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O caminhão carregado de soja tenta subir uma ladeira na estrada de terra de 43 quilômetros que liga Santarém a Jabuti, no oeste do Pará, no período das chuvas, para chegar aos centros de recebimento de grãos. O veículo patina na lama, volta de ré e tomba atravessado na pista estreita. A solução é esperar a chegada de máquinas da prefeitura ou dos tratores dos produtores rurais para retirar o caminhão e desimpedir a via. A cena é bem comum na região, que é um dos polos da produção agropecuária do Pará e movimenta R$ 1,5 bilhão por ano, segundo o presidente do Sindicato Rural de Santarém, Sergio Schwade.

Estrada vicinal que liga Muzambinho (MG) a Caconde (SP) (Foto: Ricardo Benichio/Ed. Globo)

 

Essa vulnerabilidade no escoamento da safra em Santarém foi identificada em um  levantamento inédito da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) sobre as condições das estradas vicinais, também conhecidas como agrovias ou estradas municipais.  Essas vias são responsáveis por levar a produção agropecuária para os centros de armazenagem, consumo, comercialização ou exportação, além de serem o acesso usado por milhares de moradores das comunidades rurais às cidades.

“Nossa safra é escoada nos períodos de chuva e todos os anos a estrada que liga Santarém a Jaboti fica lisa e muito esburacada, causando acidentes, tombamentos de caminhões e quedas de pontes de madeira”, diz Gabriel Stefanelo, produtor de soja, milho, arroz, feijão, gergelim e milheto em 3.500 hectares em Mojuí dos Campos e Belterra, ex-distritos de Santarém. Ele se refere a PA-433, que, apesar de ser estadual, não é asfaltada.

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Segundo ele, a estrada é o grande gargalo para o transporte de grãos, gado, hortifrútis e outros produtos, além de ser caminho dos moradores das comunidades rurais para a cidade. “Tem  muito tráfego, é cheia de ladeiras e acontecem pelo menos dez acidentes por ano. Há dias em que se formam filas de 50 veículos parados porque um caminhão tenta subir e acaba derrapando.” Stefanelo diz que as péssimas condições da estrada acarretam prejuízo aos produtores e aumento de custos. “O frete para levar a soja da fazenda até a recepção da Cargill, por exemplo, sobe de R$ 1,30 por saco para R$ 1,80 se tiver de passar pela PA-433.”

Agnelo França, produtor de soja, milho e gado de corte em 1.000 hectares na mesma região, conta que a via de ligação das cidades já ficou interrompida por três dias. “No ano passado, nosso caminhão tentou subir na pista molhada, derrapou e voltou. Eu mesmo já tirei ônibus escolar de dentro do rio porque as pontes demadeiras se romperam.”

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Raimundo Eneas Ribeiro, pecuarista e proprietário de um frigorífico com capacidade para abater 600 cabeças por dia que fica no ramal de Miritituba, também na região de Santarém, diz que seu estabelecimento está instalado há 21 anos na vicinal e, na época das chuvas, fica muito difícil receber o gado. “A estrada é cheia de buracos e demora anos para receber algum tipo de manutenção. Uma carreta minha tombou lotada de bois e já tive cargas que demoraram dois dias a mais para chegar.”

Ronaldo dos Santos, presidente da Associação de Produtores Rurais da Comunidade do Diamantino, que concentra produtores de hortifrútis, diz que, no período das chuvas, é um desafio levar a produção pelo ramal para o mercado de Santarém, a 20 quilômetros de distância, e que muita gente já teve prejuízo. “Muitas vezes, nem o ônibus consegue passar. A água transborda na ponte e paralisa o tráfego.Aí quem remenda a estrada é o dono do frigorífico.”

Caminhão atravessa ponte em vicinal que está sendo reconstruída, em Muzambinho (MG) (Foto: Ricardo Benichio/Ed. Globo)

 

Para Carlos Henrique Lima Chaves, produtor de leite, de caprinos e peixes na cidade  paraense, o desafio é transportar sua produção pela Vicinal do Guaraná, partindo da comunidade de Santarém Mirim. “Nos seis meses de chuva, a Vicinal do Guaraná, que atende os produtores e seis comunidades, vira uma poça de lama, um verdadeiro atoleiro. Muitas vezes, quem consegue passar não tem como voltar.” 

A precariedade das vicinais não é uma exclusividade do Pará. O estudo da CNA, que incluiu dados de produção agropecuária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e das Federações de Agricultura e Pecuária dos Estados, concluiu que 68,1% do total da malha viária do país é composta por vicinais e estradas não pavimentadas. O destaque é a Região Norte, onde fica o Pará, com 83,3%, mas,em mais da metade dos Estados, essas vias correspondem a pelo menos 50% da malha. O levantamento identificou a necessidade de manutenção em 693 mil quilômetros de vicinais. Outros 85 mil quilômetros  demandam ampliação. Não há cálculos sobre o volume de recursos necessários para essas obras. 

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“Essas estradas de ligação não precisam necessariamente ser asfaltadas, mas têm de ser adequadas ao transporte de produtos e de pessoas”, diz Elisangela Pereira Lopes, assessora técnica da CNA. Segundo ela, a falta de manutenção gera aumento de preços dos produtos, visto que eleva o custo de fretes e os gastos com manutenção dos veículos, além de dificultar o abastecimento de insumos das fazendas e a circulação dos moradores da zona rural. “O maior tempo gasto no transporte diminui o tempo de prateleira e a vibração ocasionada pelas irregularidades das pistas gera perdas na qualidade dos produtos, impactando no seu preço final.”

Produtor leva o café da família para a cooperativa (Foto: Ricardo Benichio/Ed. Globo)

Elisangela diz que a CNA decidiu fazer o levantamento para verificar a extensão desse problema logístico e levantar a discussão sobre seu impacto na produção. O estudo cruzou dados da extensão das vias com valores de produção agropecuária das regiões e índices de precipitação pluviométrica (maior volume de chuvas demanda mais manutenção) para criar o Índice de Vulnerabilidade de Transporte (IVT) dos produtos agropecuários. 

Santarém ficou como líder do ranking das microrregiões brasileiras de alta produção  agropecuária mais vulneráveis, com IVT de 0,21 (quanto mais perto de zero, maior é a necessidade de manutenção). O top five se completa com Arinos (0,23), Alto Teles Pires (0,24), Sinop (0,26) e Canarana (0,27), todas em Mato Grosso.

Ainda considerando as microrregiões de alta produção, seis cidades têm IVT de 0,50, ou seja, estão moderadamente vulneráveis: Passo Fundo (RS), São Carlos (SP), Erechim (RS), Goioerê (PR) e Uberaba (MG). Na ponta oposta, ou seja, em melhor situação, estão as regiões de Jaboticabal (SP) e da Mata Setentrional de Pernambuco, com IVT de 0,63 e 0,65.

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Mato Grosso, maior produtor de grãos do país, tem nove cidades entre as 20 mais  vulneráveis. Agenor Andrade, pecuarista, diretor executivo da Associação dos Criadores do MT (Acrimat) e vice-presidente do Sindicato Rural de Marcelândia, diz que o crescimento do
agro no Estado é muito superior à média nacional, o que possibilita entender que, mesmo quando o governo estadual e as prefeituras investem em infraestrutura de pontes e estradas, não conseguem atender à demanda.

“É comum o produtor, além de pagar o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), investir em melhorias pontuais nas estradas para viabilizar o escoamento da produção.”

Cleber Marcon, produtor de café e presidente do Sindicato Rural dos Agricultores Familiares de Muzambinho (Foto: Ricardo Benichio/Ed. Globo)

 

 

Segundo ele, o período chuvoso na região, que fica a 160 quilômetros de Sinop, coincide  com a colheita da soja e também com a produção pecuária, e todos os anos ocorrem limitações de trafegabilidade em alguns pontos, o que eleva o custo do frete e acarreta prejuízos aos produtores.

Para Edeon Vaz Ferreira, diretor executivo do Movimento Pró-Logística deMato Grosso, a baixa manutenção das vicinais, que somam cerca de 100 mil quilômetros no Estado, atrapalha o escoamento da produção e impacta na rentabilidade do agricultor, mas o foco de
demandas viárias do Pró-Logística, diante da escassez de recursos públicos, são mesmo as rodovias estaduais e federais.

“O fato é que as vicinais são o primo pobre. Comparando com o corpo humano, as estradas federais são as artérias, as estaduais são as veias e as vicinais representam os vasos sanguíneos.”

Ferreira cita que alguns Estados investem mais em suas vicinais, caso do Paraná e de São Paulo, que têm boa parte delas pavimentada. O diretor diz que o Pró-Logística defende a criação de um projeto federal para transferir recursos às prefeituras para a manutenção das vicinais, mas considera fundamental também a participação do produtor na manutenção desses “vasos sanguíneos”.

A vibração ocasionada pelas irregularidades nas pistas gera perdas de qualidade dos produtos"

Elisângela Pereira Lopes, assessora técnica da CNA

Pelo levantamento da CNA, Minas Gerais é o Estado com mais estradas que necessitam de recuperação, um total de 86 mil quilômetros, seguido por Mato Grosso (69 mil) e Bahia (67 mil). Muzambinho, na região sul do Estado onde fica o circuito das montanhas cafeeiras, tem 2 mil quilômetros de vicinais sem asfalto e 70% de sua população envolvida com a produção de café. A estrada que liga a cidade de 20.500 habitantes ao município paulista de Caconde tem 17 quilômetros e só é asfaltada a partir da divisa de São Paulo. O secretário municipal de Turismo, Wilson Dias Lima, diz que a prefeitura recebeu neste ano uma verba de R$ 13,4 milhões do Ministério do Desenvolvimento Regional para, finalmente, asfaltar a via, aberta há mais de 60 anos, mas o restante das estradas municipais terá de esperar.

“O maquinário da prefeitura para cascalhar as estradas, cuidar das pontes de madeira e tirar a água está sucateado. No orçamento municipal de R$ 49 milhões, temos apenas R$ 550 mil para cuidar das vicinais, o que dá um valor de R$ 275 por quilômetro”, explica Lima, acrescentando que é interesse do município melhorar as vicinais, até para atrair turistas interessados em conhecer o maior terreiro de escravos do sul de Minas, as centenárias fazendas de café e outros imóveis da cidade tombados pelo patrimônio histórico.

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Cleber de Oliveira Marcon, produtor de café e presidente do Sindicato Rural dos Agricultores Familiares de Muzambinho, diz que a situação das vicinais na região está ruim, mas já foi pior. “Na época das chuvas, a partir de setembro, é comum ver caminhões carregados quebrados ou atolados nas estradas de lama. O desgaste dos veículos é grande. Não tem como ter um carro bom e rodar por essas vias”, diz Marcon, acrescentando que 60% da população da cidade vive na zona rural, que tem cerca de 50 pontes de madeira e 600 mata-burros para manutenção da prefeitura.

Passagem de água em vicinal em Nova Resende (Foto: Ricardo Benichio/Ed. Globo)

Na vizinha cidade de Nova Resende, após uma luta de mais de dez anos, a Estrada da Petúnia, vicinal que liga a cidade à comunidade de Petúnia e margeia roças e terreiros de café, está em obras para receber asfalto, viabilizado por recursos de emendas parlamentares. “Quando chove por aqui, os caminhões encravam na lama e nos buracos, sem falar nos ônibus escolares, que não conseguem passar”, conta Roberto Guelere, da quata geração do café, que usa um trator para levar a produção anual de 100 sacas da roça de seu pai, José Guelere Filho, até a unidade da cooperativa Guaxupé na cidade.

Elisangela Pereira Lopes, a assessora técnica da CNA, lembra que a manutenção das estradas vicinais é de responsabilidade do setor público, mas o que ocorre, na prática, é os produtores se unirem às prefeituras para fazer o trabalho, doando materiais, como cascalho para o revestimento, diesel para o trabalho das máquinas e até alimentando os funcionários da prefeitura envolvidos na obra.

Um projeto de lei que tramita na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, com apoio da CNA e da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), prevê a criação de uma política para assegurar a mobilidade no meio rural por meio das estradas vicinais, facilitando o
escoamento da produção e o turismo rural. O PL 1.146/2021 foi proposto pelo deputado Christino Aureo (PP-RJ), diretor da FPA.
Source: Rural

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