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Com graduação, mestrado e doutorado em economia pela USP (Universidade de São Paulo), Zeina Latif completou neste ano duas décadas como economista profissional. Entrou em 2001 na Tendências Consultoria – e logo suas opiniões ganharam destaque na mídia. Em seguida, passou por outras consultorias e bancos internacionais. De 2014 a janeiro de 2020, foi economista-chefe da XPInvestimentos.

Retrato da economista Zeina Latif (Foto: Rogerio Albuquerque)

 

Talvez por conta da experiência acumulada, a economista, hoje diretora da Gibraltar Consultoria, não perde o sono com o noticiário econômico. Considera mesmo uma tarefa “difícil, mas nem tanto” colocar ordem na macroeconomia do país, que chegou ao último bimestre do ano com o dólar sobrevalorizado, o PIB desaquecendo, a inflação elevada (e subindo), além dos juros também em alta.

Na avaliação de Zeina, o principal problema é o Custo Brasil, que penaliza tanto a indústria, limita o crescimento da economia e reduz a demanda interna. Ela observa que o auxílio emergencial concedido à população vulnerável no ano passado mostrou que no país existe uma demanda reprimida. "Existe esse potencial de crescimento no país que poderíamos explorar e transformar em mercado para a nossa agropecuária".

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Globo Rural: Como a senhora vê o processo de desindustrialização da economia brasileira?
Zeina Latif: A indústria, apesar de ter reduzido o seu papel no PIB, ainda tem um peso relevante. E, mais que isso, tem efeitos multiplicadores na economia que são importantes, tanto no mercado de trabalho quanto para estimular segmentos do setor de serviços, que tem áreas mais sofisticadas, mas, a grosso modo, é de baixa produtividade e depende de outros segmentos. A indústria, quando vai bem, puxa o setor de serviços. O Custo Brasil, que penaliza tanto a indústria, é um fator que limita o crescimento e, obviamente, reduz a demanda interna.

GR: Em que medida essa tendência afeta o agronegócio?
ZL: Existe muita demanda reprimida que poderia estar sendo realizada. A gente viu o que foi o impacto do auxílio emergencial no consumo. Aumentou o consumo de alimentos no Brasil porque houve transferênciade renda. Existe esse potencial de crescimento no país que poderíamos explorar e transformar em mercado para a nossa agropecuária. É verdade que nossa agropecuária é muito mais blindada pela própria natureza daquilo que produz, alimento, e porque tem um pé no exterior.

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GR: E a inserção do Brasil nos acordos internacionais?
ZL: Como diz o professor Marcos Jank, o Brasil não está fazendo acordos bilaterais, multilaterais, então, estamos em uma posição vulnerável. Somos um importante produtor de alimentos, mas amanhã poderemos ter problemas. Porque existem essas questões ambientais de importância crescente, que podem vir a contaminar o comércio e ser uma barreira para os produtos brasileiros. Até por esse aspecto é importante que a gente amplie o mercado consumidor.

GR: E a questão da tecnologia, que é cada vez mais intensa no agro?
ZL: Felizmente, é um setor que sempre inova, porque precisa concorrer no mercado internacional, mas não está usando tecnologia brasileira. O ideal seria que essas coisas caminhassem juntas, com as universidades públicas e centros de excelência, que podem estar contribuindo, passando pela indústria. Ainda que tenhamos o setor agropecuário mais blindado, estamos todos no mesmo barco. E o agro tem uma vantagem porque, quando as coisas dão erradas no Brasil, o câmbio sobe e o exportador vai ter aumento de rentabilidade. Então, aumenta mais ainda a blindagem, ao menos para os exportadores. Se tivéssemos um mercado consumidor mais vibrante, poderíamos atrair muito mais capitais, e isso passa pela nossa indústria.

“Como diz o professor Marcos Jank, o Brasil não está fazendo acordos bilaterais, multilaterais, então estamos em uma posição vulnerável"

Zeina Latif

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GR: A maioria dos países transferiu renda para as famílias e deu créditos subsidiado às empresas na pandemia, inclusive o Brasil. Quais os prós e os contras das políticas adotadas até aqui?
ZL: As políticas econômicas adotadas no Brasil foram políticas meritórias e, grosso modo, com as prioridades corretas, como atender os grupos mais vulneráveis, socorrer empresas, os programas de sustentação do emprego, as medidas que vieram do Banco Central. A minha crítica é quanto à quantidade do que foi feito. Lembro que o discurso ao longo do ano passado, inclusive de muitos analistas, era “agora precisa gastar e depois vê como faz’’. Sempre discordei, porque esse "depois" é mais curto do que a gente pensa. Era uma preocupação que tinha lá atrás, e, lamentavelmente, eu estava correta. É preocupante o Brasil gastar como se fosse uma Alemanha, que é um país rico, com as contas arrumadas. 

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GR: Qual o montante gasto no caso brasileiro?
ZL: Cerca de 8% do PIB, mas, somando as operações do Banco Central, dá até mais que isso. Do Tesouro Nacional, mais da metade teve a ver com o auxílio emergencial, que nitidamente foi malcalibrado, tanto em termos do público atendido como em termos do volume de recursos recebidos. Estou falando que não deveria ter sido transferido? Não é isso, mas deveria ter sido calibrado melhor. O tíquete médio, no ano passado, foi de R$ 1 mil, porque as mulheres chefes de família podiam dobrar o valor. Esse é um valor muito alto para a nossa realidade, infelizmente. Deveria ter tido crédito em uma política mais direcionada para ajudar as empresasa se adaptar a essa nova realidade digital, aí sim.

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GR: O último bimestre começou com PIB desacelerando, inflação elevada, dólar sobrevalorizado e juros também em alta. O que esperar de 2022?
ZL: Tudo isso é fruto dos nossos erros de política econômica. Uma coisa é apontar as questões associadas à pandemia, como no caso dos problemas de várias cadeias produtivas. Mas o retrato do Brasil, quando comparamos a outros países, nos mostra que existem erros nossos. Estamos em um quadro econômico muito parecido com aquele do final do governo Dilma, ou seja, não sabemos para onde vai o câmbio, a inflação, o PIB, os juros. E esse ambiente de incerteza é muito ruim para a economia. Mesmo pensando no agro, que se saiu bem e teve um ano excepcional, é preciso ver agora para onde vai o câmbio. E, se o comércio mundial lá atrás foi muito bem, agora já existem dúvidas.

"Mesmo pensando no agro, que se saiu bem e teve um ano excepcional, é preciso ver agora para onde vai o câmbio"

Zeina Latif

GR: Qual o caminho para reduzir essa incerteza?
ZL: É a política fiscal e a política macroeconômica, não tenho dúvidas quanto a isso. Mas a gente está nesse quadro e não vejo condições do governo mudar essa situação. Temos um quadro em que a política macroeconômica foi praticamente terceirizada para o Congresso, para o Centrão. Mesmo sabendo que há iniciativas boas, existem ministros fazendo o seu trabalho, não quero ser injusta, mas na gestão da macroeconomia estamos sem parâmetros. A gente percebe isso no preço dos ativos. Agora, a história recente nos mostra que esse não é dos maiores desafios que o Brasil tem.

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GR: A revisão das políticas de estímulo mundo afora pode ter impacto sobre o comercio internacional e os preços das commodities?
ZL: Acredito que o comércio internacional está em uma tendência de estagnação. Ele teve uma recuperação em V, é verdade, mas à base de certos artificialismos, e houve também o fato de a China estar recompondo estoques. E, como foi artificial, começou a impactar o mundo. A tendência é que haja uma acomodação, não uma acomodação normal, mas com esse ingrediente de correção de rumos, os bancos centrais tendo de aumentar os juros, ainda que não agora, e os países tendo de desmontar as suas políticas, cada um na sua velocidade. Claro que existem ainda problemas com as cadeias de produção impactadas, mas o fato é que o movimento não será daqui para frente de recuperação do comércio internacional como estávamos vendo.

GR: Qual seria o impacto para o agro?
ZL: Será um quadro desafiador, até porque não estamos conseguindo fazer a nossa lição de casa nessas questões ambientais, mostrando que a nossa agropecuária não está diretamente associada a essas questões ambientais na Amazônia. Falta o governo mostrar ao mundo que temos, de modo geral, uma matriz limpa. Enfim, estamos com muitos problemas, mas sabemos quais são e o que precisa ser feito. Não estamos fadados a ser um pária internacional, isso é coisa de um governo e pode ser corrigida.

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Source: Rural

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