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Herbert Bartz morreu hoje, aos 83 anos (Foto: Wilhan Santin)

 

Imagine a cena. Outubro de 1972. Município de Rolândia, interior do Estado do Paraná. Os cafezais ainda predominavam naquela região, mas muitos agricultores já haviam erradicado os pés de café e plantavam grãos. Arados e grades eram utilizados em larga escala, deixando a terra nua depois de uma colheita, preparando para o plantio da próxima safra.

De repente, do alto de seu trator, puxando uma plantadeira que ninguém nunca havia visto igual por ali, um agricultor com forte sotaque alemão começa a plantar soja por cima da palha do trigo recém-colhido, fazendo diferente do que todos faziam havia muitos anos. Foi um falatório tremendo. “Coitado, ficou louco”, diziam os vizinhos.

O homem era Herbert Arnold Bartz, estava com 35 anos naquela época e de louco não tinha nada. Era, isso sim, um visionário. O primeiro a fazer plantio direto em escala comercial em toda a América Latina. Pagou um preço alto por isso, mas nunca se arrependeu e nem deu um passo para trás.

Para entender o que o levou a agir com tanta firmeza e coragem, mudando o jeito de plantar no País e contribuindo imensamente para que a nossa atual produção agrícola seja de encher os olhos, temos que mergulhar na história.

Bartz era filho de alemães, mas nasceu no Brasil, em Rio do Sul (SC), em 14 de fevereiro de 1937. No entanto, ainda garotinho, antes dos dois anos de idade foi para a Alemanha, acompanhando a mãe, Johanna, que precisava fazer um tratamento cardiológico.

Em 1939, quando o pai dele, Arnold, foi buscar a família, estourou a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e ficaram impedidos de voltar para o Brasil.

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Aos seis anos de idade, ele já sabia se jogar no chão quando caças de guerra davam rasantes sobre a região onde moravam. Um dia antes de completar oito anos, o menino Herbert estava na cidade de Dresden, que foi completamente bombardeada, na noite de 13 de fevereiro de 1945.

Refugiado em um porão, viu a morte de perto, no calor de 80 graus Célsius que fazia ali dentro. Adultos molhavam as crianças com água para evitar o pior. Quando o dia amanheceu, do lado de fora havia corpos empilhados. Centenas deles. E Herbert testemunhou caças britânicos voando baixo e metralhando sobreviventes.

Depois disso, com a Alemanha já quase derrotada, o pai dele, Arnold, foi convocado para lutar. Caiu prisioneiro dos russos e só seria libertado anos depois. A família passou fome e frio, com Johanna fazendo o que podia para alimentar os cinco filhos. Um irmão de Herbert não resistiu e morreu.

Quando a família Bartz voltou para o Brasil, em 1960, estabelecendo-se em uma propriedade rural de Rolândia, Herbert Bartz sabia o quanto vale ter comida na mesa.

Aprendeu na prática a ser agricultor. Inconformava-se com a erosão que arrastava a fértil terra vermelha para os rios. Toneladas de solo a cada ano. Fazia experiências por conta própria para tentar resolver o problema.

Deu o basta em 1971, numa noite de tempestade, com lanterna em uma mão e vestindo capa de chuva, vendo as sementes que havia acabado de plantar rodando com a água. A terra indo junto. Sulcos abertos no chão.

Não tinha dinheiro, mas financiou passagens aéreas em dez vezes e foi procurar solução. Encontrou nos Estados Unidos, mais precisamente no condado de Cristian, Kentucky. O pesquisador Shirley Philips, da universidade de Lexington, desenvolvia um trabalho em parceria com o agricultor Harry Young Jr. Eles fizeram uma demonstração para Herbert, plantando milho sobre uma palhada de capim blue grass.

“Vendo e ouvindo aquilo tudo eu estava quase levitando. Foi como no momento bíblico em que Saulo vira Paulo”, Bartz me disse em 2017.

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Depois disso ele voltou para o Brasil convencido a fazer igual. Como era o único, não tinha implementos, nem máquinas, nem apoio. A primeira colheita de soja plantada sobre a palha foi apreendida pela Polícia Federal. Ninguém sabe explicar até hoje o motivo.

Mas ele não esmoreceu. Desenvolveu maquinários por conta própria, buscou indústrias para parcerias, tirou fotos de tudo o que pode e transformou em slides, saindo pelo interior a dar palestras, tentando convencer mais gente a fazer igual, a ser “louco” também.

Quando veio a crise do petróleo, em 1973, ganhou um forte argumento. O Plantio Direto dispensava duas operações de trator: arar e gradear. O agricultor gastava um terço de diesel!

Conseguiu aliados, como Franke Dijkstra e Manoel Henrique Pereira, na região dos Campos Gerais do Paraná, que se esforçaram tanto quanto ele para difundir a prática. Mostrando que a palhada sobre o solo evitava a erosão e gerava fertilidade, com matéria orgânica acumulada, a vida voltando, minhocas aparecendo nas lavouras.

Fácil não era. Herbicidas para combater as invasoras eram poucos e ineficientes. Bartz chegou a fazer contrabando do Paraguai, fretando aviãozinho monomotor e voando baixo para escapar dos radares. Era ilegal, mas fundamental para sobreviver.

Em trabalho de formiguinha, devagar e eficiente, ele e os amigos, tendo aliados na Embrapa, nas muitas unidades da Emater e nas universidades, espalharam o Plantio Direto e até fundaram a Federação Brasileira de Plantio Direto e Irrigação, em 1992.

Graças ao Plantio Direto na Palha, a produção de grãos em nosso País é o que é. Não perdemos tanto solo para a erosão e conseguimos fazer uma segunda safra, ganhando tempo plantando imediatamente após a colheita da anterior. Além disso, os solos ficam mais férteis e absorvem a água, que já não escorre. “É um efeito esponja”, sempre dizia Bartz. Isso ajuda a vencer os tempos de pouca chuva.

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Eu tive a alegria de conviver muito com esse pioneiro. Entre 2016 e 2018 produzi o livro “O Brasil Possível: a biografia de Herbert Bartz.” A Revista Globo Rural tem muita “culpa” nisso. Eu fui convidado para o trabalho pela filha dele, Marie Bartz, bióloga, depois que escrevi um perfil da pesquisadora para essa publicação em agosto de 2015. “Minhoca na cabeça” foi o título da matéria. Marie é taxonomista e doutora nesses invertebrados que acabaram sendo o símbolo do Plantio Direto.

Fiz 15 entrevistas com Herbert Bartz, todas de mais de hora. Ele falava muito. Sempre com coerência e fechando raciocínios. Citava filósofos. Era conhecedor de toda a obra do explorador e naturalista Alexander von Humboldt (1769 – 1859). Sempre de bom humor e atento ao noticiário. Lia jornais e revistas todos os dias.

E continuava a palestrar por aí, a difundir conhecimento, apesar da dificuldade para andar e das dores intensas depois de passar por oito cirurgias para corrigir problemas na coluna.

Era muito agradável estar perto de Herbert Bartz e conversar com ele. Eu dei ao livro o título de “Plantando na Tempestade”. Ele pediu para mudar. Disse que os agricultores mostram que o Brasil é possível. Explicou que os homens e mulheres do campo trabalham com ciência, eficiência e afinco. E mais: “A natureza não aceita propinas.”

Que grande legado deixa Herbert Bartz. Se não fosse ele, talvez outros tivessem introduzido o Sistema Plantio Direto em nosso País. Mas quantos anos depois? Estaríamos no estágio atual de produtividade?

Para finalizar, àqueles que ainda não utilizam todos os princípios do sistema, fica uma frase que ele usou quando insistiram, em um debate na década de 1980, que era impossível ter solo descompactado com o Plantio Direto. Bartz explicou sobre a rotação de culturas. Um debatedor respondeu que ele estava errado. Então veio a tirada: “Eu sei resolver o problema da compactação quando ela atinge o solo, mas não sei o que fazer quando atinge o cérebro humano.”

Obrigado, seu Herbert. Hoje tomarei uma boa e forte cerveja em sua homenagem.

*Wilhan Santin é jornalista e autor do livro “O Brasil Possível: a biografia de Herbert Bartz” (edição do autor, 2018).
Source: Rural

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