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Navio carregado com soja para exportação no Porto de Santos (SP) (Foto: Paulo Whitaker/Reuters)

 

A comercialização da safra 2019/20 está a todo vapor. Somente na soja, são 8% a mais de volume de produção em relação à safra passada. A soja é o maior exportador do agro brasileiro, trouxe desenvolvimento para inúmeras regiões brasileiras e se transformou na mais importante fonte de proteína vegetal para alimentação animal. No entanto, agendas positivas sobre as boas perspectivas do negócio têm sido deixadas em segundo plano e substituídas por discussões sobre insolvência e os benefícios que o produtor rural pode alcançar ao apoiar-se em um extenso e moroso processo de recuperação judicial.

Recuperação Judicial (RJ) é um instituto legal do nosso ordenamento jurídico. Empresas em situação econômica deteriorada entram em RJ a todo momento e a esperança é que elas, de fato, se recuperem. Impossível negar o grande valor de um instituto que ofereça ao devedor de boa-fé a possibilidade reestruturar um negócio em severa dificuldade financeira.

Mas, especificamente no caso das recuperações judiciais em curso no setor rural, nasceu uma indústria que se aproveita sim de um vácuo normativo. E por mais que se insista no argumento de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenha pacificado o assunto – o que não é verdade, pois houve apenas um julgamento colegiado, não vinculante e ainda há outra turma do STJ para se posicionar – e que, portanto, não haveria um vácuo a ser discutido, não é esse vácuo que interessa às cadeias do agro brasileiro.

O que importa, na verdade, é o vácuo de que o Judiciário ainda não entendeu que, dado o elevado risco moral de se emprestar para uma pessoa física, que historicamente sempre atuou assim e que, por isso, não está obrigada a possuir os devidos controles financeiros e contábeis de uma empresa, não pode simplesmente se transformar depois, sem qualquer aviso prévio, em empresário rural sujeito à RJ. É preciso separar os oportunistas daqueles que, por problemas de insolvência ou crises de clima ou pragas, realmente precisam de uma recuperação judicial.

Mas a indústria da RJ de produtor, convenientemente, não gosta de contar detalhes das recuperações por ela estruturadas. Ela esconde, pelo menos, três deles:

O planejamento proposto ao pedido de RJ se inicia no período de plantio da safra, quando o produtor se financia, mas se efetiva quase uma ano depois, após a colheita, quando os armazéns estão cheios. Os produtores são orientados a aumentar o nível de endividamento, visando expansão da produção, porque sabem que, deferido o pedido da RJ após a colheita, poderão vender a mesma produção pela segunda vez. Como muitas vezes os processos seguem em segredo de justiça entre o pedido e o deferimento da RJ, a trading que comprou a produção antecipadamente no período de plantio, para atender uma demanda por financiamento do próprio produtor, descobre, subitamente, que não receberá o produto adquirido.

A oferta de serviço advocatício para recuperação judicial, discurso que não aparece para o público em geral, promete ao produtor a chance de, judicialmente, não honrar com compromissos assumidos junto aos seus fomentadores. Sequer fala-se sobre problemas de insolvência e estresse financeiro, pois a promessa é de ganhar a chance de pagar débitos com deságios altíssimos, em suaves e inúmeras prestações, protegendo seus bens dos credores.

A estratégia de implementação da RJ é devidamente pensada para que Judiciário receba informações financeiras e contábeis muito mais completas do que aquelas apresentadas aos fomentadores no momento da concessão do crédito e da venda da produção a ser colhida no futuro. Como num passe de mágica, o produtor rural pessoa física, antes desobrigado de fazer balanço patrimonial e demonstrações de resultados, se apresenta em seu pedido de RJ como empresário rural devidamente registrado e com informações econômico-financeiras capaz de causar inveja a muitas empresas de pequeno e médio porte no País. Com isso, tem seu acesso garantido à recuperação judicial e os planos apresentados naquelas RJs deferidas pelo Judiciário comprovam que há enorme assimetria de informação na concessão do crédito.

Falta entendimento de um ponto fundamental: as tradings são parceiras históricas do produtor rural. Um não vive sem o outro! Diferentemente do que alguns têm pregado, as tradings não financiam o produtor. Oferecem à ele a possibilidade de vender sua produção antecipadamente, reduzindo riscos de mercado e, com essa venda antecipada, os produtores obtêm recursos para fazer o plantio da produção. Quem sai a campo convencendo o produtor de que ele pode vender a produção antecipadamente, e depois vendê-la novamente para outro comprador após a colheita, não está em posição de questionar o enorme valor que as tradings geram para o produtor de grãos brasileiro.

A mais nova fala daqueles que se dizem defensores dos produtores rurais é que, por defenderem que as Cédulas de Produto Rural (CPRs) não devam estar sujeitas às recuperações judiciais, as tradings estão pedindo tutela do governo. Isso não é verdade. As empresas necessitam apenas que o legislativo feche o vácuo normativo hoje existente que autoriza um produtor rural aceito em RJ, que não passou por frustação de safra, a não entregar a produção vendida por meio de CPRs e para cujo plantio as tradings forneceram capital. Se tal comportamento oportunista virar regra no Brasil, é evidente que o crédito privado para produtores rurais vai ficar mais caro, o mercado muito mais exigente e toda a estratégia do governo de atrair o mercado de capitais para financiar a produção lastreada em CPRs vai desandar.

O produtor é um bom pagador, e não combina com a indústria mais frutífera – literalmente – do País o estigma de oportunista. Seria ingênuo pensar que a produção deixará de operar com tradings, bancos, parceiros comerciais e outras fontes de financiamento. Todo negócio precisa de um parceiro comercial que acredite nele para prosperar. O que precisamos espalhar é a disposição dos produtores brasileiros em focar no que realmente é a alma do negócio: produzir, gerar riqueza, e manter relações de confiança que o ajude a prosperar. Essa agenda positiva só tem a contribuir para o setor e atrair bons olhares para o Brasil nos anos que estão pela frente.

*André Nassar é presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove).

((As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do seu autor e não representam necessariamente a opinão editorial da Revista Globo Rural))
Source: Rural

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