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Mauricio Macri, presidente da Argentina (Foto: Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires)

 

 

“Aceitamos peso e dólar”, confirma a atendente no restaurante que serve comida tradicional argentina na Recoleta. O bairro, localizado em área nobre de Buenos Aires, é conhecido por conservar casarões em estilo francês que antes pertenciam a aristocratas e hoje são embaixadas, e por abrigar o famoso cemitério, onde está sepultado, por exemplo, o corpo de celebridades como o escritor Adolfo Bioy Casares e a ex-primeira-dama Eva Peron.

No câmbio atual, a conta de quase 500 pesos ficou próxima dos US$ 14 na casa onde se pode apreciar a carne e as famosas empanadas, com diversos tipos de recheio. O tíquete do restaurante é um pequeno retrato da forte desvalorização da divisa portenha em relação à americana, que expõe a fragilidade da economia do país e levou ao presidente da República, Maurício Macri, a anunciar medidas para conter a crise.

“Essa crise não pode ser mais uma. Tem que ser a última”, disse Macri, ao divulgar uma redução do número de Ministérios e um aumento de impostos de exportação, as chamadas retenções, na segunda-feira (3/9), quando o dólar voltou a ficar próximo dos 39 pesos no mercado local. No final da noite, programas de TV exibiam debates sobre a situação econômica do país.

As medidas afetam o agronegócio argentino, um dos principais produtores e exportadores de soja e farelo do mundo. O Ministério da Agroindústria passa a ser parte do Ministério da Produção, a cargo de Dante Sica. Luis Miguel Etchevehere será secretário de Agroindústria. Ao todo, o número de pastas no primeiro escalão caiu de 22 para 11.

Exportação de soja: Argentina é o terceiro maior fornecedor mundial do grão, atrás de Brasil e EUA. (Foto: Marcelo Curia/Ed. Globo)

 

A meta é déficit fiscal zero em 2019. Para aumentar a arrecadação, as retenções foram definidas em 4 pesos para cada dólar em produtos primários e 3 pesos por dólar para as demais exportações. Com esse formato, o imposto varia de acordo com a oscilação do câmbio. Por outro lado, foi anunciada redução de impostos para produtos como farelo e óleo de soja.

Em uma reportagem cujo título dizia que “o campo sangra mais uma vez”, o site Infocampo ressaltou que a medida deve dar aos cofres públicos 280 milhões de pesos no ano que vem, 1,1% do Produto Interno Bruto da Argentina. Ao jornal Clarin, o ministro Dante Sica lamentou: “Não queríamos. Ter que recorrer às retenções é quase uma derrota.”

Devo pedir que entendam que estamos em uma emergência e precisamos do apoio dos exportadores"

Maurício Macri, presidente

No pronunciamento em que anunciou as medidas, Macri reconheceu que retenções são ruins. Ressaltou, no entanto, que a situação é de emergência. “Sabemos que são impostos ruins, que vão contra o que queremos fomentar, que são mais exportações para criar mais trabalho de qualidade em cada rincão da Argentina. Mas devo pedir que entendam que estamos em uma emergência e precisamos de seu apoio”, disse.

A Federação Agrária Argentina protestou. Em nota divulgada em seu site oficial, disse que está preocupada. Para a FAA, o governo Macri condena os pequenos e médios produtores a “pagar mais para sustentar o jogo financeiro e o FMI”, em referência ao Fundo Monetário Internacional, com quem a Argentina negocia ajuda financeira.

Área a ser plantada com trigo é de 6 milhões de hectares, boa parte do produto vai para o exterior. (Foto: Ernesto de Souza/Ed. Globo)

 

De acordo com a entidade, nada do que foi anunciado pelo governo aponta para solucionar os problemas do campo, como falta de financiamento, inflação e aumento de tarifas. A FAA reclama também que nenhuma das propostas que fez durante meses foi acolhida pela administração Macri.

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“Está claro que haverá dois dólares distintos. Um para pagar os insumos e outro para vender os produtos, com retenções. Com um trigo já semeado, muda-se as regras do jogo. Muitos se endividaram para plantar o milho e o cenário se modifica”, diz a nota.

A Bolsa de Cereais de Buenos Aires estima uma área plantada de 6,1 milhões de hectares com trigo no país, com 85% das lavouras apresentando condições que variam de normal a excelente. A colheita de milho deve render 30,57 milhões de toneladas. Dos 5,4 milhões de hectares semeados com a cultura, 5,17 milhões foram considerados aptos a serem colhidos.

Também em comunicado, a Sociedade Rural Argentina avaliou que as medidas anunciadas pelo presidente apontam para o curto prazo e se manifestam como transitórias na busca pelo equilíbrio fiscal necessário. Disse que o campo continuará contribuindo com o trabalho conjunto para sair da crise, mas chamou a atenção para a reponsabilidade do governo.

“Insistimos que a contribuição maior deve ser feita pelo lado da redução do gasto público improdutivo, sem deixar de atender às necessidades dos setores sociais mais vulneráveis”, diz a nota.

"Ruim, mas não terrível"

Analista de mercado de grãos do banco holandês Rabobank, Victor Ikeda comenta que as medidas deixam o cenário mais negativo, mas não é algo que pode ser visto como “terrível”. Fazendo as contas com base no cenário atual, as retenções relacionadas à soja em grão foram estimadas em 28,5%. Para o farelo, a alíquota é de 25,8%.

“A situação afeta a margem dos processadores, mas eles ainda têm o benefício da retenção maior para a exportação do grão”, explica.

Pelo menos por enquanto, ele mantém as projeções para a próxima safra de soja na Argentina. Segundo Ikeda, se amparada por um clima favorável – ao contrário do que aconteceu no ciclo 17/18 – existe a possibilidade dos argentinos colherem algo em torno de 58 milhões de toneladas de soja, patamar semelhante ao da temporada 2016/2017.

No longo prazo, em um horizonte de dez anos, a tendência é da produção de soja da Argentina manter a trajetória de crescimento. No cenário traçado por Ikeda, o mundo deve precisar em uma década de 65 milhões de toneladas a mais do grão. Boa parte deve ser atendida pela América do Sul. As lavouras argentinas devem contribuir com cerca de 10 milhões de toneladas.

*O repórter viajou a convite do Rabobank
Source: Rural

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