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A lama cortou o milharal, desceu pasto abaixo e parecia mais o fim do mundo (Foto: Niels Andreas/Ed.Globo)

 

A lama cortou o milharal, desceu pasto abaixo e parecia mais o fim do mundo. A mulher-tabuleiro nem tinha mais lágrimas para chorar. Andava como num pesadelo, ajudando um aqui outro acolá. Sonhava com os bombeiros que pareciam desenhos de demônios da Idade Média ou quadros de Bosch, nem sabia mais.  O marido passava os dias procurando por procurar os restos da fazenda e voltava imundo, jogava as roupas sujas no chão da cozinha, e não conversava de tão doído que estava.

Para ela era pior ainda, ver o companheiro tão triste e furioso que nem uma boa palavra tinha. Preparava um chá para ele que era a única coisa que lhe descia garganta abaixo.

Que catástrofe! E os empregados e os amigos desaparecidos. Por ela faria a mala e iria para a cidade se encontrar com os meninos. Sabia que estavam sãos e salvos, mas o coração apertava de pensar neles. E como o tempo custava a passar e a paisagem sempre a mesma, aquela cor nojenta, aquela textura de areia movediça dos gibis da infância.

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Parecia uma carola, sempre com o terço enrolado nas mãos, murmurando rezas sem sentido. Sabia que o marido saía e matava os bois que não conseguiam se salvar, com aquelas caras resignadas, os olhos tentando compreender, mas embaçados, sofridos, machucados.

De repente escutou um cacarejar de galinhas. É claro que alguma franga voadeira e magrinha sobrara do caos. Estava enfiada dentro de um monte de folhas e telhas, os olhos miudinhos cobertos de lama, mas piscando sem fim. Coisa de galinha, só faltava se acostumar ao lodo.

Chamou o caseiro, que nem coragem tinha de se atrever a andar naquela lama. Ele veio com suas grandes botas, nervoso por ter de mexer com aquele bicho naquela hora tão triste. Segurou a bichinha pela asa e voltou para entregá-la depois de um banho de esguicho. A ave ensopada e limpa já nem se lembrava do turbilhão que a jogara solta no mundo e procurava feliz por algum bicharoco nas pedras. A mulher quis chorar muito, achou que a franga representava um renascimento, a primeira coisa viva e alegre no meio da intensa tristeza.

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Como se não bastasse a carijó escondeu-se num canto cheio de jornais velhos e o coração da fazendeira tremeu. Sabia o que estava para acontecer, mas virou-se de costas e entrou em casa. Foi até o pequeno altar da santa negra, coberta com seu manto de estrelas. Rezou do mais profundo do seu ser, fez-se uma com a virgem do rio, tão milagreira, que um dia também fora pescada de águas turvas.

Na noite escura o fazendeiro voltou pouca coisa mais feliz, de lingua solta, contando que salvara um boi ajudado pelos vira-latas que sacudiam os rabos  pela cozinha como se entendessem o mundo.

Ela sabia que o milagre acontecia, mas nem foi olhar. Passou a noite rezando baixinho para não acordar o marido, exausto, e de manhã, confiante, andou a passos largos até o ninho da galinha. O ovo estava lá, muito branco, a carijó abriu as asas num escândalo, e a fazendeira sentiu que a esperança renascia representada naquele simples ovo, que apertou na mão, junto do coração. Ovo de galinha carijó, arauto de coisas boas que um dia renasceriam da lama podre.
Source: Rural

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