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A tradicional pega de boi ocorre em meio à vegetação da Caatinga, em Floresta (Foto: José Medeiros)

 

O vaqueiro é a mola mestra de uma das atividades econômicas mais notáveis no território brasileiro, a pecuária. Essa cultura está espalhada por todo o território nacional, e em cada recanto se expressa com suas peculiaridades nas adaptações locais.

O mestre artesão Preto Leite, dono de um saber ancestral, em sua oficina (Foto: José Medeiros)

 

No Nordeste, a razão de vestir couro é proteger-se das defesas da Caatinga. Se há quem se traje em couro é porque ainda existe floresta, portanto, preservar o vaqueiro e sua tradição é preservar a Caatinga. Entretanto, a tarefa de proteger o vaqueiro é do artesão, por isso, em matéria de produzir indumentária para os vaqueiros, em cada região surge algum notório “mestre do couro”.

Os devotos na Missa do Vaqueiro, em Serra Talhada (Foto: José Medeiros)

 

Esse é o sertão que tanto impressionou Euclides da Cunha, que foi romanceado por Raquel de Queiroz, cantado pelo rei Luiz Gonzaga, cavalgado infinitamente pelo mestre dos vaqueiros, Raimundo Jacó, povoado pelo europeu, o africano escravizado e os remanescentes daqueles que aqui já estavam antes da primeira caravela.

A vaqueira Soneide Menezes é um símbolo no sertão. A vestimenta de couro é uma armadura contra os espinhos, que fazem parte dos mecanismos de defesa desenvolvidos pelas plantas para resistir às condições extremas do Semiárido (Foto: José Medeiros)

 

O sertão é também um lugar de disrupção, de quebra de paradigma. Na zona rural de Floresta vive Soneide Menezes de Sá. Mãe, avó, mulher vaidosa e destemida, que escolheu vestir o couro não por moda, e sim por simpatia à lida do gado, coleciona vitórias em várias “pegas de boi” e outras tantas no lavoro diário que ela guarda para si, no silêncio do fim do dia. Confira abaixo a entrevista com a vaqueira.

 

  Na Missa do Vaqueiro, não é à toa que ela está na comissão de frente, literalmente à frente de centenas de homens, respeitada e reverenciada pela mulher que é e por aquilo que ela representa como ruptura desse sertão estereotipado, que, em verdade, não é seco, é fluido; que não é árido, é fértil, inventivo e inovador.

Vaqueiros(Foto: José Medeiros)

 

Esses homens – e mulheres – de face embrutecida, que os livros de história caracterizam como rudes e de pouca cultura, vestem couro e fazem de suas vidas uma arte. Dentro da Caatinga, em busca do gado perdido, tornam-se “centauros”, unindo-se como um único ser à sua montaria, numa sintonia de velocidade, força e coragem. Não são segundos, horas ou dias que determinam o êxito do bom vaqueiro, sua missão é trazer o gado ileso. Quanto mais cuidadoso e destemido, mais valoroso e renomado é o vaqueiro. Seu papel é zelar pelo rebanho, mesmo que isso lhe custe algumas cicatrizes – estas serão guardadas como troféus de combate sob a proteção de suas crenças e devoções religiosas.

O sertão ainda abriga, em seus inúmeros recantos e paisagens, tradições culturais que sobrevivem aos avanços das tecnologias, que encurtam as distâncias, afastam as pessoas e aceleram o passar dos dias. O sertão tem seu próprio tempo (Foto: José Medeiros)

 

(Foto: José Medeiros)

 

Hoje, a Caatinga já deixou de existir em 68% de sua área, mas a presença do vaqueiro encourado persiste como símbolo da cultura de uma região e como força de trabalho. Gerações transitam por dentro dos gibões, hereditariamente transmitem conhecimentos e multiplicam-se nas diversas faixas etárias. Transpiram duma valentia regada a aguardente, movida por histórias fantásticas que falam de bois “místicos”, os quais desafiam os mais afamados e os derrotam, se eternizam em poesia infinita, sob forma de aboios e versos improvisados, perpetuando os momentos de glória dos “guerreiros das caatingas”.

Acima, o sanfoneiro na solidão da Caatinga (Foto: José Medeiros)

 

Na comunidade de Santana, zona rural de Serra Talhada, o aboio resiste em família. Antônio João da Silva, conhecido como “Antônio Lolô”, e seus filhos Edvanildo e Iranildo “Lolô” respiram incansavelmente essa expressão tão peculiar do universo do vaqueiro. Com origem nos cânticos muçulmanos, esse “lamento” poético é a forma de perpetuar em verso história e estórias que jamais deverão ser esquecidas.

O clã dos Lolôs (o pai Antonio e seus filhos Edivan e Iran) (Foto: José Medeiros)

 

O vaqueiro João Bão, rodeado de dezenas de netos, se orgulha das quase cinco décadas de sua vida dedicadas ao ofício. Percorre, em família, as inúmeras “pegas de boi” da região, buscando manter viva a “chama” daquilo que nasceu para ser.

O contraponto com a modernidade: o público registra a corrida da pega de boi em seus celulares (Foto: José Medeiros)

 

O couro ainda movimenta economicamente a região. Mesmo com o advento de materiais sintéticos, a pele natural tem o seu lugar, principalmente na indústria de calçados e acessórios. O processamento de peles ganha mercado indicando números extraordinários. Um curtume da região beneficia 8 mil peles por dia, um total de 208 mil por mês: são quase US$ 2 bilhões movimentados por ano, apontando que a “civilização do couro” é, ainda, um valoroso potencial da região. Contudo, aos poucos, o processo industrial devora e traz melancolia ao curtume tradicional, liquidando gradativamente os processos artesanais, que foram desenvolvidos com a inovação dos pioneiros na detecção e obtenção de insumos locais, como a casca do angico, a cal e as cinzas colhidas nos fogões dos vizinhos.
Source: Rural

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