A branquinha: companhia pra jogar conversa fora no Bar do Tião (Foto: Divulgação)
No boteco do Tião, esquina da noite com a madrugada, molhar a palavra sempre foi hábito comum da mineirada, gente do sul de Minas que chegou com seus trens e fez família na bucólica Monteiro Lobato, província encravada na Serra da Mantiqueira. A conversa corria solta, livre a cada mesa, toalha florida de berrante primavera de plástico. E haja doses de “Amélia”, boa pinga mineira pra jogar conversa fora. Reza a lenda que, quando faltava conversa, Jesuíno, preto retinto, bom de laço, dava o mote. Ele chegava, silencioso, pedia uma pinga, e, na segunda dose, ficava resmungando sozinho qualquer palavra. Podia ser trator. Jesuíno, na mesa do canto, repetia baixinho, várias vezes: “Trator, trator…”. E aí era o mote pra começar a conversa no boteco. Nas mesas vizinhas, começava o papo, “e por falar em trator…”. Muitas histórias corriam, no refrão do trator, personagem principal. Jesuíno divertia-se. Amanhã, o mote da conversa poderia ser “mulher”, “futebol”, “vaca” ou “política”.
Tião era o próprio sossego. Fazia jus ao apelido de “Sossegado”. Calmo, encostado no velho balcão, só se irritava quando a turma puxava aquela história de leite derramado. Pois é. Conta-se que, certo dia, o sossegado Tião, final de tarde, olhou para uma branca porção de leite no chão do bar e comentou, engolindo um taco de queijo: “Veja só! Desde cedo as crianças derramaram leite aí e até agora não apareceu nem um cachorro pra lamber o maldito”. E o leite continuou no chão, pasto de moscas. No seu provinciano sossego, Tião fazia das suas com os bêbados mais assíduos. Certa vez misturou sabão branco com apetitosos pedaços de queijo mineiro e serviu como “tira-gosto. Andou de mesa em mesa e proclamou aos quatro ventos, ”hoje é por conta da casa“. Muitos foram os bêbados que avançaram famintos sobre tão ”generosa“ iguaria. Tião morreu de rir com os bêbados espumando pelos cantos da boca.
Quem sempre aparecia no Tião era o “Magrão”, figura dada como “doida” na geografia humana lobatense. Não era para menos. Ele veio de São Paulo e tinha “ideias estranhas” na cabeça, morava sozinho com seus livros e pensamentos “esquisitos”. Tinha projetos mirabolantes, e, dizem, conversava com ETs. Uma noite Magrão entrou no boteco calado e triste. Sentou-se e, num curto espaço de tempo, engoliu uma meia dúzia de goles da branquinha. Curioso, Tião perguntou ao amigo: “O que está acontecendo?”. Ele, após mais uma pinga, confessou ao amigo: “Sabe aquela minha ideia de construir o teto da casa com mistura de cimento e fubá de milho? Deu em nada. Convidei pra trabalhar comigo uns meninos. Eles iam bem. Até que um deles, com fome, comeu uma porção de fubá. Os outros gostaram e o projeto foi por água abaixo”.
(Foto: Globo Rural)
Só podia ser coisa do Magrão, o “doido”. Afinal de contas, alta de madrugada de um dia de verão bravo, lua bonita, branquinha como um queijo no céu, ele subiu no telhado do Tião. Naturalmente acompanhado de uma providencial garrafa de pinga. Tomou todas e dormiu no telhado. Manhã alta, acordou e quase mata de susto o Venâncio, negrinho que a turma chamava de “ajudante de ordem” do Tião. Magrão simplesmente acordou, desceu do telhado por uma velha escada, atravessou o bar e deu um “bom-dia” ao Venâncio, que até hoje jamais entendeu “de onde saiu essa assombração”. Pois o bar estava fechado. Por tudo isso e outras mumunhas mais é que o escritor Monteiro Lobato escreveu que “Deus protege os bêbados”. Verdade. Tanto que a grande maioria deles saía do Tião aos trancos e barrancos. Montava no cavalo e ia pra roça, certinho, pelos caminhos da vida. Deus protege os bêbados ou os cavalos? Taí um bom papo pro bar do Tião.
*Crônica publicada na edição nº 140 da Revista Globo Rural, de junho de 1997.
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Source: Rural