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(Foto: Tomás Arthuzzi)

 

*Publicado originalmente na edição 419 de Globo Rural (setembro/2020)

A pandemia está resgatando o relacionamento da sociedade urbana com o alimento. Para o filósofo Mario Sergio Cortella, este momento tem ajudado a desconstruir preconceitos sobre o profissional do campo – e a valorizar aquilo que chega ao prato.

“Nós nos afastamos tanto da nossa capacidade de produzir parte das coisas da nossa vida, até que durante o movimento pandêmico houve uma explosão de pessoas que passaram a fazer pão em casa, a cuidar de produzir seus alimentos.”

Nascido em Londrina, no Paraná, terra de agronegócio forte, Cortella é pé vermelho com orgulho, como são chamados seus conterrâneos. Rodeado por irmãos e primos agrônomos e veterinários, ele foi o único que enveredou para a filosofia e segue tentando desmitificar o significado pejorativo da palavra "caipira", anteriormente desenhado por Monteiro Lobato na figura de Jeca Tatu.

 

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“Eu acho que a humanidade do século XXI está olhando o mundo do campo, o mundo do agro, não só como sustentador das nossas vidas e facilitador das nossas encrencas econômicas, mas também um mundo que, como não o conhece, honra e respeita menos do que deveria”, diz.

Em entrevista à revista Globo Rural, Cortella ainda ressalta que a era da informação também contribui para a curiosidade do consumidor e para o esclarecimento da origem do alimento, desde questões sanitárias até o conhecimento dos rótulos de embalagem.

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Globo Rural: Por que a população urbana ainda tem uma visão distorcida sobre o produtor rural?

Mario Sergio Cortella: Temos duas contribuições que levaram a pintar a pessoa do campo como menos escolarizada e mais ingênua. De um lado, você tem o Monteiro Lobato, que pintou o Jeca Tatu, que, sendo alguém que veio da roça, estava o tempo todo falando errado. E tem o Mazzaropi, que, ao fazer sua principal personagem entre os anos de 1950 e 60 também caricaturou o caipira, em vez de caracterizar. E eu acho que em parte houve uma contribuição da comunicação, que deu um ar de menos desenvolvido e mais ligado às coisas brutas, que é o manejo com o gado, com a terra. Eu costumo brincar, quando perguntam por que eu fui para a filosofia, que eu não queria trabalhar, porque o agronegócio dá muito trabalho. Como diz a antiga frase, a agricultura é a arte da paciência, então podemos dizer que o agronegócio é a arte da paciência.

Não por acaso, a palavra humano tem origem no vocábulo humus, que significa terra fértil

GR: Há também um movimento de resgatar as origens e voltar a produzir os próprios alimentos. Como você analisa esse comportamento?

Cortella: Em todas as culturas e sociedades na história, estar ligado à terra sempre foi inerente à natureza humana. Não por acaso, a palavra humano tem origem no vocábulo "humus", que significa terra fértil. Portanto, a própria origem nossa como denominação está conectada ao mundo da fertilidade. Nesse sentido, a lógica dos últimos três séculos mais recentes, que esteve ligada com maior exclusividade à indústria, ao mundo tecnológico exclusivo do ambiente urbano, sofre uma guinada agora e produz para muita gente uma admiração. Pessoas estão querendo saber como é, não só por conta da procedência, dadas as preocupações de natureza ecológica ou, claro, de proteção alimentar, de segurança, mas querendo também desvendar um pouco esse mundo misterioso. Eu acho que a humanidade do século XXI está olhando o mundo do campo, o mundo do agronegócio, não só como sustentador das nossas vidas e facilitador das nossas encrencas econômicas, mas também um mundo que, como não conhece, honra e respeita menos do que deveria.

GR: Ainda assim, parece haver uma desconfiança sobre a origem do alimento e dos processos produtivos. Por quê?

Cortella: São dois movimentos. De um lado, o fato de que existe todo um movimento de esclarecimento em relação aos problemas de uma indústria que, quando não cuidadosa, acabou perdendo a capacidade de um controle maior. Nesse sentido, o mundo da informação e da velocidade dessa difusão faz com que a gente tenha acesso a conhecimentos que não tínhamos. Não basta mais eu olhar a embalagem de um alimento. Já tenho à disposição no meu celular a possibilidade de ir sabendo cada um dos componentes que estão registrados no rótulo. Há também filosofias de vida novas, como o vegetarianismo, pela filosofia do que aquilo representa. O outro lado é a ideia de que nós nos afastamos tanto da nossa capacidade de também produzir parte das coisas da nossa vida, até que durante o movimento pandêmico houve uma explosão de pessoas que passaram a fazer pão em casa, a cuidar de produzir seus alimentos, de guardar aquilo que um dia pode ser a compota. Isso tudo faz com que eu olhe algo e, não que eu faça por desconfiar da indústria, mas porque também acho que posso ter autoria nisso. 

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GR: Qual o motivo de haver essa polarização entre quem consome e quem produz o alimento? É falta de entender o consumidor exigente ou de desconhecer o agronegócio?

Cortella: Nós temos alguma forma de desconhecimento que conduz ao preconceito do urbano, que, não entendendo direito o campo, supõe, de modo equivocado, que ali seja um local de atraso, portanto não tem visão nítida sobre o que significa essa área da produção humana. Por outro lado, algumas pessoas do campo entendem que há uma agressividade na forma de reação. Em alguns momentos, é preciso escolher o mocinho e o vilão. Quando a gente tem processos econômicos difíceis, momentos inflacionários que são mais difíceis de lidar, a primeira forma de ataque é o alimento que vem do campo, porque é o primeiro contato que é essencial e que ao chegar ao mercado vai se falar do preço do tomate, da cebola, da batata, do queijo, etc. E, de repente, de quem é a culpa? Acha o urbano que ele está tendo de pagar por algo que alguém lá na ponta é o responsável. Daí essa forma muito atrapalhada de relações que eu acho que começam a ficar mais nítidas nesses momentos pandêmicos. A gente vê quanto é necessário que a gente se entenda, porque a interdependência é muito importante. Se o povo não planta, não colhe, não abate, não tem alimento. E se eu não significar aquilo que consumo, não haverá necessidade da produção.

Se olhamos os sinais da humanidade, desde aquilo que se chama de homem pré-histórico, as marcas mais fortes da nossa convivência foram quase sempre em volta de uma fogueira, de um círculo de convivência alimentar

GR: O que podemos tirar de lição com essa pandemia? Você acredita que o ser humano será melhor com esse “novo normal”?

Cortella: Há muitas coisas que podemos tirar como ensinamento, afinal nós somos alunos e alunas da vida. E, por uma boa coincidência, a palavra "alumno" no latim significa a pessoa que está sendo nutrida, alimentada. Portanto, sabemos que podemos aprender várias coisas em meio à tormenta, entre elas a maior capacidade de solidariedade, a necessidade de economia dos recursos naturais e a necessidade de compreender o trabalho do agronegócio como aquele que, neste tempo, enquanto uma parte de nós se recolheu e pôde fazê-lo, foi porque alguém continuou na atividade de provimento dos recursos para continuarmos vivos. Evidentemente que esse tipo de percepção exige um aprendizado à necessidade de humildade pedagógica e intelectual. Por outro lado, não acho que vamos mudar tanto. Muita gente não poderá e não conseguirá ser mais como era. E esse tipo do “novo normal” talvez seja uma fase transitória para a gente aprender algumas coisas.

GR: Do ponto de vista da filosofia, existe diferença entre comer e se alimentar?

Cortella: Um dos principais pensadores da contemporaneidade é o antropólogo Lévi- Strauss, que tem um livro com o título O cru e o cozido, no qual mostra que o que nos diferencia dos outros seres vivos é que a nós não basta apenas a mera alimentação. Queremos que haja nessa nutrição algumas maneiras de dar um ar em que a nossa autoria esteja presente. Nesse sentido, a própria atividade de não ter o alimento apenas no estado original, mas ser capaz de sofisticá-lo, é uma maneira de expressar nossa cultura. Mas, tomando o ponto mais fundo da questão, se olhamos os sinais da humanidade, desde aquilo que se chama de homem pré-histórico, as marcas mais fortes da nossa convivência foram quase sempre em volta de uma fogueira, de um círculo de convivência alimentar. Portanto, a vida não é vida sem alimento. Alimentação não é só ingerir coisas que agregam proteína e carboidrato, mas também uma maneira de vida coletiva. Tanto que, quando este momento pandêmico tiver controle maior, a primeira coisa que quero fazer é cozinhar para meus filhos e netos.
Source: Rural

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