Globo Rural.

Há um problema grande, que é a pouca confiança que os argentinos têm na própria moeda e o comportamento dos produtores de guardar suas produções e ser mais cauteloso"

Ezequiel de Freijo, diretor da Sociedade Rural Argentina (SRA)

Conforme a modificação no esquema das retenções, anunciada pelo ministro de Economia Martín Guzmán em 1º de outubro, a alíquota para a soja em grão baixou de 33% a 30% neste mês, enquanto em novembro e dezembro serão de 31,5% e 32%, respectivamente. Em janeiro voltará aos 33%. Os derivados ganharam prêmio pelo valor agregado com alíquota de 28% em outubro, 29,5% em novembro, 30% em dezembro e 31% em janeiro. O biodiesel pagará 26% nos meses mencionados até convergir em 29% em 2021.

“A soja (315 US$/tonelada) tem sua própria conjuntura, com a baixa de 3% nas retenções, com vencimento a fim de dezembro, o produtor tem um melhor preço garantido até esta data. Depois desta data, o produtor já corre o risco de baixa de preços, pois a colheita nova de maio de 2021 está cotada a US$ 270/tonelada. Quer dizer que daqui até a entrada da soja da nova colheita, o mercado tem um potencial de baixa real de US$ 45”. Por estes detalhes, o produtor prefere guardar em lugar de travar preços.

A analista Emilce Terré, chefe do departamento de Estudos Econômicos da Bolsa de Cereais de Rosario, explica que “com a reposição de um diferencial entre as alíquotas do grão e os derivados, a indústria volta a ter uma maior capacidade teórica de pagamento no mercado interno em relação à matéria-prima, relação que foi negativa durante grande parte da safra”.  Segundo ela, a margem bruta melhora em 8,4% para a indústria exportadora e em 4,7% para a matéria prima nas vendas que se declarem e embarquem em outubro.

Na opinião do presidente da Câmara da Indústria Oleaginosa (CIARA, pela sigla em espanhol) e do Centro de Exportadores de Cereais (CEC), Gustavo Idígoras, a medida “é insuficiente”, mas indica que o governo reconhece a “enorme carga tributária sobre o complexo oleaginoso”. As instituições representadas por Idígoras fazem parte do Conselho Agroindustrial que reúne mais de 50 associações e câmaras, mas excluí uma das entidades representativas dos produtores, a Sociedade Rural Argentina.

Os produtores consideram que a redução temporária transfere subsídios do produtor para a indústria. “O produtor tem gastos com arrendamento e insumos que são pagos com a soja estocada, já que não há uma moeda forte para poupar sem perder valor”, explica o produtor agropecuário e ex-secretário de Agricultura, Ricardo Negri. Ele considera que por este motivo não há estímulos para antecipar a venda da colheita.

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Em igual período do ano passado, durante o governo de Maurício Macri, do qual Negri foi integrante, os produtores também retiveram grande parte da produção. “Este posicionamento de resguardar valor é histórico e não está relacionado à especulação, mas sim à proteção e estratégia de negócio”, ilustra, mencionando que a desconfiança sobre o enfraquecimento da moeda local, a ausência de plano econômico crível e a recente experiência com a falência da agroexportadora Vicentin formam um combo que estimula o produtor a reter sua produção e vender somente quando necessita de dinheiro.

Emilce Terré concorda que “o produtor realiza suas vendas de acordo com as necessidades de recursos para compra de insumos e outros pagamentos, pois a soja é um meio de poupança para o produtor”. O economista chefe de Confederações Rurais Argentinas (CRA), Matías Lestani, diz que o atual volume de vendas está em um nível similar ao do ano passado.  Segundo ele, até 30 de setembro o mercado havia vendido 62% da colheita atual, enquanto em 2019 esse porcentual foi um pouquinho maior: 65%.

“A reserva é normal em qualquer época, especialmente se levar em conta que este é um ano atípico que tem de tudo: pandemia, dificuldades de transporte pela baixa do nível de água no Paraná, queimadas, cotação de câmbio com 90% de spread entre o oficial e o paralelo. E, com tudo isso, é natural que o produtor use a soja como resguardo de valor sua produção”, detalha Lestani.

Apesar de pertencer à indústria, Andrés Alcaraz, gerente de Comunicações e Relações Institucionais da CIARA, entende que os produtores, em geral, retêm a produção para enfrentar os pagamentos que gradativamente requerem para manterem-se a si mesmos, como em qualquer família, investir na implantação da safra, que é agora (soja e milho), adquirindo grãos, fertilizantes e outros elementos, como maquinaria, e por isso confia mais em seus grãos que equivalem a dólares que no sistema bancário.

Ele detalha ainda que “a capacidade de armazenagem da indústria e a exportação é apenas 6% do total do país, por isso não se pode reter muito. Ao entrar no processo de industrialização não se considera estoque”. Baixar as retenções por pouco tempo não é estímulo para que haja uma venda em massa da soja guardada. Para a indústria, a medida pode influenciar, mas o máximo de dólares que entrariam neste último trimestre seria de aproximadamente US$ 3 bilhões, segundo estimam os traders com base no histórico verificado desde 2002.

É difícil convencer

Na opinião consultor Adreani, não há nenhum anúncio que o governo possa fazer para convencer os produtores a venderem a soja. Tal decisão, segundo ele, está relacionada a um problema profundo gerado pela desconfiança e incerteza. A primeira se deve a que a “palavra” do poder executivo está desvalorizada. No segundo caso, a causa é o spread dentre o dólar da soja e o câmbio oficial se o produtor decidisse pesificar seus ativos.

A cotação do dólar oficial do Banco Nación, usado como referência para colocar divisas de soja no mercado, é de 80 pesos por unidade, enquanto o dólar da soja é cotado a 54 pesos (valor descontando a retenção). “A primeira reflexão é: qual produtor venderia alegremente a soja com o dólar cotado a 54, enquanto o CCL (obtido por meio da compra de títulos em pesos argentinos e venda em dólares em Wall Street) está cotado a 155,59 pesos, um spread de 188%?”, pergunta ele, referindo-se à cotação dos títulos negociados na Bolsa de Buenos Aires. A colheita é cotada em dólares no mercado internacional, mas se vende pela cotação do câmbio oficial, “que se desvaloriza a um ritmo de 3% por mês”, observa Adreani.

O produtor e os fornecedores de insumos vendem seus produtos pela cotação do dólar oficial, mas quando há spread entre o oficial e o paralelo e restrição do câmbio, os fornecedores não podem importar tudo que precisa o que provoca uma menor oferta. Neste contexto, quando a demanda aumenta por ocasião dos preparativos da nova safra, os preços sobem pela cotação do paralelo porque é esta a cotação que reflete as expectativas do mercado. “O produtor antecipa algumas compras para evitar o pico alto da demanda, mas ele não tem infraestrutura suficiente para armazenar todos os insumos que precisa de maneira segura, como diesel e fertilizante, por exemplo,”, detalha o economista Freijo, da SRA.

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Fonte do governo argumentou com a Globo Rural que vem trabalhando com setores do campo, como os representantes do Conselho Industrial Argentino, em várias mesas técnicas com alguns objetivos que vão além das exportações.

“Buscamos aumentar os níveis de produção, que haja maior valor agregado e que cresçam os níveis de emprego. Desta maneira, o Executivo é muito consciente de que se trata de um setor absolutamente diverso e com distintas realidades. Por isso, as medidas do governo tendem a conter e dar oportunidade aos pequenos e médios produtores, que são os que têm menos respaldo financeiro”, disse.

Neste contexto, continuou, “o spread cambial não afeta as operações nem provoca prejuízo direto para o exportador, já que liquida a um dólar oficial que é o mesmo dólar com o que compram para a próxima colheita”. A fonte deu como exemplo de opção para o produtor preservar o valor de sua produção, o novo mecanismo anunciado há alguns dias pelo ministro de Economia, denominado bônus dólar linked. “É uma oportunidade que o produtor tem de entregar seus grãos e transformá-los em bônus atrelados ao dólar”, explicou a alta fonte oficial.

Além disso, a fonte comentou que cerca de 40% do total de produtores do país vão receber uma compensação pelas exportações de soja que concretizem. “Uma medida que se ajusta à diferença de competitividade, em um modelo de equidade territorial social”, completou.
Source: Rural

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