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Abate feito de forma regular, em frigorífico no Maranhão. Realidade não é a mesma para boa parte dos locais no Estado (Foto: R. Lopes/Divulgação)

Edilberto Regis Lopes é dono de um frigorífico que abate 21 bois de cerca de 20 arrobas por dia em Tutóia, cidade de 58 mil habitantes, no Maranhão. A carne sai do frigorífico R. Lopes com o Selo de Inspeção Estadual (SIE) desde 2018, quando ele decidiu investir para regularizar seu negócio e sair da lista dos abatedouros clandestinos do Estado que tem um plantel de 8,84 milhões de bovinos, o segundo maior do Nordeste e 12º do país.

“Fui criticado e recebi várias ameaças de morte por ter trazido a fiscalização da Agência Estadual de Defesa Agropecuária (Aged) para a região, onde ainda tem muita gente que abate boi na moita ou nos matadouros municipais sem nenhuma fiscalização”, diz o comerciante, acrescentando que seu estabelecimento tem graxaria e capacidade para abater 96 bois por dia, mas as prefeituras da região preferem usar os abatedouros sem registro.

O outro frigorífico regularizado mais próximo de Tutóia fica a cerca de 100 km. A região da capital, São Luís, distante dali 324 km, tem três frigoríficos legalizados. Um levantamento da Federação dos Municípios do Estado do Maranhão (Famem), apresentado em 2018, apontou que 73% dos municípios que possuíam abatedouro público atuavam em situação de clandestinidade, ou seja, sem qualquer tipo de fiscalização.

Atualmente, segundo dados da Agência Estadual de Defesa Agropecuária (Aged), só há 19 frigoríficos legalizados no Estado, sendo 3 com o Selo de Inspeção Federal (SIF), 9 com o Estadual (SIE) e 7 com o Municipal (SIM). Os federais, localizados em Imperatriz, Igarapé do Meio e Timon, são habilitados para exportação. Um dado que preocupa a Aged é que pelo menos metade dos 217 municípios mantêm abatedouros públicos sem inspeção.

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Preocupado com a concorrência desleal do abate clandestino e os malefícios à saúde trazidos pelo consumo de uma carne sem qualquer fiscalização, Lopes se juntou a outros donos de frigoríficos regulares para bancar a campanha Abate Seguro nas redes sociais, idealizada pela agrônoma Rita de Cássia Neiva Cunha, assistente técnica do Departamento de Política Agropecuária da Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Pesca (Sagrima).

Rita diz que o abate clandestino é um problema histórico do Maranhão — que disputa com Alagoas o título de pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país — e ainda hoje é uma realidade na maioria das cidades. 

“O combate ao abate clandestino é fundamental por uma questão de defesa do consumidor, da saúde pública e do meio ambiente, já que o consumo dessa carne sem inspeção pode causar várias doenças e os restos do abate, como ossos, couro, sangue e chifre, que poderiam ser aproveitados, são descartados ou enterrados, contaminando o meio ambiente.”

Rita acrescenta que a ilegalidade “rouba” empregos em um Estado carente. Um abatedouro médio regular emprega cerca de 30 pessoas e as outras atividades industriais com os subprodutos da carne podem gerar também muitas vagas.

Interdição

Tania Duarte, diretora de Defesa e Inspeção Sanitária Animal da Aged, admite que o problema é grave. “Se você interditar um estabelecimento, logo abrem dois.” Ela não soube informar, no entanto, o número de interdições feitas por mês. Além dos 21 frigoríficos regulares – que têm selo de inspeção – a diretora afirmou que 36 municípios têm algum tipo de acompanhamento veterinário pela prefeitura.

Segundo Tania, os problemas para regularização dos abatedouros municipais ou privados começam com o tempo para obter o registro, que passa de um ano, e com o valor do investimento na obra, de pelo menos R$ 1,5 milhão. Ela acrescenta que a atual gestão fez a minuta de um plano de regularização do abate para ser executado em dez anos junto com as prefeituras, vigilâncias sanitárias municipais, Federação dos Municípios e Ministério Público Estadual (MPE). “A pandemia atrapalhou a discussão, mas creio que vamos avançar.”

O combate ao abate clandestino é fundamental por uma questão de defesa do consumidor, de saúde pública e do meio ambinte"

Rita de Cássia Neiva Cunha, idealizadora da campanha Abate Seguro

Diego do Amaral Sampaio, fiscal agropecuário licenciado do Estado e presidente do sindicato dos servidores, diz que falta vontade política para resolver o problema. Ele conta que há muitos casos literais de “abates na moita”, como se diz no Maranhão, mas a maioria das irregularidades vem dos abatedouros municipais que não têm qualquer fiscalização. Segundo ele, se os servidores estaduais fossem cumprir a lei, não emitiriam Guias de Trânsito de Animal (GTA) para esses locais receberem os bois.

“Pelo menos 50% das cidades têm o que se chama abatedouro municipal, mas que não passa de um chiqueiro. Alguns não têm sequer ganchos e abatem o animal de qualquer jeito no próprio chão. O fiscal se vê obrigado a emitir a GTA para essas prefeituras porque, se faltar carne, a população reclama e o prefeito liga para o deputado resolver. Além disso, o Estado quer arrecadar com as guias”, afirma o fiscal, que diz já ter sido ameaçado de morte várias vezes em seus 15 anos de trabalho.

A diretora da Aged rebate dizendo que a GTA só certifica que o animal está em condições sanitárias de circular pelo Estado ou fora dele e que a fiscalização porta adentro dos estabelecimentos é função das vigilâncias municipais. Ela diz que há também abates regulares para consumo próprio em fazendas. No ano passado, a agência emitiu 3.725 Declarações de Abate na Propriedade (DAP). O Maranhão tem 115 mil produtores e 110 mil fazendas de gado.

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Ministério Público

Sampaio diz que o sindicato levou a questão do abate clandestino em 2018 ao Ministério Público Estadual (MPE), que promoveu um fórum com vários órgãos para debater o assunto e propor soluções. No encontro, concluiu-se que os abatedouros clandestinos comprometem a gestão municipal e estadual devido aos problemas que incluem aspectos sanitários, ambientais, sociais e fiscais, com a ausência de recolhimento de tributos.

“O promotor do consumidor chegou a apertar várias cidades para firmar TACs (Termo de Ajuste de Conduta) para regularizar seus abatedouros. Mas, aí venceu o mandato do promotor, veio a pandemia e pouca coisa mudou”, diz Sampaio.

Segundo o Centro de Apoio Operacional do Consumidor do MP do Maranhão, após a realização do Fórum Estadual da Promoção da Qualidade de Produtos de Origem Animal, foram autuados 74 abatedouros e ajuizadas ações civis públicas contra os municípios de Vila Nova dos Martírios, Turiaçu e São Bento. Há ainda autos de infração abertos contra os municípios de Barra do Corda e Zé Doca aguardando informações da Aged.

Abatedouro municipal de Santa Helena, que chegou a firmar um Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Estadual (Foto: )

 

Em novembro de 2020, após visita ao abatedouro municipal de Santa Helena, o promotor Hagamenon Azevedo firmou um TAC com a prefeitura para a regularização do local, que foi interditado pela Aged. Dizia o laudo: “o estabelecimento não está apto a funcionar nem sobre condicionantes, pois oferece riscos físicos, químicos e biológicos aos produtos finais ali fabricados, conferindo risco à saúde do consumidor”.

O TAC previa manter o local fechado, pelo menos até que os problemas mais graves de ordem sanitária, ambiental e trabalhista fossem solucionados, além de transferir a atividade de abate para um estabelecimento com registro sanitário em órgão de inspeção e reformar, adequar e ampliar o prédio seguindo a legislação para a atividade. Cinco meses depois, o local permanece fechado por tempo indeterminado.

“O gestor alegou não ter dinheiro para bancar os custos da adequação do abatedouro, pois o volume de abates por semana é pequeno”, disse o promotor. A prefeitura estimou os gastos em R$ 758 mil.

Em ofício enviado a Azevedo, a procuradora do município, Laurine Lobatto, disse que “a suspensão acarretará a proliferação de abates clandestinos, o que será ainda pior para a população, pois consumirá carnes e derivados sem qualquer controle em seu abate, razão pela qual solicitamos que notifique a Aged para que exerça a fiscalização nas fazendas, controle de animais, cadastro e fiscalização em trânsito”.

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Consórcio regional

Rita de Cássia Cunha, a agrônoma que promove a campanha Abate Seguro, diz que já houve um plano no Estado de consórcios de municípios para construir frigoríficos regionais visando eliminar esses abatedouros pequenos, mas a ideia não avançou. Segundo ela, falta integração entre os órgãos, recursos, pessoal capacitado e uma política contínua para resolver o problema.

Edilberto Lopes, dono de frigorífico, diz que os prefeitos são omissos em relação a cumprir a lei e também há uma questão cultural e financeira. “Meu frigorífico abastece 50% da população da cidade. A outra metade diz que carne de frigorífico não tem gosto por ser congelada e prefere comprar de abatedouros irregulares. Está errado. A carne do frigorífico é resfriada e segue todos os padrões para ser um alimento saudável para o consumidor.”

O empresário está no ramo há 30 anos. Mantém 8 açougues e uma butique de carnes na região. Optou pela regularização depois de ser denunciado pelos vizinhos de seu matadouro pelo cheiro forte e presença de urubus no local. Ele afirma que investiu R$ 4 milhões no negócio desde 2018. “A despesa de um frigorífico é muito alta e, com a concorrência desleal e a pressão, muitas vezes penso em fechar e ficar só com os açougues.”

No Brasil

No Brasil, não se sabe exatamente a real extensão do problema, já que não há dados atualizados sobre o abate clandestino ou irregular. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou não ter informações sobre o tema e não respondeu se faz algo para eliminar ou reduzir o problema. Citou apenas um estudo de 2015 feito pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, que apontou um volume de animais abatidos no Brasil sem fiscalização de 3,83% a 14,1% do total.

O estudo, encomendado pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Amigos da Terra Amazônia Brasileira, considerou a demanda por carne bovina e a oferta de animais “prontos” para o abate. Pelo lado da oferta, a estimativa nacional do total abatido sem qualquer tipo de inspeção foi de 14,1%. Já pela demanda, estimou-se que o abate não fiscalizado no Brasil em 2015 foi de 3,83% a 5,72% do total de cabeças abatidas. O levantamento usou dados de Mato Grosso, Rondônia e Pará.

Pedro Carvalho Burnier, gerente do Programa Agropecuário da Amigos da Terra, diz que a entidade trabalha o tema desde 2007 e realiza atualmente um trabalho de regularização com o Pará. Além da falta de inspeção nos abatedouros municipais, ele cita que o roubo de gado também contribui para o aumento da clandestinidade, já que, sem nota, o animal não pode ser abatido legalmente.

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Sem arriscar uma estimativa nacional, a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) diz que o abate clandestino é uma prática ilícita, prejudicial e que deve ser coibida pelos órgãos fiscalizadores, inclusive pelo Ministério Público, de forma preventiva e repressiva. Representa risco à saúde dos consumidores, riscos ao meio ambiente e concorrência desleal com as empresas legalizadas, que pagam tributos e seguem a legislação trabalhista.

“A entidade já se posicionou várias vezes sobre o tema, lembrando que existe uma ampla legislação que enquadra o abate clandestino como crime passível de punição, inclusive com pena de detenção por um período de dois a cinco anos e multas, e que a prática ainda é muito disseminada no Brasil, chegando a responder por quase 50% do abate bovino em certas regiões.”

O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Agropecuários (Anffa Sindical) também não tem estimativas nem sabe apontar quais Estados têm mais problemas. Segundo o médico veterinário Ronaldo Gil Pereira, auditor fiscal federal agropecuário aposentado, o Brasil não possui um programa nacional para enfrentamento desse problema. “Só existem boas ações isoladas, porém, descontínuas e desarticuladas de alguns estados e municípios.”

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Ele destaca que menos de uma dezena de consórcios, 27 municípios e 18 estados aderiram ao Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal, que exige um programa de combate à clandestinidade e à fraude econômica. Segundo o especialista, para mitigar o problema, seria necessário primeiro fazer um diagnóstico para verificar onde estão e qual a capacidade instalada de abatedouros em condições adequadas no Brasil para chegar às regiões que estão desassistidas no território.

“É preciso construir um programa nacional de regionalização e posterior desenvolvimento de programas de educação sanitária ao consumidor, que alcance também o setor produtivo, em articulação com todos os órgãos que participam do controle de alimentos nos estados e municípios com recursos humanos em quantidade e com capacitação adequada.”
Source: Rural

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