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A quantidade de água que temos no Planeta atualmente é a mesma há dois bilhões de anos. Quem diz isso é Luis Antônio Bittar, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo (USP) ao afirmar que a indisponibilidade hídrica não é ocasionada pela falta de chuvas.

“Por mais que a humanidade use e use [a água], essa quantidade nunca vai diminuir. O que vai diminuir é a qualidade, porque a humanidade usa, suja e devolve suja”, explica.

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Na foto, chão rachado mostra seca no semiárido brasileiro e expõe que a má gestão hídrica agrava a condição geográfica da região de receber menos chuvas (Foto: Ernesto de Souza/Ed. Globo)

 

No ciclo hidrológico, segundo ele, a água apenas muda de lugar, circulando entre oceano, atmosfera, geleira, solos, rios, vegetação etc. “Então, crise hídrica não existe. Nunca existirá. O que existe é crise de gerenciamento hídrico, como a humanidade se apropria disso, usa e devolve suja”, enfatiza.

Bittar lembra que crise é um conceito social, “não se pode atribuir à natureza a responsabilidade pela falta d'água”. Neste sentido, Luciano Meneses, coordenador da área de administração da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), ilustra que a bacia hidrográfica não reconhece o que é a divisão político-administrativa dos estados. “O Rio São Francisco não sabe o que é Bahia, Alagoas ou Sergipe. Isso é uma invenção humana”, exemplifica.

Por isso, o que existe no semiárido brasileiro não é crise hídrica, mas uma escassez natural de água, decorrente do que Bittar chama de “domínio morfoclimático e fitogeográfico das caatingas”, ou seja, a paisagem da região.

“Aquela paisagem funciona muito bem com aquela quantidade de água. Está em equilíbrio, da mesma forma como a Amazônia está em equilíbrio com aquela enorme quantidade de água. Então, não existe crise natural”. E completa: “Se uma população resolve se estabelecer em uma região seca e ela não é capaz de assegurar o seu abastecimento, isso é um problema social, nunca natural.”

Se uma população resolve se estabelecer em uma região seca e ela não é capaz de assegurar o seu abastecimento, isso é um problema social, nunca natural

Luis Antônio Bittar, geógrafo e professor da USP

Clima

Bittar é categórico: a culpa não é de São Pedro. “Os gestores, para se redimirem das suas responsabilidades, dizem que choveu pouco, mas não é isso. Mesmo que aquele ano ficasse até o fim sem chover, nós teríamos água suficiente”, diz. Portanto, a falta de água é consequência da ação humana.

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Desmatamento e urbanização são exemplos de mudanças no uso do solo provocadas pela humanidade e que afetam diretamente o ciclo hídrico, conforme aponta Samuel Barrêto, gerente Nacional de Água da The Nature Conservancy (TNC Brasil).

“Hoje nós estamos interrompendo de diversas formas esse ciclo, pois em vez de proteger áreas de mananciais, estamos desmatando. As cidades estão avançando sobre essas áreas, impermeabilizando o solo ou ocupando áreas importantes como de recarga de aquíferos e matas ciliares”, conta.

Ao alterar a paisagem, em vez de a água se infiltrar no solo, ela escorre superficialmente. No período de seca, essa água não está onde deveria. “Se a água estivesse retida naquela área subterrânea de um lençol freático, poderia estar abastecendo a bacia e diminuindo esses picos entre chuva e seca”, esclarece Barrêto.

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Não por acaso, o País passa pela pior crise de gestão hídrica desde 1930 e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) prevê que os reservatórios de pelo menos oito importantes usinas hidrelétricas localizadas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste devem chegar a novembro praticamente vazios.

A informação é do jornal O Globo, que revelou que a ONS enviou ao Ministério de Minas e Energia uma carta em que alerta para a “perda do controle hidráulico", quando as usinas hidrelétricas são forçadas a parar por falta de água.

No caso do semiárido, a escassez natural, como já mencionada por Bittar, é uma condição climática, não uma crise. Um exemplo disso é a forma que a chuva acontece no Nordeste, como elucida Luciano Meneses.

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A atmosfera cobra pedágio e o pedágio é a evaporação

Luciano Meneses, coordenador da ANA

De acordo com ele, na região chove em média 500 milímetros por ano – sendo um milímetro equivalente a um litro d’água em um metro quadrado -, enquanto o potencial de evaporar é de 2 mil a 2,5 mil milímetros por ano. “A atmosfera cobra pedágio e o pedágio é a evaporação. Se deixar aquele lago parado, ele vai só perdendo 2 mil a 2,5 mil milímetros por ano, então você tem um déficit”, conta.

Esta condição do Nordeste, apesar de ser pré-existente, não tem previsão exata. Meneses resume que no semiárido existe apenas uma certeza: de que não vai chover no segundo semestre e há possibilidade de chover no primeiro semestre. “É uma realidade cruel”, lamenta ao dizer que nestas situações a gestão do recurso se faz ainda mais necessária.

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Ele pontua que o serviço de meteorologia funciona muito bem para previsão de curtíssimo prazo, mas não é essa previsão que interessa para quem deseja saber se e quanto vai chover daqui a seis ou nove meses. E afirma: "ninguém no Planeta tem esse poder de previsão". “É uma grande interrogação, porque essas coisas dependem do El Niño, La Niña, se o Atlântico aquece ou esfria, se o Pacífico aquece ou esfria, mas ninguém sabe o que faz isso acontecer. Sabe-se a consequência, mas não o que causa”, assegura.

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Crise de gestão

 

 

Se eu abrir a torneira e não tiver água, é porque alguém não soube limpar e distribuir

Luis Antônio Bittar, geógrafo e professor da USP

Para elucidar a relevância da gestão hídrica e a diferença entre disponibilidade de água e qualidade para uso, Luis Bittar, da USP, aponta que a Represa Billings – um dos maiores e mais importantes reservatórios de água da Região Metropolitana de São Paulo – poderia abastecer cinco milhões de pessoas, mas nem ⅕ do potencial é usado. “Diariamente, são despejados 800 toneladas de esgoto, 500 toneladas de lixo. Ou seja, a crise é da gestão, do gerenciamento, nunca da água”, diz.

A questão da qualidade também é colocada por Samuel Barrêto, ao alertar que cerca de 114 mil quilômetros de rios no Brasil apresentam algum nível de poluição. “É cerca de um terço do caminho da Terra até a Lua. Isso por si já afeta diretamente diversas atividades, como irrigação e lazer”, diz ao citar que 70% das internações hospitalares pediátricas no País são decorrentes de doenças transmitidas pela água contaminada.

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O gerente da TNC também comenta que, segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico, aproximadamente 25 milhões de pessoas no ambiente rural ou não têm acesso ou não têm acesso adequado ao saneamento.

A outra ponta da falta d’água é o sobreuso, quando se usa mais que a capacidade de repor. “Se a gente ganha 100 reais, não dá para gastar 110 reais. Em muitos lugares do Brasil estamos usando mais que a capacidade de reposição, então é uma situação de conflito pelo uso, que pode acentuar a escassez”, explica Barrêto.

Até hoje não acharam um substituto para a água. E por conta disso, torna-se um bem que gera rivalidade

Luciano Meneses, coordenador da ANA

Neste sentido, Luciano Meneses, da ANA, afirma que gestão hídrica é gestão de conflitos, pois é lidar com o gerenciamento do mesmo bem para usos e públicos diversos. “Você tem um bem que todo mundo precisa, até hoje não acharam um substituto para a água. E por conta disso, torna-se um bem que gera rivalidade”, afirma ao comentar que a etimologia da palavra rivalidade vem do latim rivalis, que significa ‘aqueles que compartilham o uso de um rio’.

Sem ter o suficiente para usos múltiplos, como irrigação, indústria, mineração, geração de energia, aquicultura, entre outros, Meneses pondera que há épocas que tem água demais, podendo trazer problemas de inundação, e tem época que tem água de menos, faltando para alguém. E Luis Bittar segue o mesmo raciocínio: “Se eu abrir a torneira e não tiver água, é porque alguém não soube limpar e distribuir.”

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De acordo com a lei federal nº 9.433/1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cabe aos órgãos gestores destes recursos fazerem o controle, mediação e fiscalização, determinando como devem ser repartidas essas águas.

No Brasil, há 28 órgãos gestores, sendo a ANA e mais 27 dos estados e Distrito Federal. Além disso, Meneses cita a existência dos comitês de bacia. “São como um condomínio, onde você tem usuário de água, sociedade civil e governo e eles discutem os problemas da bacia hidrográfica”, diz. É por meio deles que devem ser estudados e discutidos os riscos de seca, enchentes ou insegurança hídrica.

A água é um […] assunto de interesse nacional, o que falta é vontade política e liderança

Samuel Barrêto, gerente Nacional de Água da TNC

"A água é um elemento fundamental para o desenvolvimento do País, para a segurança e bem-estar das pessoas e como tal deve ser tratado. É um assunto de interesse nacional, o que falta é vontade política e liderança", contesta Samuel Barrêto, da TNC.

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Source: Rural

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