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Agricultores de Ivoti, RS, discutem detalhes técnicos na produção de óleos essenciais a partir de ervas medicinais (Foto: Marcelo Curia)

 

Desde o início do ano, as comunidades de nipo descendentes festejam os 100 anos da imigração japonesa para o Brasil. São eventos variados como concertos sinfônicos no Rio e São Paulo, um torneio de balonismo em Maringá, uma competição de golfe em Arujá, o lançamento de um livro em Bastos, a inauguração de um parque em Curitiba, um concurso de miss (a belíssima dentista paulista Karina Nakahara foi eleita miss Centenário Brasil-Japão), a entrega de uma praça em Londrina, uma disputa de karaokê em Araçatuba, uma missa em João Pessoa e um festival de gastronomia em São Paulo.

Sem dúvida, um dos pontos altos desse ciclo de festividades será a “recriação” da chegada do navio Kasato Maru ao armazém 14 do porto de Santos, no mesmo dia 18 de junho em que, um século atrás, chegaram as primeiras 158 famílias japonesas, totalizando 785 pessoas. Apesar do improviso inicial e dos sacrifícios inerentes a uma mudança tão drástica de vida, é costume fazer um balanço positivo da empreitada. Ao longo dos quase 80 anos desse descontínuo fluxo migratório, trocaram o Japão pelo Brasil cerca de 300 mil pessoas. Segundo cálculos recentes, a população brasileira de origem japonesa soma, hoje, 1,5 milhão de pessoas. Não é mais numerosa porque cerca de 300 mil brasileiros de olhos puxados mudaram-se nas duas últimas décadas para o Japão a fim de desfrutar de oportunidades de trabalho abundantes lá e escassas aqui. São os dekasseguis, isto é, descendentes de japoneses que voltaram à terra natal dos seus pais, avós ou bisavós. Muitos mal falam o japonês e vivem em redutos de brasileiros. Têm em comum os olhos puxados e o falar português. Por não se misturar com os japoneses, são discriminados. O que confirma a velha regra: em qualquer país, não é fácil ser gaijin.

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O pêndulo dos movimentos migratórios oscila de acordo com o maior ou menor magnetismo de cada economia. Agora é o Japão que oferece emprego aos brasileiros. Cem anos atrás, era o Brasil que acenava para os japoneses. Além da inquietação natural que move o homem e o mantém na busca incessante da terra prometida, toda migração tem forte motivação econômica e algum fundo político.

Desde 1868 o governo japonês incentivava a emigração como uma das soluções para a crise socioeconômica do longo transe do feudalismo para o capitalismo. Milhares de japoneses emigraram para a Austrália, os Estados Unidos, o México e o Peru. Não deu muito certo. A maioria voltou. Até que no território ianque, o principal destino da emigração, a entrada de japoneses foi proibida em 1908. Uma das alternativas então foi o Brasil. Aqui se cultivava a lenda de que, como trabalho livre na lavoura de café, um imigrante podia fazer fortuna em pouco tempo. Ledo e vil engano. Na realidade, não bastava ser muito bom de enxada. Para conseguir um lugar ao sol nos cafezais da aurora do século XX, era preciso ser muito mais esperto do que os outros. Alguns aventureiros já tinham vindo para cá, isoladamente, em busca da fortuna. Em 1907, foram feitas sondagens para estabelecer colônias, mas não prosperaram.O início oficial da imigração foi mesmo 18 de junho de 1908.

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Daquela leva de imigrantes que desembarcaram do KasatoMaru, a maior parte foi encaminhada para fazendas de café do norte paulista. De Ribeirão Preto, festejado como o eldorado sul-americano do final do século XIX, dezenas de japoneses fugiriam do trabalho duro nas fazendas. Da maior delas, pertencente à família do voador Santos Dumont, eles foram expulsos logo nos primeiros dois meses por agitar o colonato, composto principalmente por italianos. O bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, foi desde cedo o quilombo dos fugitivos de olhos puxados. Mais do que um ponto de encontro, foi também um local de partida para a busca de algum eldorado de fato. Busca que se repetiria ciclicamente ao longo do século, estendendo-se a diversos pontos do território brasileiro. Em 1911, nos arredores da capital paulista, já se espalhavam hortas de japoneses. Aproveitavam várzeas ociosas que em apenas dois meses de trabalho já geravam renda. Bom para os imigrantes, para os proprietários das terras e também para os consumidores. Até então, a produção de verduras para a população paulistana era tarefa de portugueses e espanhóis.

SHUNJI NISHIMURA, pioneiro em mecanização, mostra maquinário antigo da Jacto (Foto: Valeria Gonçalvez/ AE )

 

Foi precisamente aí, na olericultura, que se deu a maior contribuição dos japoneses à lavoura brasileira. Nos primeiros 12 anos, chegaram ao Brasil cerca de 20 mil japoneses. Nos anos 1920, eles foram os estrangeiros que mais entraram no Brasil, agora não mais subsidiados pelo governo paulista, mas pelo governo do Japão, que assumiu a responsabilidade de proteger seus súditos no exterior. Segundo uma estatística divulgada no século XX por estudiosos da colonização, apenas um terço dos imigrantes japoneses cumpriu seus contratos nas fazendas de café, onde a regra era passar quatro anos formando cafezal. Se tudo desse certo depois desse período, o colono podia colher a primeira safra (seu direito contratual) e sair com dinheiro suficiente para comprar uma terrinha e tocar a vida mais ou menos independente, com a bênção de São Pedro.

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Mas como se sustentar durante o período de formação da lavoura de café? Complicado. Somente uma minoria tinha argúcia e paciência para esperar o fim do contrato. Por sua resposta rápida, a horticultura foi uma saída. Com resultados mais lentos, a fruticultura foi uma extensão dos canteiros de hortaliças. Olhando para trás, porém, vê-se em cada canto do Brasil a mão do agricultor de origem japonesa. A mão e o olho. Além da habilidade para lidar com a terra, uma relação serena com o tempo – fruto, talvez, de uma cultura de 2.500 anos.

Em nenhum momento foi fácil. Em 1934, um surto xenófobo limitou a imigração japonesa a 2% da média dos últimos 50 anos. Na prática conteve-se o fluxo de japoneses quando eles já eram perto de 200 mil, fora os descendentes. Entre os chegados na década de 1930, estava o técnico  agrícola Shunji Nishimura. Magro e muito observador, não demorou a concluir que o futuro da agricultura brasileira estaria na mecanização, ainda escassa na maioria das propriedades rurais. “Conserta-se Tudo”, mandou escrever na placa da oficina que abriu em Pompéia, perto de Marília. A região se abria para os cafezais que logo em seguida invadiriam o norte do Paraná – paulistas à frente, mineiros e nordestinos no meio, japoneses atrás.

Família de imigrantes japoneses em trajes europeus num cafezal paulista na década de 20 (Foto: Acervo do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil – São Paulo)

 

A fabricação de pulverizadores manuais de veneno contra insetos abriu caminho para uma das maiores indústrias brasileiras de máquinas e implementos agrícolas. Tempos duros, aqueles. Somente uma década depois Nishimura conseguiu organizar-se empresarialmente. Este ano a Jacto está festejando 60 anos. Fabrica desde bombinhas costais para horticultura fruticultura até pulverizadores mecanizados-computadorizados com duas asas de 12 metros cada uma. Na década de 1970 lançou uma gigantesca máquina de colher café com mais de mil cópias vendidas no Brasil. Este ano, está colocando no mercado uma colheitadeiras de laranjas. Perto de completar 100 anos, Nishimura já entregou a Jacto aos filhos, mas não perde de vista a menina dos seus olhos: a escola de formação de técnicos agrícolas, embrião de uma fundação educacional que faz de Pompéia uma das cidades brasileiras mais influenciadas pela pertinácia de um imigrante japonês.

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Já na época da Segunda Guerra ou pouco depois havia japoneses plantando arroz, feijão, milho e soja – esta,em espaços limitados, para a alimentação doméstica – em municípios paulistas como Orlândia, São Joaquim da Barra, Ituverava e Guaíra, situados na porção meridional do cerrado. Como as terras mais férteis da região estavam ocupadas por cafezais, esses pobres colonos precisavam caprichar na adubação de roças aberta sem solos ácidos, dominados por capim barba-de-bode e pontilhadas por árvores retorcidas pelo fogo de toda estação seca.

Soja, mucuna-preta, feijão-de-porco e crotalária foram as principais leguminosas cultivadas como adubação verde, num esforço consciente – e monitorado por técnicos do IAC – Instituto Agronômico de Campinas, a partir de 1951 – para enriquecer o solo com nitrogênio e matéria orgânica. Foi assim que se tornaram viáveis para todo tipo de lavoura as terras incultas do cerrado, bioma que cobre 22% do território brasileiro e há pouco mais de 30 anos hospeda uma das maiores revoluções agrícolas do planeta. Entre os pioneiros dessa epopéia aparecem nomes como Takayuki Maeda e Hirofumi Kage. Este foi um dos primeiros a plantar soja em Guaíra. Aquele, o rei do algodão de Ituverava a Itumbiara, no sul de Goiás. Longa e interrupta, essa fabulosa história ainda está para ser contada. Na correria que caracteriza a abertura das fronteiras agrícolas, ninguém parece ter tempo para olhar para trás. De alguma maneira, porém, pode-se dizer que, fora os goianos e mineiros que sempre estiveram lá e os gaúchos avulsos que desde a ditadura Vargas cruzavam o Brasil Central com a fantasia de lavrar aquelas vastidões planas, a moderna saga da tropicalização da soja coincide com a silenciosa presença nos cerrados dos nipo agricultores. Como no caso do aço em 1950 e do minério de ferro em 1960, quando o governo japonês financiou a construção do novo porto de Vitória pela Cia. Vale do Rio Doce, os japoneses fizeram nos anos 1970 uma nova parceria com os mineiros da empresa Campo. Objetivo, produzir soja para o mercado  asiático. Além de financiar a empreitada (500 milhões de dólares), o governo japonês mexeu os pauzinhos para colocar em campo a prata da casa. No caso, sócios da onipresente Cooperativa Agrícola de Cotia, que promoveu um transplante de colonos para pontos estratégicos do Centro-Oeste. O projeto foi articulado em parte pelo ministro Alysson Paulinelli, mineiro de Bambuí que desde o tempo da faculdade de agronomia em Lavras buscava uma fórmula para fazer a agricultura deslanchar no Centro-Oeste. Se os gaúchos chegavam com tratores, os japoneses vinham com um modo diferente de tratar a terra. Essa visão menos mecânica da atividade agrícola fez diferença em alguns lugares do oeste mineiro e do leste goiano.

A Cooperativa Agrícola de Cotia chegou a reunir 16.309 cooperados e 10.796 funcionários em sua sede, em São Paulo, e em representações espalhadas pelo país. Foi relevante para setores estratégicos da agricultura brasileira, principalmente olericultura, e teve grande contribuição no desenvolvimento da fruticultura.

Como na música de Chico Buarque, “tem um japonês atrás” de alguns dos principais episódios da agricultura brasileira, especialmente da horticultura e da fruticultura. Há um indiscutível sotaque no café do cerrado, nas maçãs de São Joaquim, no alho roxo de Curitibanos e Frei Rogério, nas uvas de mesa do vale do Sinos ou do norte do Paraná, nas mangas do vale do São Francisco, na pimenta-do-reino do Pará ou no mamão do Espírito Santo. Por isso, não surpreende que um descendente de japoneses, Carlos Sediyama, seja o reitor da Universidade Federal de Viçosa, uma das potências brasileiras do ensino e da pesquisa agronômicos, fundada em 1928.

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Agora que a amizade nipo-brasileira ganha uma nova dimensão, dada pela forja do tempo, o fluxo de migrantes Brasil Japão se reveste de novas características. A mais evidente é a globalização. Ela pode ser observada tanto em São Paulo, a maior cidade japonesa do Brasil, quanto em Ivoti, uma das menores colônias do país. Fundada em 1966 no vale do rio dos Sinos, berço da colonização alemã no Rio Grande do Sul, essa micro colônia viveu inicialmente da avicultura, depois aderiu à fruticultura (uva de mesa) e por último abraçou a produção de flores em larga escala. Tanta migração de atividade agrícola foi determinada pela competição mercadológica. Os 52 sítios originais, com áreas variando de quatro a sete hectares, continuam na mão das famílias pioneiras, mas muitos terrenos estão sem uso. Causa principal, a fuga das novas gerações para atividades urbanas ou a corrida para o eldorado japonês. Muitos foram, alguns até voltaram. A maioria continua procurando sobreviver da exploração da terra, num esforço para honrar o compromisso inicial dos ancestrais.

No momento, a porção nipo de Ivoti está empenhada num novo desafio: produzir óleos essenciais de plantas medicinais. Quinze sitiantes abraçaram o projeto lançado pela prefeita de origem alemã e apoiado pelo Sebrae. O líder é Fábio Sato, 36 anos, um dos três agrônomos formados na colônia (dos outros, um produz mudas e o terceiro está no Japão). Contratado temporariamente pela prefeitura para levar adiante o novo empreendimento, Sato plantou seu meio hectare de ervas, produz algum tomate e mantém com a mulher, Yuri, uma produção intensiva de artesanato de bambu, vendido em feiras e eventos. Com um filho de quatro anos, o casal se ressente do esvaziamento da colônia, mas está agradavelmente surpreso com a recente aparição em Ivoti de novos adeptos do modo de vida oriental.

Um dos visitantes mais assíduos é Guilherme Arendt Pedroso, 24 anos, estudante de administração em Porto Alegre. Três anos atrás, ele foi para Londres estudar inglês. Na própria escola, conheceu Rena, que viera do Japão com o mesmo objetivo. Depois de um ano e meio, os dois vieram a Porto Alegre para ela conhecer a família dele, mistura de alemã com ibero-luso. Pouco depois, passaram um mês no Japão para ele conhecer a família dela. Pouco mais de um ano depois do casamento,  nasceu César/Takezo, binacional de oito meses, que cresce ouvindo três línguas: além do inglês usado na comunicação dos pais, escuta o japonês da mãe e aprende o português do pai. Guilherme, Rena e seu pequeno samurai são vistos em Ivoti não como turistas, nem como imigrantes, mas como uma espécie de frutos da globalização que acelerou não apenas os negócios, mas dinamizou as viagens, as migrações e as relações entre os povos. “Agora é tudo mais fácil e mais rápido”, diz Guilherme, referindo-se ao contraste entre o navio das primeiras imigrações e o avião das últimas viagens.

Tempos difíceis

Para os imigrantes japoneses, os momentos mais difíceis no Brasil foram durante a Segunda Guerra Mundial, quando (em agosto de 1942) o governo brasileiro declarou guerra ao Japão, abrindo um ciclo de hostilidades aos inimigos internos. Proibidos de ensinar japonês, os 300 mil imigrantes e seus descendentes tiveram bens confiscados e foram confinados no interior. Mais ligadas à Ásia do que às Américas, cerca de 500 nipo comunidades interioranas, situadas principalmente no estado de São Paulo, submeteram-se a um longo silêncio que até hoje faz eco na história das imigrações para o Brasil. Havia uma revolta surda, pois torcer pró Japão era perigoso. Pior foi no final da guerra, quando surgiram conflitos dentro da própria sociedade nipo-brasileira. A seita Shindo Renmei, criada por nacionalistas inconformados com a derrota do Japão, aterrorizou compatriotas que acusavam de derrotismo, entreguismo ou, pior, de colaboração com o inimigo. Foram assassinados 16 japoneses e/ou descendentes, entre eles o presidente da cooperativa agrícola de Bastos, próspero centro de criação de bicho-da-seda, no oeste paulista. A seda, antes da invenção do náilon, era matéria-prima fundamental para a confecção de pára-quedas. Na visão estreita dos fanáticos, era traição produzir ou exportar seda ou qualquer produto, como o óleo de hortelã-pimenta, que ajudasse o inimigo. As feridas da guerra demorarama fechar. Apenas no início dos anos 50 os dois países reataram as relações diplomáticas.

Enzo, o rokussei

Ichi, ni, san… quem fez aulas de caratê aprendeu a contar até dez em japonês.E é com estes  números que se faz a contagem das gerações. Issei vem de um, e indica a primeira geração. Nissei vem de dois, segunda geração. E assim foi até que se chegou a gossei: e Vanessa Maymi Nakamura Onishi soube, aos 12 anos, que ela era a primeira pessoa da quinta geração a nascer no Brasil. Depois, a surpresa: a televisão estatal japonesa NHK, identificou o filho dela, Enzo Yuta Onishi, como o primeiro da sexta geração – um rokussei.

Enzo Yuta Onishi, (Foto: Arquivo Pessoal)

 

 

 

 

 

 

 

Para o avô, Ossamu Nakamura, é uma responsabilidade a mais. Ele conta que, quando a família soube que Vanessa era a primeira gossei, houve uma preocupação em informá-la melhor a respeito de seus ascendentes. Uma preocupação que agora se repete. “Nós queremos aproximar o Enzo da cultura japonesa. Queremos que ele aprenda como viviam seus antepassados, que aprenda a respeitá-los.”O pequeno Enzo, além de se divertir assistindo aos torneios de sumô com seu avô, já aprende com ele os valores da cultura oriental. Agora resta esperar pelo primeiro nanassei.

 

(Reportagem publicada na edição 272 da Revista Globo Rural, em junho de 2008)

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Source: Rural

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