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Em 1986, o pecuarista Modesto Sampaio comprou uma fazenda de 100 hectares nas redondezas de Jardim, em Mato Grosso do Sul. A ideia era criar gado na propriedade, mas mal sabia ele que, bem no meio da fazenda, havia um buraco gigante que, tempos depois, soube, tratava-se de uma dolina, um tipo de depressão circular em forma de funil que pode ocorrer em terrenos calcários. Curioso, o fazendeiro foi assuntar, com os peões da região, sobre a história daquele buraco, que, de tempos em tempos, engolia seus animais.

Modesto ouviu histórias incríveis – e algumas até assustadoras. Conversou com a herdeira dos primeiros proprietários da fazenda e descobriu que a cavidade, descoberta em 1912, era um reduto de aves nativas do Cerrado.

Tempos depois, virou local de caça, tiro ao alvo e até mesmo desova de corpos e carros roubados. As aves coloridas que viviam lá sumiram, dando espaço para os urubus. Com a ajuda dos filhos e de voluntários, ele limpou a dolina. De lá, saíram quatro caminhões de lixo.

Arara: pássaro é a principal atração em fazenda ecológica do Mato Grosso do Sul (Foto: Getty Images)

 

Passadas mais de três décadas, o buraco se tornou uma atração e tanto. Não pelas histórias colhidas pelo pecuarista, mas pelo seu esforço em recuperar a paisagem nativa e trazer de volta seus principais moradores.

Desde 2007, o Buraco das Araras é uma Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) de 30 hectares, que reúne mais de 156 espécies de pássaros. Com o plano de negócios em mão, Modesto e os filhos continuaram criando gado, mas descobriram que podiam ganhar dinheiro com a preservação ambiental.

Hoje com 81 anos, Modesto lembra que, quando comprou a propriedade, não gostava de ver dezenas de pessoas invadindo o local para a prática de tiro ao alvo nas araras. “Eu dizia que o novo patrão era muito bravo, que era para aquelas pessoas não irem mais lá”, conta.

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“Depois, mandamos cercar o buraco, para proteger os animais que caiam nele, e começamos a recuperar a mata, fazendo mudas, plantando. Criamos ninhos para as aves, e pensei que, se um dia duas araras voltas sem para o buraco, eu já estaria muito satisfeito.”

E elas voltaram, depois de dez anos, em 1996. Mas não foram somente algumas (as araras são aves monogâmicas e voam sempre em duplas). Mais de 120 casais de aves regressaram para o local para procriar e voar em espiral, contornando a dolina como numa coreografia ensaiada, assim como outras espécies de pássaros. As pessoas começaram a chegar para assistir ao espetáculo das aves, e não mais para caçá-las, e então a família fundou uma empresa de ecoturismo.

Dolina: Seu Modesto Sampaio em um mirante para observação de araras (Foto: Saul Sohramm)

 

Rosevelt Sampaio, gestor do Buraco das Araras e filho de Modesto, contou que a ideia de transformar o local em uma RPPN só aconteceu depois da fundação da empresa de turismo. “Não tínhamos conhecimento nem informações sobre como criar uma reserva particular de patrimônio natural”, lembra.

Hoje, o Buraco das Araras é um dos locais mais procurados da região. A RPPN recebe, em média, 1.800 pessoas por mês, que pagam entre R$ 83 e R$ 288 para observar e fotografar os pássaros ou apenas contemplar a dolina. Modesto, que nem imaginava que poderia ter um plano de negócios ecológico, é o anfitrião oficial do local.

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É possível criar uma RPPN e elaborar um plano de negócios para obter lucro preservando a natureza

Michael Becker, coordenador do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF)

Na fazenda da família, a RPPN é a principal atividade econômica. O rebanho de gado, de aproximadamente 600 cabeças, foi transferido para outra propriedade, de 1.200 hectares, no Pantanal. As atividades da reserva geram um faturamento suficiente para que a família cubra os custos da propriedade e obtenha lucros. “Todo o faturamento vem das atividades desenvolvidas exclusivamente na RPPN”, afirma Rosevelt.

Mas ele lembra que transformar parte da propriedade em RPPN, em 2007, não foi uma tarefa simples. “No início, por termos poucos conhecimentos e somente a vontade de preservar o local, apareceram várias dificuldades”, diz. “Buscamos apoio de entidades que reuniam outros produtores rurais que criaram RPPNs na região e conseguimos, depois de quase um ano, estabelecer uma área protegida para sempre.”

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De acordo com a Confederação Nacional de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (CNRPPN), existem atualmente no Brasil 1.667 RPPNs, que, juntas, somam 807 mil hectares de território protegido permanentemente. São áreas concedidas no âmbito federal (42%), estadual (54,8%) ou municipal (3,2%), mas todas com o mesmo objetivo: preservar permanentemente a área, restaurando a flora e a fauna nativas.

O bioma Mata Atlântica reúne o maior número de RPPNs no Brasil, 1.228, somando 232 mil hectares preservados. Em seguida, vem o Cerrado, com 251 RPPNs, que garantem a preservação de 183 mil hectares; e, em terceiro, a Caatinga, com 82 unidades de RPPN e 77 mil hectares. Os biomas Amazônia, Pantanal, Ecossistemas Costeiros e o Pampa possuem 59, 22, 12 e oito RPPNs, respectivamente. Em área total protegida, o Pantanal lidera a lista, com 263 mil hectares.

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As RPPNs são unidades de conservação particulares, gravadas com perpetuidade na matrícula do imóvel, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. A sua criação, que não exige extensão mínima ou máxima, pode ser feita em qualquer área rural onde outrora havia atividade agropecuária, trechos inadequados para a agricultura ou pecuária, ou dentro de APP (área de preservação permanente) ou RL (reserva legal).

“A criação da RPPN não afeta a titularidade do imóvel e não implica que o proprietário deixe a área ociosa, sem atividade econômica”, explica o economista ambiental Michael Becker, coordenador do CEPF (Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos, na sigla em inglês).

Becker coordena um programa que visa instaurar no Cerrado pelo menos 50 novas RPPNs em cinco anos. O projeto, que tem apoio de Japão, União Europeia, Banco Mundial, Agência Francesa para o Desenvolvimento, Fundo para o Meio Ambiente Global e da ONG Conservação Internacional, começou a atuar no bioma em 2016 e, até agora, 47 novas RPPNs já foram criadas, em parceria com entidades como InstitutoCerrados,Instituto Oca, de Goiás, e Fundo Pró-Natureza (Funatura). “É possível criar uma RPPN e elaborar um plano de negócios para a área e obter lucro preservando a natureza”, diz Becker.

Birdwatching: turistas observam os pássaros na RPPN Buraco das Araras (Foto: Saul Schramm)

 

Para criar uma RPPN em parte da propriedade, é preciso estar com as documentações fundiárias e ambientais em dia: Cadastro Ambiental Rural (CAR), matrícula do imóvel atualizada, certidões negativas e todos os requerimentos exigidos pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MME), preenchidos com os dados do imóvel para avançar com o pedido. O custo do processo, segundo Becker, do CEPF, gira em torno de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil.

Para estimular os produtores rurais do Cerrado a criarem as RPPNs, o CEPF está bancando o investimento por meio dos aportes recebidos das entidades internacionais apoiadoras, assim como assistência técnica e jurídica. “Os produtores rurais têm interesse na criação da RPPN, mas existem inúmeras dúvidas sobre como iniciar o processo, como dar continuidade, e nós os orientamos como uma prestação de serviços”, afirma o economista. “Inclusive na elaboração de um plano de negócios.”

Por enquanto, o plano de negócios em uma RPPN pode incluir três tipos de atividades: ecoturismo, como fazem os Sampaio em Mato Grosso do Sul, pesquisa científica ou educação ambiental. “A agricultura de baixo carbono é uma demanda global e o produtor que contribui com a preservação ambiental sai em vantagem”, diz Becker. “E os mercados de créditos de carbono e pagamentos por serviços ambientais (PSA), ainda que estejam começando por aqui, já são uma realidade.”

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Laércio Machado de Souza, técnico da Fundação Pró-Natureza (Funatura), uma das entidades que auxiliaram a família Sampaio a estabelecer a RPPN Buraco das Araras, diz que, além do valor agregado que a preservação gera para a propriedade e suas atividades, o produtor rural pode se beneficiar de outras formas com a criação de uma RPPN. Uma delas é a isenção do Imposto Territorial Rural (ITR). “Todo produtor rural sabe que existem áreas na fazenda que são impróprias para a agricultura ou para a pecuária, mas, ainda assim, ele tem de pagar o ITR sobre aquela área”, lembra.

Souza destaca ainda que, na RPPN, nascentes de água e a diversidade nativa são preservadas, trazendo inúmeros benefícios ambientais. “A água é um recurso indispensável para a agricultura, assim como nas áreas no entorno das reservas, aumenta significativamente a polinização”, diz. “Abelhas não saem da geladeira, elas se multiplicam em florestas, em áreas preservadas.”

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Ele destaca que, investindo em preservação, o produtor rural atende às demandas do mercado global, porque não será mais apenas um produtor rural, mas um produtor de meio ambiente. “Com uma RPPN, ele deixa de ser apenas um produtor de grãos ou de carnes e se transforma num produtor agroambiental.”

Além da isenção de ITR, o proprietário que estabelece uma RPPN tem o direito de propriedade preservado, prioridade na análise de projetos pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e preferência na análise de pedidos de concessão de crédito agrícola nas instituições financeiras oficiais.
Source: Rural

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