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Técnico agrícola faz a dispersão de químicos para combater gafanhotos em 1949 em Santa Fé (Foto: Tese de doutorado “La Lucha Contra La Langosta: Relações Bissociais na América do Sul (Argentina, Uruguai e Brasil, 1896-1952)", de Valéria Dorneles Fernandes)

 

Uma segunda onda pode fazer a nuvem de gafanhotos que viaja pela Argentina repetir o que ocorreu há 74 anos, entrar no Brasil e causar prejuízos à agricultura. O alerta é de especialistas brasileiros, que apontam semelhanças entre o avanço da praga no país vizinho, neste ano, com a crise ocorrida em setembro de 1946. 

Na segunda metade dos anos 1940, sucessivas nuvens causaram problemas ao sul do Brasil. Em 1946, segundo o entomologista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Jerson Guedes, os insetos teriam começado a se disseminar na região desértica e árida do Chaco, dividida por Argentina, Bolívia e Paraguai, e rumado para o sul.

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Em julho daquele ano, a praga foi localizada nas províncias de Corrientes e Santa Fé – exatamente como no começo deste mês. E, em meados de setembro, cruzou a fronteira com o Brasil e Uruguai pelo Rio Grande do Sul, chegando a São Paulo em novembro.

A atenção dos pesquisadores para o que ocorrerá nos próximos meses é explicada pela capacidade de reprodução das fêmeas. De acordo com o Serviço Nacional de Sanidade e Qualidade Agroalimentar da Argentina (Senasa), ao encontrar condições propícias, como solo arenoso e clima seco, os gafanhotos podem botar entre 80 a 120 ovos por dia.

Vídeo mostra gafanhotos avançando na Argentina

 

“Teoricamente, os insetos já fizeram postura na região das províncias de Santa Fé e Corrientes. Isso quer dizer que, em até 90 dias, eles teriam condição de voar e fazer uma nova migração. Possivelmente, pode chegar uma segunda geração, mas pode ter até mesmo uma terceira. Isso vai depender do inverno”, afirma Guedes.

O especialista destaca que a forte oscilação da temperatura em um único dia ou mesmo em diferentes semanas pode favorecer o sobrevoo dos gafanhotos quando os termômetros marcarem acima de 15ºC.

Fala-se muito do inverno gaúcho, mas as baixas temperaturas são intermitentes, não se mantêm por todo o dia. Não dá para descartar que a nuvem chegue ao Rio Grande do Sul

Jerson Guedes, entomologista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Mapa elaborado pelo entomologista da UFSM, Jerson Guedes, aponta semelhanças entre deslocamento da nuvem atual com a de 1946 (Foto: Reprodução)

 

Crise dos gafanhotos

 

O alerta de gafanhotos em 2020 tem semelhanças com o período entre 1944 a 1949, que foi marcado por sucessivas ondas e nuvens da espécie Schistocerca cancellata em boa parte do continente sul-americano, causando problemas à agricultura de países, como Argentina, Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai.

Quem estudou esses casos foi a historiadora Valéria Dorneles Fernandes. Após quatro anos de pesquisa, a tese de doutorado dela, aprovada em março passado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisou a incidência do inseto e as decisões das autoridades da época para o combate aos gafanhotos.

Helicóptero na Argentina faz a aplicação aérea para conter deslocamento de gafanhotos (Foto: Tese de doutorado “La Lucha Contra La Langosta: Relações Bissociais na América do Sul (Argentina, Uruguai e Brasil, 1896-1952)", de Valéria Dorneles Fernandes)

 

Ela explica que a primeira metade dos anos 1900 foi marcada por ondas em diversos momentos. Em 1906, por exemplo, a praga não só ultrapassou a região sul do Brasil como avançou sobre São Paulo e chegou até o Rio de Janeiro.

No biênio de 1914 e 1915, a incidência se repetiu – embora não na mesma proporção -, e o gafanhoto permaneceu no Brasil, no Uruguai e na Argentina. Uma nova onda tomou conta da região em 1933, com relatos de ataques em Uruguaiana (RS). Em 1935 e 1936, o boletim do governo federal destaca que 34 municípios gaúchos haviam sido atingidos por gafanhotos.

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Não se tem relato do inseto no início dos anos 1940, mas em 1945 e 1946 o Schistocerca cancellata voltou a causar problemas para a agricultura brasileira, passando por Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e parte de São Paulo.

Em 1946, mais 50 municípios gaúchos reportam perdas em cultivos de arroz, feijão, milho e trigo, entre outros plantios. "Em termos econômicos, o maior impacto foi em 1946. Mas esse gafanhoto sempre atacou as lavouras do sul”, explica a historiadora.

Na segunda metade da década de 40, argentinos usavam pequenos junkers no combate aos gafanhotos (Foto: Tese de doutorado “La Lucha Contra La Langosta: Relações Bissociais na América do Sul (Argentina, Uruguai e Brasil, 1896-1952)", de Valéria Dorneles Fernandes)

 

Segundo ela, enquanto Argentina e Uruguai já contavam com legislações que determinavam protocolos de combate ao inseto desde o começo dos anos 1900, o Brasil só aprovou uma legislação similar em 1948, quando culturas com maior participação nas exportações, como os cafezais paulistas, começaram a ser ameaçadas.

“Nós tínhamos órgãos importantes, como Instituto Biológico de Defesa Agrícola, ligado ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, com um setor dedicado à pesquisa de pragas. Porém, os pesquisadores estavam dedicados à lagarta rosada, por conta do algodão no nordeste, e à broca do café, que atingia as lavouras em São Paulo, deixando de lado a agricultura de subsistência”, conta.

(Foto: Senasa/Divulgação)

 

É justamente para combater os gafanhotos em cultivos de arroz que nasceu a aviação aeroagrícola brasileira, em agosto de 1947. No ano seguinte, uma nuvem estimada entre 6 mil a 8 mil hectares tomou conta do Uruguai, enquanto 1949 marcou a época em que a Argentina completou seis anos de uma intensa campanha de combate aos gafanhotos.

O país vizinho chegou a dispor de 1,8 mil pessoas para erradicar o inseto, usando quase 6 toneladas de inseticidas, de acordo com a historiadora. Em um balanço sobre a segunda metade dos anos 1940, Fernandes avalia que a entrada do inseto no Brasil e no Uruguai foi causada, provavelmente, pela oviposição de filhotes da praga originada na região do Chaco.

Brasil e Uruguai não são locais de remissão, eles recebem essa onda migratória. Então, quando a gente fala sobre gafanhoto, é importante dizer que nem sempre é a mesma nuvem. Às vezes, é a nova geração que fez a desova e continuou o seu movimento em busca de alimento. Por isso, o ideal é manter o monitoramento durante os próximos meses

Valéria Dorneles Fernandes, historiadora

 

 

 

 

Monitoramento constante

 

A convite do Ministério da Agricultura, Guedes, junto dos pesquisadores Clérison Perini, professor colaborador da UFSM, e Dori Edson Navas, da Embrapa Clima Temperado de Pelotas (RS), Jerson Guedes tem realizado treinamentos para técnicos do governo, além de órgãos das secretarias de Agricultura do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Vídeo mostra operação contra gafanhotos na Argentina

 

Os dois Estados tiveram a emergência fitossanitária decretada pelo prazo de um ano, o que permite ações emergenciais e estabelece diretrizes sobre medidas emergenciais a serem adotadas caso a praga chegue, de fato, ao Brasil. A grande preocupação de especialistas, governos e produtores rurais é com possíveis prejuízos à agricultura.

O problema é que os gafanhotos são predadores e comem quase todo tipo de vegetal que encontram pelo caminho. Por isso, as perdas podem ser muito grandes

Daniela Santos Silva, doutora em entomologia pela Universidade Federal de Viçosa (MG)

 

Segundo o governo de Córdoba, na Argentina, que faz divisa com a província de Santa Fé e está na chamada "área de precaução", em um quilômetro quadrado pode haver cerca de 40 milhões de insetos, que são capazes de comer o que 2 mil vacas consomem em um dia. Com a extensão da nuvem estimada em 10 km², pode haver até 400 milhões de gafanhotos.

Por conta da capacidade de agrupamento dos insetos, a chamada fase gregária, a nuvem pode se mover até 150 quilômetros em um único dia, segundo o Senasa. No entanto, esse deslocamento intenso é considerado algo raríssimo, observa Jerson Guedes.

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“Ela se deslocou 570 quilômetros em um mês, o que dá cerca de 20 a 30 quilômetros por dia. Todo mês, houve ventos na direção contrária. Esses 150 quilômetros são feitos uma vez na vida. Esses movimentos raramente ultrapassam 40 quilômetros, sendo que o maior movimento, neste ano, foi de 50 quilômetros”, diz.

Clérison Perini, entomologista pós-doutorando e professor colaborador da UFSM, acrescenta que os ventos não necessariamente determinam a direção dos gafanhotos. “Ele tem uma característica semelhante à do barco à vela, pois podem se posicionar para voar a favor, contra ou mesmo de lado do vento. O vento ajuda no deslocamento, mas não direciona. Quem direciona é o próprio inseto”, esclarece.

(Foto: Senasa/Divulgação)

 

Divisão da nuvem

Outro aspecto ressaltado pelos pesquisadores é que não se trata de uma única nuvem. Paralelamente ao seu deslocamento desde o Paraguai, passando pelas províncias argentinas de Formosa, Chaco, Santa Fé e Corrientes, chegando próximo à província de Entre Ríos, em direção ao Sul, muitos insetos ficam pelo caminho, podendo gerar novas nuvens no futuro.

“Não é uma única nuvem ou frente que está descendo. Normalmente, os gafanhotos se dividem quando levantam voo, podendo ir para diferentes lugares. Deu para perceber que, ao atravessarem da província de Santa Fé para Corrientes, eles vieram para o lado leste, em direção ao Brasil. Enquanto algumas nuvens se deslocaram para norte e Nordeste, outras vieram para o sul, em direção a Entre Ríos”, afirma Perini.

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Por isso, o entendimento é que os técnicos agrícolas do Senasa terão de fazer um trabalho de monitoramento nos lugares de deslocamento da praga, visando retirar os ovos do solo e erradicar os gafanhotos na fase juvenil, as chamadas ninfas. Isso inclui parcerias com os governos de Brasil, Uruguai e Paraguai, que fazem fronteira com a Argentina.

“O gafanhoto não vai migrar todo o ano. Vai migrar na fase gregária com o aumento da população na busca por alimento”, explica Dori Edson Navas, pesquisador da Embrapa. “Nós não temos como dizer ao certo se vai chegar ou não. Depende de fatores climáticos e do crescimento da população. Mas é importante que o Brasil esteja preparado”, completa.
Source: Rural

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