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Um dos impactos da deriva do 2,4D é na produção de oliveiras. Foto mostra que só um fruto se desenvolveu devido à perda de vigor e força da planta (Foto: Valter Potter/Arquivo Pessoal)

 

De um lado, produtores de uvas, maçãs, azeitonas, ameixas, pêssegos, tabaco e mais seis culturas da diversificada agricultura gaúcha. De outro, produtores de soja, cultura que avança a passos largos no Rio Grande do Sul, atingindo quase 6 milhões de hectares, um aumento de 2,9% na área plantada em relação à safra anterior.

Entre eles, um herbicida hormonal com o princípio ativo 2,4-D, usado no pré-plantio da soja para eliminar a buva, planta invasora muito resistente e comum no Estado.

O problema, detectado por laudos laboratoriais há três anos, é que, mal aplicado ou em condições e horários adversos, o agrotóxico é levado pelo vento (fenômeno chamado de deriva), “viaja” até 30 quilômetros e causa prejuízos milionários em culturas sensíveis.

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O 2,4-D mata as plantas novas das frutíferas e atrofia as plantas adultas com o enrugamento das folhas e o abortamento da floração, o que reduz o vigor da planta e derruba drasticamente a produção.

Só na produção de vinhos finos na região da Campanha, que faz divisa com Uruguai e Argentina e está mais ao sul do Estado, a estimativa do setor é de um prejuízo de R$ 100 milhões no ano passado.

Deixaram de ser produzidas em torno de 780 mil kg de uvas, o que resulta em menos 1 milhão de garrafas de vinhos finos. Entram na conta, além da redução na produção de uvas e, consequentemente de vinhos, a perda de vinhedos jovens e os investimentos em adubação e tratamentos para tentar salvar as plantas adultas atingidas pela deriva.

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Em dezembro do ano passado, a deriva do 2,4-D virou alvo de uma ação civil pública movida pela Associação dos Vinhos da Campanha e pela Associação Gaúcha dos Produtores de Maçãs (Agapomi) contra o Estado.

Os produtores querem a suspensão das aplicações do herbicida no Estado enquanto não forem tomadas medidas efetivas para evitar a deriva, como a criação de áreas de exclusão de 30 quilômetros. A Procuradoria tem até o final deste mês para se posicionar no processo.

“Esgotamos nossos esforços na área administrativa. Fizemos mais de 60 reuniões com a Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul e com a Promotoria do Meio Ambiente, além de encontros com o governador Eduardo Leite (PSDB) e audiência pública na Assembleia Legislativa”, diz Valter Potter, presidente da Associação dos Vinhos da Campanha, que detém 31% do mercado de vinhos finos do Brasil.

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Ele acrescenta que as perdas de produção seguem aumentando ano após ano, obrigando a erradicação de plantas em alguns casos. “A judicialização foi a única opção encontrada para garantir o nosso direito constitucional de produzir.”

O secretário de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seadpr) do Rio Grande do Sul, Covatti Filho, diz que os produtores que se sentem prejudicados têm o direito de procurar a Justiça, mas o governo é contrário à proibição do uso do 2,4-D. Segundo ele, desde 2019, foi criado um grupo de trabalho reunindo a secretaria, Ministério Público, os produtores que querem a proibição e os que defendem o uso do herbicida.

“Desse trabalho, saíram as instruções normativas para aplicação e venda do produto e vemos a cada ano uma queda significativa das derivas e das denúncias de deriva", diz. Ele admite, no entanto, que a questão ainda merece muito cuidado, melhoria na capacitação dos aplicadores e mais fiscalização.

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No ano passado, levantamento da Seadpr, realizado de agosto a dezembro, apontou um índice de amostras contaminadas pelo 2,4-D de 88%, uma redução de 25% em relação à safra anterior. O número de propriedades atingidas passou de 110, em 2019, para 89. Mesmo com a redução no número de laudos positivos e propriedades atingidas, houve um aumento de 11,38% no volume de denúncias.

Luis Fernando Fucks, presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), diz que, se for aceito pela Justiça o pedido de suspensão do 2,4-D, a medida vai trazer mais problemas que benefícios ao Estado. “São mais de 5 milhões de hectares que não podem prescindir do uso do produto.”

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Segundo ele, o 2,4-D é o melhor herbicida que existe no mercado para combater a buva, uma “planta invasora perfeita”, cujo controle químico é muito difícil porque ela tem muitas sementes, que são leves e voam por quilômetros e seu uso é pontual apenas na dessecação da soja.

Fucks acrescenta que a aplicação do herbicida se tornou ainda mais importante no ano passado porque houve muita seca em outubro e novembro. “A buva absorve pouco os outros defensivos e nos deixa sem opções, além do 2,4-D.” Ele reitera que já há meios de combate ao mau uso do herbicida, já que os aplicadores precisam ser registrados e o produto tem venda rastreada.

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Vilã há 7 anos

A deriva do 2,4-D foi identificada como vilã das perdas de vários produtores há três anos, mas já prejudica há sete anos as videiras da região de Jaguari, na região central do Estado, causando queda de até 90% na produção. Jeferson Guerra, que tem um pequeno sítio em Jaguari, viu sua colheita de uvas despencar de 100 toneladas por ano para 12 toneladas.

“Cresci embaixo das parreiras ajudando meu pai e avô no cultivo da uva. Agora, com 20 anos, quando meu vinhedo de 14 mil pés deveria estar no auge da produção, está totalmente decadente. É muito triste. Estou plantando milho nas entrelinhas das parreiras para tentar reduzir o prejuízo”, conta o agricultor, que produz a variedade bordô para vinhos de mesa.

Jeferson Guerra perdeu 90% das videiras cultivadas devido aos efeitos do 2,4D (Foto: Jeferson Guerra/Arquivo Pessoal)

 

 

Guerra diz que também passou a produzir soja em cinco hectares da propriedade, mas não usa o 2,4-D. “Aqui na minha região, se não for suspensa a aplicação desse produto, as videiras terão que ser totalmente erradicadas. É muito prejuízo todo ano e a gente não tem como pedir indenização porque não consegue identificar quem causou a deriva.”

João Minuzzi, presidente da Cooperativa São José, em Jaguari, diz que, além de Guerra, todos os outros 57 associados foram atingidos pelo problema, com perdas de 30% a 50% na produção de uvas e vinhos de mesa. Ele próprio colhia 50 toneladas por ano em seu sítio de quatro hectares. No ano passado, colheu a metade.

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Segundo Minuzzi, o problema atinge mais hectares do que o identificado pela secretaria, que só colhe amostras de quem faz cadastro no órgão. “Neste ano, parece estar ainda pior. Os fiscais têm trabalhado, mas, até agora, as soluções e normativas criadas pela secretaria não fizeram efeito. E, com a explosão no preço da soja, os produtores usam cada vez mais herbicidas.”

Potter, que tem vinícola e vinhedo em São Pedrito, cria gado e também planta soja, mas faz controle biológico das pragas junto com o herbicida Heat (cujo princípio ativo é o saflufenacil). “É importante ressaltar que a utilização de herbicidas sem o princípio ativo 2,4D não representa custos financeiros adicionais expressivos na lavoura que inviabilizam sua utilização.”

Ele estima em 30% a 35% os prejuízos dos produtores de sua região e diz que a uvas da variedade chardonnay são as mais afetadas porque estão em estado vegetativo na época de preparação do solo para o plantio da soja, em agosto e setembro.

João Minuzzi mostra ramo de videira atingida pela deriva do 2,4-D (Foto: João Minuzzi/Arquivo Pessoal)

 

Segundo Potter, pelas normativas implementadas em 2019 nos 24 municípios onde se identificou o problema, o sojicultor tem dez dias para informar que aplicou o 2,4-D em sua propriedade. Uma demanda dos produtores no grupo de trabalho criado pela secretaria era o aviso prévio da aplicação do produto.

“Nos últimos dois anos, mais de 600 produtores não informaram o uso do herbicida nem dentro do prazo posterior de 10 dias. Queremos, então, a zona de exclusão, que é recomendada pela Embrapa, e que seja definido um aviso prévio da aplicação porque as normativas de hoje não são cumpridas, são inócuas. É uma orgia.”

Crime

Alexandre Saltz, promotor de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público do Rio Grande do Sul, diz que proibir o uso do 2,4-D no Estado não vai resolver o problema. “Pode vir um produto ainda pior. O que precisa é ter mais fiscalização para o cumprimento das normativas.”

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Ele diz que, em 2019, abriu um inquérito para apurar o caso, que já tem 15 mil páginas e está em sua terceira etapa. Nessa última fase, Saltz enviou às promotorias dos municípios envolvidos processos contra mais de 700 pessoas, entre produtores, agrônomos, técnicos e comerciantes, que foram autuados por descumprir as normativas de uso e venda do princípio ativo 2,4-D.

Saltz destaca que os promotores devem tentar um acordo com os infratores antes do indiciamento criminal previsto no artigo 15 da Lei dos Agrotóxicos, que pune com pena de reclusão de dois a quatro anos, além de multa.

O promotor do Meio Ambiente ressalta ainda que, na segunda etapa, o órgão fez acordo com as indústrias que produzem herbicidas com o 2,4-D. “Elas se comprometeram a ministrar cursos de aplicação correta e assumiram obrigações para melhorar o modelo da fiscalização.”

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Indústria

A assessoria de imprensa da Corteva, um dos fabricantes de herbicidas com o 2,4-D, diz que a empresa tem acompanhado de perto os casos de deriva no RS e compartilha a preocupação de que a aplicação incorreta pode causar o fenômeno.

Por isso, diz a nota, tem atuado em parceria com as autoridades para dar suporte na capacitação do agricultor e demais envolvidos na aplicação. A empresa afirma ter desenvolvido no Estado um treinamento específico sobre o uso do 2,4-D composto por 16 horas de atividades práticas e teóricas, que já capacitou cerca de 1.500 aplicadores.

“Além disso, firmamos parcerias com a Seadpr e o Ministério Público para implementação de sistema de risco climático e sistemas informatizados para dar suporte à fiscalização na região.”

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Potter admite que as indústrias oferecem cursos itinerantes para buscar a deriva zero do 2,4-D, mas alega que pouca gente participa e menos ainda aplicam o que aprendem nos treinamentos.

“O fato é que a soja está crescendo desenfreadamente na nossa região, tendo passado de 20 mil para 120 mil hectares em poucos anos, e há plantadores de todos tipos, incluindo amadores que não respeitam nada. Resumindo: a diversificação de culturas do Rio Grande do Sul está ameaçada.”
Source: Rural

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