Arnaldo, um dos líderes dos Paresi, na lavoura de soja em Campo Novo do Parecis (MT) (Foto: Mayke Toscano e José Medeiros)
Na manhã abafada e cinzenta do começo de novembro, Arnaldo Zunizakae, de 47 anos, acompanha o plantio dos últimos talhões de soja no território dos Paresi, a 40 quilômetros de Campo Novo do Parecis, no norte de Mato Grosso. Três plantadeiras puxadas por tratores de alta potência, conduzidos por jovens indígenas, despejam as sementes no solo.
Branco, como Arnaldo é chamado pelos índios, lidera os trabalhos do campo. “O que a gente quer é liberdade para produzir e progredir. Nasci numa aldeia em Tangará da Serra, ainda pequeno fui trabalhar com o meu pai na extração de borracha numa fazenda aqui perto de Campo Novo. Ajudava meu pai na seringa, catava raízes e matava formiga. Até os 7 anos, não falava português. Morava nessa aldeia (Bacaval) com meus avós. Eles me ensinaram as tradições e a cultura paresi. Quando não tinha trabalho, vendia filhotes de papagaio nos postos de gasolina à beira da estrada. Com o fim da borracha, os índios saíram da aldeia, foram morar na cidade, em condições precárias”, conta ele.
Os Paresi estão em pé de guerra. Mas, em vez de flechas e tacapes, se armaram de tratores, sementes, plantadeiras e colheitadeiras. Nesta safra, a tribo semeou 10 mil hectares com soja. O plantio mecanizado na reserva, demarcada na década de 1980, começou há 15 anos com arroz, em parceria com fazendeiros da região.
A tribo enfrenta ações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama)e a oposição de algumas entidades indigenistas. O órgão já aplicou 44 multas, que totalizam R$ 129,2 milhões, e embargou 16.200 hectares sob a acusação de os índios terem arrendado ilegalmente essas terras na safra 2017. O Ibama constatou ainda o plantio de milho transgênico na reserva, proibido por lei. Foram autuados 16 arrendatários, duas fazendas e cinco associações indígenas. Branco admite o plantio de milho transgênico, mas nega que os Paresi tenham arrendado as terras. Com a ajuda da Fundação Nacional do Índio (Funai), a tribo tenta anular as multas.
A cacique Miriam, da Aldeia Bacaval, em Campo Novo do Parecis (MT) (Foto: José Medeiros)
A novidade nesta safra é a autonomia: os Paresi criaram uma cooperativa e pela primeira vez estão plantando a soja por conta própria. Parte da safra foi financiada por dois produtores rurais da região. Eles forneceram os insumos, sem qualquer garantia, para receber o pagamento na colheita. A expectativa dos indígenas é colher cerca de 55 sacas por hectare. Do total do lucro, pelo menos R$ 1,8 milhão serão distribuídos às 94 aldeias da reserva.
“Vamos investir esse dinheiro em projetos de educação, saúde e infraestrutura. O restante irá para a cooperativa para ser aplicado em maquinários, melhorias das sedes e compra de insumos para a próxima safra”, planeja Branco.
Preservação
Depois de instruir os tratoristas, Branco pega a caminhonete para buscar comida para a moçada na sede e dá carona para o fotógrafo Zé Medeiros e eu. Já passa de uma da tarde e aproveitamos para almoçar – arroz, feijão, maxixe com carne e costela de porco assada. Entre uma garfada e outra, o líder indígena responde às minhas perguntas.
Você nasceu numa família tradicional, que segue as tradições dos Paresi, por que resolveu plantar soja, um produto que nada tem a ver com a cultura indígena? “É a necessidade que faz o sapo pular, né? Todo esse trabalho com a soja tem um propósito: superar as dificuldades que o povo indígena passa. A Funai nos deu a terra, garantiu a demarcação, mas a gente não tem condição de sobreviver na aldeia. Moramos numa região de Cerrado, onde não tem caça nem pesca suficiente para a gente sobreviver. Com a agricultura mecanizada, em apenas duas safras, a gente eliminou a subnutrição na aldeia e reduziu a mortalidade infantil.”
No caminho de volta à lavoura, Branco aponta no mapa da reserva as áreas de plantio. “Abrimos 15.500 de 1,3 milhão de hectares, menos de 2% do total do território. Não estamos devastando a natureza. O Cerrado é uma reserva importante para nós. Daqui tiramos o pequi, a mangaba, o cajuzinho-do-cerrado, as plantas medicinais, a palha para construir nossas casas, os peixes e a caça. A áreas de lavoura estão distantes mais de 10 quilômetros dos rios e das aldeias, para evitar a contaminação pelos agrotóxicos, ao contrário do que acontece nas fazendas nesta região”, diz.
Antes de assumir a gestão da lavoura, Branco trabalhou alguns anos com saúde indígena na aldeia. “Eu só atestava o grande número de subnutridos e a alta taxa de mortalidade infantil. Não tem como resolver isso com remédios, mas com trabalho. É o que vai dar comida, saúde e educação para os índios”, diz. Para ele, a agricultura mecanizada pode tirar boa parte dos povos indígenas da miséria, da humilhação e da dependência do governo.
“É a saída contra a discriminação, que tacha os índios de vagabundos e preguiçosos. Não adianta o governo gastar milhões de reais com remédios para a população indígena. O que não deixa o índio adoecer é comida, educação, uma moradia digna, saneamento básico. Não dá para tratar o índio como um animal dentro de um cercado. Temos de evitar que nosso povo se envolva com drogas, bebidas e prostituição. Lógico que não se pode generalizar. Os Paresi têm condições de ter autonomia, caminhar com as próprias pernas. Há tribos isoladas, que moram nas florestas, com caça e pesca suficiente para alimentar toda a aldeia, e ainda precisam de proteção”, ele diz.
O alarme do WhatsApp de Branco interrompe nossa conversa. Ele sorri ao ler a mensagem do filho Cauê, de 12 anos, que mora com a mãe do seu segundo casamento em Tangará da Serra (MT). Cauê avisa o pai que tirou 10 em todas as matérias. Ele estuda num colégio particular e Branco banca a mensalidade. Cauê manda sempre a prestação de contas pelo celular. “Quero que ele estude e não fique como eu, que trabalha na roça de sol a sol”, diz.
Seu outro filho, Blairo, de 20 anos, está na lavoura, pilotando um dos três tratores. Como o irmão, Blairo nasceu em Tangará da Serra. Aprendeu a operar a máquina com o pai. “Desde os 14 anos, estou no campo. Parei de estudar.” Casado, pai de duas filhas pequenas, Blairo diz que tem emprego garantido na safra. Dá para tirar R$ 5 mil por 45 dias de trabalho. Depois do plantio, ele vai revisar as máquinas, tirar uma folga de uma ou duas semanas e voltar para o campo durante a colheita, quando seu trator entra para plantar a safrinha de milho.
Você gosta de pescar e caçar? “Claro, a gente trabalha no campo, mas não perde nossos costumes”, diz Blairo, ajeitando o boné sobre o cabelo tingido de loiro.
Moacir, de 34 anos, aprendeu a operar máquinas agrícolas aos 16 (Foto: José Medeiros/Editora Globo)
Moacir, de 34 anos, opera a outra plantadeira. Começou aos 16 e aprendeu a mexer com trator “fuçando”. Até quatro anos atrás, trabalhava numa fazenda da região. Ficou feliz por voltar à aldeia, onde é casado com uma professora e tem dois meninos, de 8 e 13 anos. Seu colega Haustyb Inocêncio de Souza, de 25 anos, que opera a terceira máquina, largou a escola no terceiro ano e diz que aprendeu a operar o trator “de curioso”. Ele saiu muito pequeno da aldeia, junto com a mãe, que se mudou para Aripuanã (MT), e, depois de trabalhar um tempo em uma farmácia, retornou à Aldeia Bacaval.
Na aldeia, a cacique Miriam, mãe de Arnaldo, cozinha arroz na oca. É uma das poucas casas tradicionais da aldeia, feita de madeira e coberta com palha de guariroba. Apesar do forte calor do meio da tarde, a temperatura dentro da oca é agradável. Miriam senta na rede para conversar conosco. “Não dá para tratar o índio como uma coisa que tem de ser preservada. Fica aí naquele lugar. Você é assim, tem de ficar assim. Parece que não quer que o índio desenvolva. Eu vejo as nossas capacidades indígenas como a do não índio. Não dá mais para a gente viver da caça, da pesca. Você mata uma ema lá embaixo, mas esse aqui de cima já não pode comer. Nós somos muitos”, diz.
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Aos 6 anos, Miriam foi levada da aldeia pelos jesuítas para ser catequizada. No internato, ela aprendeu português, mas esqueceu a língua da tribo. Voltou à Aldeia Formoso com 16 anos e seus pais lhe arranjaram um casamento. Foi aí que voltou a falar a língua dos Paresi. Mãe de Branco, Miriam é uma das principais lideranças da etnia. Lutou pela demarcação da reserva indígena e pela criação da MT-235, estrada que permitiu o acesso da aldeia à cidade e à escola. Ela conta que o plantio da soja foi feito em um lugar escolhido.
“Um lugar que não prejudica nada. Nós temos o lugar da flauta sagrada, ninguém mexe lá. Nós temos o lugar onde a gente pega a palha para fazer a oca, ninguém mexe lá. A lavoura tem o lugar certo”, diz Miriam.
Quem decide é o índio
Pelo telefone, converso com o subprocurador-geral da República, Antonio Bigonha, que coordena a 6a Câmara, responsável pelos indígenas e comunidades tradicionais. O plantio de soja em terra indígena preocupa o Ministério Público, segundo Antonio. “Há um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que permite aos Paresi explorarem a terra e plantarem soja e milho. Mas, na vigência desse TAC, o Ibama detectou a utilização de grãos geneticamente modificados, o que é proibido em terra indígena. Houve uma autuação grande e eles assumiram perante o Ibama e o Ministério Público Federal fazer uma revisão no projeto para adequar as práticas ao que o Ibama autoriza”, diz. O TAC é uma espécie de contrato entre um particular e o poder público.
Além do plantio de OGMs, as parcerias feitas com os produtores não índios não agradam o MPF. “A expectativa do poder público é que os indígenas possam explorar a terra por eles mesmos. Assim, ele poderiam diminuir a área plantada e ficar dentro dos padrões ambientais. Mas o MPF respeita a autonomia indígena. O índio tem direito de explorar a terra deles dentro dos padrões ambientais. Isso é tudo o que a gente deseja. Eles só não podem ser instrumento da produção do não índio e nem fugir aos padrões ambientais”, diz Antonio Bigonha.
Haustyb Inocêncio, de 25 anos, operador de máquina agrícola (Foto: José Medeiros/Editora Globo)
O subprocurador acredita que a autonomia nesta safra é um passo importante. “Quem decide o que é bom para o índio é ele mesmo. É isso o que diz a Constituição. Não é a Funai, não é o Ibama, não é o MPF. Não existe mais tutela, tutela hoje é palavrão. Os índios têm autoestima. O desafio deles é fazer isso de uma maneira indígena e não ser instrumento da nova fronteira agrícola. Há uma sinceridade do discurso deles. Eles aprenderam a ser agricultores, mas há risco das terras indígenas serem apropriadas pelas novas fronteiras agrícolas, o que é procedente.”
Para Antonio, o discurso do novo governo e as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o índio revelam uma mentalidade integracionista, muito em voga durante a ditadura.
“É como dizer que o índio só vai melhorar de vida quando embranquecer, quando deixar de ser índio. O índio pode manter suas tradições e ser médico, advogado, dentista ou plantar soja em Mato Grosso sem perder sua identidade cultural”, diz o subprocurador da República.
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Ivar Busatto, coordenador-geral da organização indigenista Operação Amazônia Nativa (Opan), diz que, com o plantio de soja, os Paresi buscam uma alternativa econômica, que pode não ser a melhor solução, embora seja a saída que está ao seu alcance.
“É a economia que predomina em todo o planalto que os cerca. Mas, como os próprios Paresi definiram em seu Plano de Gestão Territorial, que deve ser publicado brevemente, outras iniciativas econômicas devem ser desenvolvidas, como turismo, produção de gado, pequenos animais, criação de peixes, turismo, agricultura tradicional, massa de beiju, farinha de mandioca e venda de frutas do Cerrado”, afirma Ivar.
As tribos do café
Os indígenas de Rondônia conquistaram destaque nacional com a produção de cafés robustas finos. A associação de tecnologia, tradição e sustentabilidade trouxe da floresta novos aromas e sabores únicos da Amazônia. “São cafés sem defeitos aparentes, exóticos, com doçura, acidez e características marcantes de chocolate e castanhas, que lembram produtos amazônicos como a bacaba, uma palmeira nativa dessa região”, diz o especialista Janderson Dalazen. São esses sabores que o consumidor irá notar ao apreciar o café do produtor indígena Valdir Aruá, de Alta Floresta d’Oeste (RO).
Valdir Aruá, segundo colocado no concurso de café em Rondônia (Foto: Divulgação)
Valdir foi o segundo colocado no Concurso de Qualidade e Sustentabilidade do Café de Rondônia (Concafé), realizado pela Emater-RO e parceiros. Representando o povo Suruí, Luan Mopib Sumi conquistou o oitavo lugar no Concafé e também representou o Estado nacionalmente. Assim como o jovem indígena Vagner Tupari, que também teve seu café classificado como especial nesse concurso.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas de Rondônia são os únicos do país que cultivam o café comercialmente. Eles têm apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A cafeicultura indígena no Estado não é novidade. Os Suruí, do município de Cacoal, trabalham com café há mais de 30 anos e os Aruá e os Tupari, da Terra Indígena Rio Branco, de Alta Floresta d’Oeste, cultivam o café há mais de 15 anos. Renata Silva, da Embrapa
Monocultura traz riscos, diz Cimi
Cléber Buzatto, secretário executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), órgão vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), tem uma avaliação crítica sobre o plantio mecanizado em terra indígena.
(Foto: Divulgação)
“A monocultura traz risco à saúde e ao ambiente, devido ao uso intensivo de agrotóxicos. A mudança da ocupação da terra de forma brusca pode causar problemas no futuro, como um movimento contra a demarcação da terra e até a redução da área. Respeitamos a soberania dos Paresi em decidir seu futuro, mas achamos que eles devem usar as terras de forma exclusiva, isto é, sem arrendá-las.”
O secretário executivo do Cimi condena as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre os indígenas e a transferência da Funai do Ministério da Justiça para o Ministério dos Direitos Humanos.
O presidente disse que “os índios não devem viver em reservas demarcadas como se fossem animais em zoológico” e afirmou que não vai demarcar nem um centímetro de terras indígenas.
“Essas falas incentivam atos de desrespeito e violência, como já ocorre em algumas terras de Rondônia. Bolsonaro disse que os povos querem se tornar países independentes dentro do Brasil. A terra indígena pertence ao Estado, como manda o Artigo 231 da Constituição brasileira. As declarações do presidente alimentam um sentimento de rancor e preconceito contra o indígena”, diz Cléber Buzatto.
Sobre a transferência da Funai para o Ministério de Direitos Humanos, Cléber afirma que o governo não consultou, não ouviu e não atendeu os povos indígenas. “Há uma total falta de diálogo e de respeito. Os indígenas não foram consultados.”
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Source: Rural