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O aumento da pobreza e do número de pessoas sem acesso à alimentação trazido pela pandemia de Covid-19 tornou ainda mais desafiador o cumprimento da meta global de zerar a fome no mundo até 2030, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). A avaliação é de Rafael Zavala, representante no Brasil da agência da ONU para a Agricultura e Alimentação (FAO).

"Na América Latina, as dificuldades econômicas, de ingresso de renda das famílias, provocaram que compraram alimentos mais baratos. Então, uma dieta saudável é um luxo e isso é terrível", lamenta, em entrevista à Globo Rural, ponderando que, no Brasil, esse impacto foi menor em comparação com outros países latino-americanos.

Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil (Foto: Divulgação/FAO Brasil)

 

 

Só no ano passado, a FAO estima que, em todo o mundo, a fome atingiu um contingente entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas, 161 milhões a mais do que em 2019. Zavala, mexicano de nascimento, avalia que é necessária uma transformação da forma como a sociedade lida com os alimentos.

"Precisamos transformar os sistemas alimentares. E de acordo com a realidade de cada país", diz ele. Uma transformação que passa pela diversificação da produção – sem deixar de reconhecera importância das commodities para a produção de proteína animal – e pelo fortalecimento de estratégias e políticas que promovam o que chama de sistemas agroalimentares de circuito curto, que reduzam a distância entre a produção e o consumo.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

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Globo Rural: A pandemia de Covid-19 elevou o alerta sobre a fome e a insegurança alimentar em escala global. Como a FAO vem avaliando este panorama?
Rafael Zavala: A pandemia significou um incremento na insegurança alimentar, na pobreza, no estresse dos sistemas alimentares. Em muitos casos, o efeito foi devastador. No caso do Brasil, foi significativo, mas não como aconteceu em outros. Aqui, a resposta do governo tem sido adequada, mas temos o desafio de que em toda a América Latina, e no Brasil é algo similar, aumentou o número de pobres. E não foi pouco. Na pobreza extrema, 28 milhões de pessoas. No total, 96 milhões de pessoas neste continente estão em pobreza extrema. Isso quer dizer 15% da população da região. Na pobreza geral, aumentou 45 milhões. É um total de 230 milhões de pessoas em condições de pobreza, 35% da população. É uma situação vergonhosa. O último dado em nível global, que é medido pela FAO e pelo Programa Mundial de Alimentos, estima que, entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas enfrentaram fome em 2020. Até 161 milhões a mais que em 2019. Esse é um impacto claro da pandemia. Quase 2,4 bilhões não tiveram acesso a uma alimentação adequada em 2020. Não é permanente. Dizemos que é uma fome estacional, em certos momentos, e isso é muito difícil de medir. Mas as estimativas são desta dimensão. No Brasil,  estima-se que, entre 2018 e 2020, cerca de 23% da população estava em situação de insegurança alimentar moderada ou severa. Isso representa 49 milhões de pessoas, o que são 12 milhões a mais que entre 2014 e 2016. Estávamos, antes de 2019, com o desafio da agenda 20/30. Depois da pandemia, é ainda mais desafiador.

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GR: A pandemia deixou mais evidente não só a diferença de acesso à alimentação, mas também a desigualdade socioeconômica entre as regiões do mundo, não?
RZ: Claro! Primeiro, temos que lembrar que o que acontece na América Latina, uma região cada dia mais com maior obesidade. As carências e dificuldades econômicas levaram à compra de alimentos mais baratos. Então, uma dieta saudável é um luxo e isso é terrível. Temos que mudar. Sobretudo porque as dietas saudáveis contêm os produtos como peixe, como frutas, legumes, verduras e esses produtos se elevaram de preço pela pandemia. Então, foi uma situação ainda pior que evidenciou mais a situação da desigualdade, da pobreza e a dispersão da fome em muitas comunidades. Esse é um ponto. O segundo ponto é o papel das comunidades e dos governos em resposta à pandemia. Alguns países, com mais recursos financeiros, puderam dar dinheiro líquido à população, mas, em outros países, não foi possível. No caso do Brasil, o governo teve uma reação positiva porque fortaleceu os programas sociais. E isso ajudou o impacto a ser menor, mas, de todo modo, a alimentação foi menos saudável.

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GR: O que a FAO entende serem as ações necessárias e mais urgentes para reverter esse cenário?
RZ: Uma das grandes lições que a pandemia deixa é que temos que transformar os sistemas alimentares. E, de acordo com as realidades dos países. No caso do Brasil, é muito importante destacar uma realidade que o diferencia de outros países da América Latina. Na maioria dos países da América Latina, a concentração da população acontecem em megacidades. No caso do México é muito claro, Argentina, Chile. Mas, no caso do Brasil, é diferente porque a maior parte da população mora em comunidades de menos de 750 mil habitantes. Nesses lugares, temos que ter mais cautela para gerar equilíbrio entre o urbano e o rural, gerar sistemas agroalimentares de circuito curto, que, além disso, gerem menor pegada de carbono, menor pegada hídrica e mais sustentabilidade. Esse é um grande desafio: transformar os sistemas alimentares no mundo e sobretudo muito mais acoplados às realidades dos diferentes países.

GR: Criar sistemas alimentares de circuito curto não passa também por promover um pouco mais a diversidade de produção agrícola nas diversas regiões do mundo? A produção de alimentos, na visão da FAO, ainda é bastante concentrada, com poucos ofertantes para muitos demandantes?
RZ: A maior parte dos alimentos do mundo são oito produtos. Temos que diversificar. Por outro lado, temos que ser conscientes. O que acontece com a soja, que é muito criticada, nós não temos um prato com soja. Mas a soja, o milho, que são commodities muito produzidas no Brasil, significam proteína animal, porque a maior parte vai para alimentar frango, peixes, boi, suínos. Então, sim, é muito importante. Fazer proteína para outros povos e regiões. O Brasil tem um desafio de continuar sendo um celeiro do mundo, mas tem que fazer também uma promoção dos sistemas alimentares ao interior porque estamos no país que é o coração da biodiversidade também. Então, por um lado promover a exportação dos produtos que significam renda para a população, significam divisas, recursos fiscais e, por outro lado, fomentar a distribuição, o varejo, o consumo dos produtos locais. Além disso, a maioria da população mora em cidades com poucos acesso a alimentos saudáveis e temos um sistema industrial que não favorece os alimentos saudáveis. Temos que fazer uma série de esforços para aproximar a fazenda do prato, para que as pessoas valorizem o novo conceito de alimentação. Temos que mudar nossa ideologia alimentar, para que se traduza em uma nova cultura alimentar, que possamos ter mais tempo para saber de onde vem os alimentos, que já não existam alimentos anônimos, que não saibamos onde foi produzido. Temos que estar muito melhor informados sobre o que temos em nossa mesa.

Estou verdadeiramente convencido de que, depois da pandemia, doi setores terão que ser fortalecidos. O primeiro é o setor de saúde. Outro é o setor alimentar

Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil

GR: Além da pandemia, tem outro alerta para os sistemas alimentares, que é a questão das mudanças climáticas. De que forma isso também se insere na visão da FAO sobre a fome, a insegurança alimentar e as dificuldades de produção agrícola no mundo?
RZ: Foi uma das razões para mudar a missão da FAO. Antes, era mais a luta contra a fome. Mas a fome é um desafio muito local em muitas localidades e muitos países. O que é geral é o desafio de transformar os sistemas agroalimentares. Essa é a visão da FAO. Transformar os sistemas alimentares para atingir melhor produção, melhor nutrição, melhor ambiente e isso vai ser uma melhor qualidade de vida. Dizemos que são os quatro melhores.

GR: Neste sentido, qual é o papel da FAO em levar essa discussão para além das questões ambientais e inseri-la em questões socioeconômicas e da própria segurança alimentar?
RZ: Em muitas campanhas políticas de vários países, frequentemente é escutado o desafio de produzir conservando e conservar produzindo. Mas é um grande desafio. Este ano começa, dentro das Nações Unidas, a década da restauração dos ecossistemas degradados. E a grande maioria dos ecossistemas degradados tem muito a ver com como se produz ou como se gera a agricultura. Temos que chegar a um melhor uso da água, melhorar sistemas de irrigação. Fazer um esforço para reduzir a pegada hídrica, produzir melhor e conservar nossos recursos. E mediante sistemas de informação que podem mostrar como se está produzindo, quem produz os alimentos, vamos estar mais perto de gerar maior cultura vinculada com a alimentação. Eu acho que as ferramentas digitais, vão fazer com que fiquemos mais perto desse sistema agroalimentar que produza melhor, nutra melhor, conserve melhor e nos dê mais qualidade de vida.

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GR: Esse cenário já afeta ou pode afetar o cumprimento do objetivo global de zerar a fome até 2030?
RZ: Por um lado, se, antes, era desafiador, agora é mais desafiador, pela quantidade de população em condições de pobreza e de insegurança alimentar. Mas, por outro lado, a situação de fome verdadeiramente severa, estou convencido que também é um tema de vontade política. Que possa ter cada um dos governos uma estratégia para verdadeiramente reduzir as condições de fome. Em geral, são desafios isolados, suficientemente isolados para poder soluciona-los. Estou convencido.

GR: Como a FAO vê a situação do Brasil, um dos mais importantes produtores agropecuários globais, onde também se tem visto a fome aumentar, mesmo em áreas rurais?
RZ: O Brasil é um país enorme. O desafio da fome no Brasil é localizado, não é nacional. Isso é um ponto muito positivo porque pode ser mais focalizado, mais concretamente abordado. É uma fome localizada e intermitente, em certas épocas ou em certos momentos, porque, no mundo, a fome acontece por três razões: a primeira é conflito armado. Aqui no Brasil, não temos; a segunda é catástrofe climática, que há em certas áreas da região Nordeste, por exemplo, ou as regiões na Amazônia que estão muito afastadas; e a última é uma catástrofe pandêmica, como a de Covid-19. Essa, sim, acontece. Então, a reação tem que ser nessas localidades, que, em muitas ocasiões são focos urbanos, núcleos urbanos: favelas ou espaços isolados ou comunidades afastadas. A vantagem do Brasil é que é um país muito bem conectado em vias terciárias e de distribuição, mas o desafio é que fique bem conectado em termos de internet, o desafio digital. Eu acho que estamos em uma situação otimista quanto a gerar informação que evidencie como produzimos os alimentos. Por outro lado, contamos com ferramentas como programas de alimentação escolar, que, no caso brasileiro, é fabuloso, que apoiem essa mudança cultura relacionada a uma alimentação saudável. Em termos de política pública para o Brasil, por um lado, temos que continuar avançado com essa grande responsabilidade de ser o celeiro do mundo ou ser o gerador de alimentos para produzir proteína, que é a grande função das commodities. Ao mesmo tempo, outro desafio é gerar uma estratégia para fortalecer esses sistemas alimentares de circuito curto. Se fizermos uma rastreabilidade de onde vem os alimentos que se consomem nas pequenas cidades, em muitas ocasiões, recorrem a muitos quilômetros, quando poderiam ser aproveitadas as distribuições locais e, ao mesmo tempo, gerando empregos rurais e estabilidade.

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GR: O Brasil caminha na direção correta de promover sistemas alimentares melhores e melhor conciliação entre o desenvolvimento e a preservação?
RZ: Temos que diferenciar entre a parte ambiental e a parte produtiva, em termos também de imagem. Também temos que distinguir entre o que são as políticas públicas e outras declarações políticas, que nem sempre vão juntas. Eu acho que o Brasil tem uma institucionalidade muito favorável para o desenvolvimento dos sistemas alimentares sustentáveis. As políticas públicas para fortalecimento da agricultura familiar são muito positivas, mas ainda não são suficientes. Eu acho que a região Nordeste é um grande desafio para fortalecer as políticas públicas para agricultura familiar, promover o cooperativismo, associações entre os produtores. Além disso, temos que lembrar que o Nordeste é menos resiliente ou mais vulnerável climaticamente. Então, políticas públicas e institucionalidade, certamente existem, mas é certo também que há regiões enormes e que não é fácil de gerar uma política ou estratégia que alcance a todos. O desafio é espacial.

GR: Em 15 de outubro é comemorado o Dia Internacional da Mulher Rural. Qual o efeito de todo esse cenário que estamos vivendo sobre a mulher rural?
RZ: Dentro da pandemia, quem mais perdeu foram as mulheres rurais. Porque há uma grande quantidade de serviços, de empregos não vinculados à agricultura como tal, mas, à atividade das mulheres rurais. E a grande maioria desses, que chamamos de emprego rural não agrícola, foi brutalmente atingido. Temos que gerar estratégias para fortalecer a resiliência e a capacidade de resposta desses serviços, que, em muitas ocasiões, são informais. Temos que fortalecer a formalidade desses serviços e vamos fortalecer as mulheres rurais neste sentido. A realidade é que as mulheres tem, em geral, tem menos condições para ter terra, para financiamentos, crédito. A FAO tem uma campanha mundial, que se chama Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos. E, em muitos países, é uma campanha que fica nos ministérios de desenvolvimento social. Mas, no caso do Brasil, é uma campanha com o Ministério da Agricultura e eu gosto muito disso porque está muito vinculado com os desafios da mulher rural no Brasil.

O Brasil tem o desafio de continuar sendo o celeiro do mundo, mas tem que fazer também uma promoção dos sistemas alimentares ao interior, porque estamos no país que é o coração da biodiversidade

Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil

GR: Quais os desafios para fortalecer a participação da mulher nos sistemas alimentares?
RZ: O primeiro é esquecer as cadeias. Se vemos como uma cadeia alimentar, estamos vendo somente produtos. Temos que ver como sistema agroalimentar. Outro desafio é pensar menos agrícolas e mais rural. Se queremos atingir sistemas agroalimentares de circuito curto e, obviamente, um desafio de interinstitucionalidade para as políticas publicas. Que estejam trabalhando juntos os governo locais com governos estaduais e governo federal e, também, certamente, que haja uma harmonia entre geração de leis em nível local, estadual e nacional e políticas públicas.

GR: Esses desafios valem tanto para as mulheres ligadas à grande produção agrícola quando às ligadas à pequena e média produção? O desafio é semelhante?
RZ: É semelhante, mas muitos casos, ainda por condições de vulnerabilidade, é mais desafiador nas comunidades rurais mais pobres porque estamos em condições de economias informais e quando falamos de sistemas de pensão, sistemas de segurança econômica, elas estão ainda mais afastadas.

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GR: No dia 16 de outubro, tem outra data importante para a FAO, que é o Dia Mundial da Alimentação. Neste cenário de pandemia, mudanças climáticas, qual a mensagem que a FAO quer deixar para o mundo neste ano?
RZ: O tema do Dia Mundial da Alimentação deste ano é "as nossas ações são o nosso futuro". Melhor produção, melhor nutrição, melhor ambiente e melhor qualidade de vida. Esse é o grande desafio. Transformar os sistemas alimentares para uma melhor vida e com um melhor ambiente. Estou verdadeiramente convencido de que, depois da pandemia, vão haver dois setores que tem que ser muito fortalecidos nos diferentes países. O primeiro é o setor de saúde. Eu gosto muito do sistema nacional de saúde brasileiro, muito robusto. Mas outros países, ficou muito claro que os sistemas têm que ser fortalecidos. E outro setor é o setor alimentar. E o Dia Mundial da Alimentação, no caso do Brasil, não é o dia da FAO, porque celebramos com outras agências vinculadas à agricultura e alimentação, como o Programa Mundial de Alimentos, que é parte das Nações Unidas, o FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento da Agricultura), que é o braço financeiro. E também convidamos há três anos o IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura), que é um organismo da Organização dos Estados Americanos. Vamos celebrar conjuntamente.
Source: Rural

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