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Neste ano, além de olhar para o céu à espera da tão aguardada chuva que abre o plantio da soja, o agricultor Luiz Pedro Bier, de Gaúcha do Norte, em Mato Grosso, também precisou ficar atento ao celular, para acompanhar a entrega das compras que fizera meses antes. A poucos dias de colocar as plantadeiras em campo, ele ainda não havia recebido os fertilizantes e defensivos que encomendou para a temporada.

“Não me lembro de ter enfrentado uma situação dessa magnitude, não. A gente já teve problemas, sim, com alguns produtos. Mas eram situações pontuais. Este ano, a gente vê que a situação é muito mais generalizada”, relata o agricultor.

Produtores enfrentam problemas com o atraso nas entregas de fertilizantes e herbicidas (Foto: Reprodução/Getty Images)

 

Com 2,1 mil hectares de soja, ele seguiu o que os manuais de gestão de risco agropecuário prescrevem: comprou com três meses de antecedência os insumos que precisaria para realizar o plantio no início de outubro, seguindo o calendário recomendado para sua região. Com tudo pronto para dar a largada nos trabalhos, faltavam 40% das compras de cloreto de potássio que havia encomendado para preparar o solo antes de semeá-lo.

“Eu joguei metade do volume na área toda e agora novamente vou jogar outra metade do volume na área pós-plantio”, explica Bier, ao revelar a estratégia que adotou para enfrentar as dificuldades na aquisição de insumos básicos para a agricultura. Além do potássio, ele também teve 40% das suas compras de glifosato canceladas em cima da hora. Para repor com outro fornecedor, foi preciso desembolsar um valor três vezes maior.

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“De maneira geral, existem vários produtos que você já adquiriu, vai retirar, e ele não tem onde você adquiriu. Isso era difícil de acontecer, e hoje é muito comum”, observa. Junto com o potássio e o glifosato, Bier também enfrentou problemas para conseguir inoculantes comprados em janeiro deste ano e alguns inseticidas específicos, que precisaram ser substituídos.

“Muitas vezes, isso acarreta um custo maior e, em outras vezes, o prejuízo é por uma eficiência menor. Então, você não consegue fazer o que é programado e o que foi planejado. Porém, o meu caso não é o pior, existem situações muito mais graves”, destaca Bier. Ele diz que nem todos tiveram a sorte de conseguir iniciar o plantio desta temporada.

Luiz Pedro Bier iniciou o plantio sem ter todos os fertilizantes e defensivos encomendados (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

 

A 900 quilômetros da fazenda de Bier, no município de Natividade, no Tocantins, 820 hectares ainda aguardavam a semeadura da soja em 14 de outubro, sem previsão de quando chegariam as encomendas de fertilizantes e herbicidas feitas em abril. Em relato enviado à reportagem da Globo Rural, uma produtora do município conta que também teve a compra cancelada após mudanças na formulação dos fertilizantes em setembro, seguida de um aumento de mais de 20% no valor dos contratos fechados no início de outubro.

“Para poder continuar na atividade e plantar essa safra, tivemos de aceitar as condições da empresa, por causa do atual cenário do mercado e para ter mais tempo para buscarem outras empresas”, explica. A justificativa dada pela revenda, segundo ela, foram dificuldades para desembarcar o produto no Porto de Itaqui, no Maranhão.

O problema é o mesmo vivido pela Federação das Cooperativas  Agropecuárias do Estado de Santa Catarina (Fecoagro-SC). “Este ano foi uma catástrofe. Os portosde Paranaguá (PR) e Rio Grande (RS) também tiveram problemas, e a origem disso é a falta de navios e a concentração na hora da chegada”, relata Ivan Ramos, diretor executivo da entidade.

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Há 18 anos, a Fecoagro mantém uma misturadora de fertilizantes própria, que responde por 50% da demanda das cooperativas catarinenses. Neste ano, também já enfrentou problemas pontuais, com a alta expressiva de um ou outro nutriente usado nas formulações, mas vê agora uma alta generalizada nos preços de todas as matérias-primas usadas para produzir o adubo, sem previsão de como serão as safras futuras.

“A gente normalizou o abastecimento para esta safra. Isso quer dizer que não está faltando fertilizante, embora nós ainda tenhamos navios na fila para descarregar dentro de um cronograma previsto. Agora, há uma preocupação muito grande daqui para frente, porque a escassez de navios continua”, explica o diretor executivo da Fecoagro-SC. Segundo ele, “o medo que se tem é que no plantio da safrinha de milho, em janeiro e fevereiro de 2022, e depois na safra de inverno, em abril a maio, e na próxima safra de verão, haja problemas semelhantes”.

Embora seja o maior produtor mundial de soja, café, cana-de-açúcar e laranja, o Brasil está longe de conseguir fazer a engrenagem do agronegócio girar por conta própria, sem depender do mercado internacional. O país importa quase 85% dos fertilizantes que consome e mais de 70% dos defensivos – insumos cuja produção mundial está concentrada nas mãos de poucos países, e parte deles tem enfrentado problemas para manter a produção em meio a uma demanda mundial crescente. O cenário “é quase que uma tempestade perfeita”, de acordo como presidente executivo da CropLife Brasil,Christian Lohbauer.

"A gente sabe que é uma indústria muito importadora: 76% dos ingredientes ativos, sejam técnicos ou formulados, vêm de fora e 32% vêm da China,11% dos EUA e 11% da Índia”, explica Lohbauer. Quando o assunto são defensivos químicos, existe uma dependência do setor em relação ao mercado chinês. “Há uma dependência crescente da China, e não é só do Brasil, mas do mundo inteiro, nesse quesito de insumos químicos para a agricultura. O mesmo vale para EUA, Europa, Ucrânia, e até a Índia depende da China. A UPL indiana também está com dificuldades para receber produtos. É que o Brasil é o maior player desse negócio, mas os ajustes estão se dando no mundo inteiro”, destaca o executivo.

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O mesmo país que consome mais da metade da soja exportada mundialmente, a China também é responsável por concentrar 90% da produção mundial da matéria-prima básica para a fabricação do glifosato, herbicida cuja história se confunde com a da própria oleaginosa. Junto com o surgimento de variedades transgênicas resistentes ao produto, em 1995, ele acabou se tornando o agrotóxico mais usado do planeta, sendo o Brasil o seu maior consumidor, com 217,6 mil toneladas vendidas no país em 2019, segundo números do Ibama.

“A molécula glifosato é a mais vendida no mundo, é a mais vendida no Brasil e ainda não se tem uma tecnologia em larga escala que possa substituir o glifosato. Quando falamos de moléculas, a gente tem o glufosinato, que pode ser um substituto, mas hoje, em escala comercial, em questão de eficáciae de baixa toxicidade, realmente a gente não tem uma alternativa para substituir o glifosato”, explica o agrônomo e consultor de mercado Junior Crosara. Ele tem orientado seus clientes a racionalizar o uso do herbicida e ressalta que o problema como fornecimento de moléculas na China não é transitório.

Na ilustração, estão dispostos os países de origem dos fertilizantes exportados para o Brasil, O país importa quase 85% dos insumos que utiliza (Ilustração: Mauricio Pierro )

 

A falta de insumos para a agropecuária passa por três crises globais simultâneas. A primeira delas, de ordem logística, arrasta-se desde o início da pandemia de Covid-19, quando a redução na circulação de pessoas também comprometeu a circulação internacional de bens de produção para a indústria. Além da falta de contêineres e navios para responder a uma recuperação econômica mais rápida do que o esperado, as indústrias também enfrentam a escassez de itens básicos, como embalagens.

Uma segunda crise é de ordem energética, refletida na alta do preço do petróleo e do gás natural.“No ano passado, como a economia parou, a Organização Mundial do Petróleo (Opep) cortou em 10 milhões de barris por dia a produção da matéria-prima. E o gás natural é basicamente um subproduto do petróleo. Então também diminuiu a produção de gás natural, e os estoques que existiam foram sendo dilapidados pouco a pouco, principalmente quando as economias começaram a retomar a partir do início deste ano”, explica o diretor da mesa de fertilizantes da Stonex, Marcelo Mello.

Por fim, uma terceira crise, de caráter geopolítico, põe em risco a oferta mundial de potássio, o mesmo fertilizante que, em Mato Grosso, tirou o sono do agricultor Luiz Pedro Bier. Na Bielorrússia, país que concentra 20% da produção mundial, o presidente Alexander Lukashenko é acusado de fraudar as eleições realizadas no ano passado e, em maio deste ano, obrigou um voo comercial a fazer um pouso forçado na capital para prender um de seus opositores. A reação da comunidade internacional foi aumentar ainda mais as sanções já impostas contra o país, com a proibição da compra de potássio da estatal Belaruskali a partir de dezembro.

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“Nós, infelizmente, temos poucas opções. Quando se fala em correção de áreas de plantio, nós até temos o fosfato natural reativo, algumas rochas com potássio de baixa solubilidade, mas, para adubar soja, milho, algodão, café, pastagem, não tem para onde correr”, observa o pesquisador e professor da Esalq-USP Luiz Tadeu Jordão. Também produtor rural, ele comenta que tem enfrentado dificuldades para encomendar fertilizantes para o plantio da safra 2022/2023.

“A gente tenta negociar com as empresas,e eles não conseguem passar o preço para março, porque não sabem o que vai acontecer. Nunca vimos isso ocorrer no Brasil, realmente é um caos. E, infelizmente, a gente acaba ficando na mão”, relata Jordão, ao frisar que o Brasil é “altamente dependente de fertilizantes externos”.

“Todas as fontes alternativas disponíveis no país possuem baixa solubilidade, ou seja, o nutriente aplicado não estará disponível para a planta automaticamente e acaba se tornando muito caro, pois é pouco eficiente”, explicao pesquisador, ao mencionar, entre as possíveis alternativas, a adubação orgânica. “Seriam necessários milhões de bois para sustentar uma fazenda de 2 mil a 3 mil hectares. Então, a quantidade teria de ser muito grande e, mesmo que a gente partisse para a agricultura orgânica, não teria insumo para todo mundo, não daria tempo de produzir”, completa Jordão.

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Source: Rural

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