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Municípios em que a agropecuária é a atividade principal têm um nível de desenvolvimento humano menor do que os “não agro” no Brasil. É o que aponta um estudo encomendado pela Agenda Pública, com apoio da União Europeia, a pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ao comparar condições socioeconômicas dos 5.570 municípios, a pesquisa considerou 36,4% como “agro” – o critério foi mais de 50% do Valor Adicionado Bruto (VAB) correspondente à agropecuária ou mais de 50% da mão de obra ligada ao setor.

“Naturalmente, os dados de emprego são mais complicados, porque a empregabilidade no campo é muito informal”, pondera Felipe Segateli, pesquisador da UFMG e um dos responsáveis pelo estudo, ao qual a Revista Globo Rural teve acesso com exclusividade.

Informalidade do mercado de trabalho no campo e médias baixas de qualidade na educação são presentes tanto em municípios rurais com mais vocação para commodities quanto para agricultura familiar (Foto: Ricardo Wolffenbuttel/Governo de SC/Divulgação)

 

 

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De acordo com a pesquisa, mesmo em regiões com produção agrícola pujante, como Centro-Oeste, Sul e Sudeste, não há elevação no nível de desenvolvimento dos municípios quando comparados com aqueles que têm outra atividade econômica principal.

“A concentração de população considerada pobre (10%) também é maior entre os agropecuários do que entre os municípios não agro (5%). A análise ainda revela que uma parcela substancial dos municípios exibe níveis de pobreza acima de 40%, além de piores índices em infraestrutura, abastecimento de água e tratamento de esgoto, se comparados aos não agropecuários”, indica um trecho do estudo, nomeado O Agro Pode Mais.

Para que o agro olhe para o futuro, precisamos de uma população educada, com infraestrutura

Sergio Andrade, diretor executivo da Agenda Pública

Segateli destaca que, para chegar às conclusões, diversos indicadores oficiais foram consultados. Além da renda, aspectos como longevidade, segurança alimentar e acesso a saneamento básico fizeram parte da análise.

A pesquisa durou um ano e foi norteada, principalmente, por estatísticas como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o DataSUS e dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).

Mato Grosso

O estudo traz Mato Grosso como exemplo de uma região do país que cresceu em decorrência da expansão do agronegócio, mas ainda tem desertos à margem do desenvolvimento.

Segundo a pesquisa, a estrutura do latifúndio e monocultura de exportação proporciona contradições, pois ao mesmo tempo alterna municípios que produzem grandes riquezas a partir da soja e do milho e ilhas de pobreza.

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“Mais da metade do PIB [Produto Interno Bruto] do Mato Grosso está em apenas 14 municípios, dos 141 do Estado. Hoje, somos os maiores produtores de soja do país, mas importamos frutas e legumes de São Paulo. Poderíamos mobilizar a mão de obra de cerca de 100 mil agricultores familiares para suprir essa demanda”, afirma Fernando Sampaio, diretor executivo do Comitê Estadual da Estratégia Produzir, Conservar, Incluir (PCI).

Na perspectiva de Sergio Andrade, diretor executivo da Agenda Pública, é preciso olhar não apenas a produtividade, mas a agregação de valor, a forma de atuar e que tipo de atividade está sendo desenvolvida.

“Você tem uma série de avanços, mas ainda assim uma persistência de condições de desenvolvimento muito assimétricas, apesar do desenvolvimento. Para que o agro olhe para o futuro, precisamos de uma população educada, com infraestrutura”, pondera.

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A classificação de indicadores da educação permite observar que as médias de qualidade do setor são baixas independentemente se o município rural tem mais vocação para commodities ou para agricultura familiar, o que evidencia a falta de desenvolvimento.

Um exemplo trazido pelo estudo é o município mato-grossense Campos de Júlio, que tem o maior PIB per capita do Estado e o oitavo do país, além de ser um dos que têm maior concentração de renda – de acordo com a pesquisa, a agropecuária equivale a 46% da produção de todo o território municipal.

Apesar disso, ao considerar a taxa de escolarização de 6 a 14 anos de idade, Campos de Júlio está na 2.237ª posição entre os 5.570 municípios brasileiros e na 727ª posição do IDEB Anos Finais, indicador que considera o desempenho nos anos finais do Ensino Fundamental.

No aspecto ambiental, o município é o terceiro com maior índice de desmatamento no Mato Grosso, dentro da porção do Cerrado. Foram 42,59 quilômetros quadrados de perda de vegetação entre 12 de maio de 2020 e 13 de maio de 2021. Os outros municípios líderes do ranking no bioma, segundo o sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), são Paranatinga (56,68 km²) e Ribeirão Cascalheira (45,42 km²). 

Procurada para comentar o assunto, a prefeitura de Campos de Júlio não retornou aos contatos da Revista Globo Rural. 

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“Quando a visão vai para além da renda, na geração de valor para o negócio, ali está a solução. Muitas vezes, os valores gerados no agronegócio não têm uma grande presença na receita dos municípios, em impostos como IPTU ou ISS, salvo o consumo. Geralmente a renda evade, vai para outro território”, comenta Andrade.

Sustentabilidade

Felipe Segateli, da UFMG, afirma ainda que o crescimento econômico deve seguir uma lógica: “não crescer para dividir, mas crescer dividindo". Outro aspecto, segundo ele, é a preservação do meio ambiente. Sem essa percepção, argumenta o pesquisador, o agronegócio pode atingir um limite de crescimento.

Ele cita como causas, principalmente, a divergência na política econômica entre buscar a integração de setores ou manter o agro como prioridade, e também a perda de poder das commodities em detrimento da manufatura ao longo do tempo. 

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As commodities no longo prazo acabam perdendo para as trocas internacionais. Tem que ter muito mais boi pra comprar produtos manufaturados

Felipe Segateli, pesquisador da UFMG

“As commodities no longo prazo acabam perdendo para as trocas internacionais. Tem que ter muito mais boi pra comprar produtos manufaturados. O desafio é que a soja não precisa ser vista como excludente à indústria, mas sim pensar isso como complementaridade. Não é só agro, nem só indústria, é conciliar o modelo de agroexportador com indústria e serviços”, aponta.

Por isso, de acordo com Segateli, o estudo tomou como base o Mato Grosso, “já que o Estado é um exemplo típico que começou a migração nas décadas de 70 e 80, se acentuou nos anos 90 e foi incorporando tecnologias”. “É realmente um laboratório para observar o que está rolando, e esse jeito de se plantar."

Impacto social

Só que, sem o componente social, o tripé da sustentabilidade não se sustenta. Assim, a pesquisa também sugere modelos do que não seguir, como o desmatamento, a perda da biodiversidade e a má distribuição de renda.

Diante da urgência de avançar na implantação do conceito ESG (ambiental, social e governança), Sergio Andrade destaca a necessidade da geração de valor compartilhado.

“O interior tem uma força indiscutível pelas riquezas geradas pelo agro, o que também deve se voltar para preocupação da administração pública. Falta gerar mais serviços para a população, garantir que as pessoas tenham cidadania rural, acesso a serviços básicos, melhores condições de escolaridade”, diz.

Do ponto de vista do modelo de produção, ele cita a integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), Plano de Agricultura de Baixo Carbono e a estratégia PCI do Mato Grosso como atividades sustentáveis. E pondera que "não dá pra medir o desenvolvimento pelo PIB". "Precisamos incorporar outros indicadores, sociais e ambientais.”

Em um trecho do estudo, ainda é destacado o papel do setor nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU: “tais evidências nos permitem indagar se algumas práticas de setores do agronegócio brasileiro seguem em descompasso com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Embora monoculturas como soja e milho surjam como alternativa à grande demanda mundial de alimentos, não bastam para vencer o desafio de acabar com a fome".

A hipótese da pesquisa é de que a diversificação de atividades e a mobilização das riquezas geradas pelas atividades agropecuárias podem funcionar como vetores de ampliação das oportunidades e dinamização nos municípios.

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“No entanto, sem políticas públicas e esforços coordenados para o desenvolvimento de outras atividades e setores, além da complexidade da economia local, os municípios com forte participação na produção agrícola não acompanham o nível de desenvolvimento humano do restante”, resume Andrade.

“Dado que Mato Grosso e o Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) tiveram um grande avanço, é preciso olhar o que aconteceu ali. Houve, sim, algumas melhorias nos indicadores, a presença do agro contribuiu para um certo crescimento. Mas ainda falta desenvolvimento e infraestrutura", conclui Segateli.

O estudo O Agro Pode Mais será lançado oficialmente no Festival ODS, que debaterá a agenda dos ODSs da ONU. Realizado entre os dias 25 e 26 de maio, o evento é gratuito,  online e contará com a participação do ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, do governador do Maranhão Flávio Dino, da empresária Luiza Helena Trajano e do economista Paulo Hartung.

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Source: Rural

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