O Rio Araguaia em trecho no Estado de Tocantins (Foto: Edivaldo Alves de Sousa/Wikimedia Commons)
Numa tarde quente fomos nadar no Araguaia. Éramos quatro. Albino, o melhor nadador, ganhava sempre o meio do rio. Os outros não saíam do beiradão. Vai daí, de repente, um grito nos alarmou. Era Albino. Logo adiante, num rebojo, surge a cabeça do nadador gritando: “Pirarara engoliu meu pé… pirarara…”. E lá se foi para o fundo.
Pirarara é peixe de couro. Chega até a uns 60 a 70 quilos. A cabeça é quase um terço do corpo, e a boca uns dois terços da cabeça. É, dizem os sertanejos, o urubu do rio. São poucas as criaturas que comem pirarara, mas nem por isso ela deixa de ter boa carne. O lombo nem tanto, mas a cabeça e a barriga não são de jogar fora. O nosso companheiro, com o pé engolido pelo peixe, não havia como se manter à tona d’água. Lá se foi pra sempre.
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Doutra feita, na lagoa Luiz Alves, à margem direita do mesmo rio, participávamos com dois companheiros, Pio Soares e Firmino, de uma arpoagem de pirarucu. Pio, no piloto, levava a canoa quase sem movimento. Pirarucu é prevenido. Há de se ter cautela e paciência. O peixe, que tem respiração pulmonar, volta e meia vem à tona lentamente, toma conhecimento da superfície e, vendo que tudo está tranquilo, dá o ar de sua presença fazendo tal qual a baleia sua parente distante. Respira e solta um esguicho de água, e, em seguida, mergulha sem espalhafato. É nesse instante que o arpoador, em pé na proa sem movimento, mais parecendo uma estátua, lança a sua fisga. Ela, atingindo o alvo, se desprende da haste de madeira que a impulsionou, mas continua presa a um sondal (linha forte) com muitos metros, que fica no fundo da canoa. No nosso caso, o arpoador inadvertidamente estava pisando sobre ela. O pirarucu (mais ou menos 300 quilos), sentindo a fisgada, deu um arranco no mergulho. A linha curta fugindo do pé do arpoador fez com que ele perdesse o equilíbrio e caísse na lagoa que, naquela altura da estação, estava prenhe de piranhas. Estendemos o varejão (vara comprida de impulsionar a canoa) na esperança que o desastrado agarrasse nele. Mexendo a vara, vimos que sobrou apenas um pedaço de perna do inditoso pescador.
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Perguntamos ao Zé Eufrásio — contador de casos —, velho morador e frequentador do Araguaia, se nas suas andanças ele nunca vira uma Iara (sereia do rio). Ele, que nunca “mentiu”, respondeu:
Orlando Villas-Bôas com um índio Txikao em uma de suas viagens ao Cerrado, provavelmente em 1967 (Foto: Arquivo da família Villas-Bôas/Wikimedia Commons)
— Pra falá a verdade, certa feita bem ali na corredera das Pitomba, eu vi uma figura dessa sentada nas pedra. A cabelera parecia inté fios de oro. Pegá ela eu vi logo que num dava. Contá pros outro todo mundo ia se ri. Entonce eu resorvi levá ela de quarqué jeito. Levantei a carabina pra dá um tiro na costa dela! Ora! Qui bobícia! A diaba da mãe-d’água se virô, oiô pra mim, mostrando uma arvura di denti que inté relampejô, se riu e pulô n’água. Pois é seo moço, mãe-d’água é bicho suti (sutil).
*Publicado em maio de 1997, na edição 139 da Revista Globo Rural
Leia outras crônicas publicadas na Revista Globo Rural:
>> "A fazenda que desapareceu do mapa", crônica de Carlos Drummond de Andrade (outubro de 1985)
>> "O idioma de Aricrito", crônica de Homero Franco (fevereiro de 1997)
>> “A testemunha”, crônica de Antonio Carlos Félix Nunes (maio de 1997)
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Source: Rural