Skip to main content

boiada-pantanal (Foto: Ernesto de Souza/Editora Globo)

 

O aumento expressivo no número de focos de incêndio no Pantanal este ano deflagrou um debate acalorado entre órgãos de proteção ambiental e representantes do governo sobre o impacto da pecuária no avanço do fogo na região. Enquanto investigações policiais apontavam indícios de queimadas criminosas em fazendas de gado, membros do governo se adiantaram a defender o papel do boi sobre a prevenção dos incêndios, mencionando uma atuação como “bombeiro do pantanal”.

Seja de forma predatória, seja como “bombeiro”, o gado está presente há mais de 300 anos no Pantanal e se tornou a principal atividade econômica do bioma. Em Mato Grosso, o Instituto Mato-grossense de economia Agropecuária (Imea) estima que a atividade tenha respondido por quase 82% do Valor Bruto da Produção Agropecuária dos quinze municípios pantaneiros do Estado em 2019, gerando quase 11 mil empregos diretos e indiretos. O número responde por quase 5% da população local.

“Existe hoje um discurso muito de oposição absoluta ao agronegócio e, ao mesmo tempo, por parte do agronegócio, uma indisposição muito grande ao ambientalismo. Mas falta muitas vezes compreensão de que o agronegócio não é monolítico”, destaca José Luis Eduardo Franco, professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (PPGCDS-UnB) e um dos autores do livro “Biodiversidade e ocupação humana no Pantanal mato-grossense: conflitos e oportunidades”.

saiba mais

Brasil quase dobra áreas financiadas em programa de agricultura de baixo carbono

Fronteira agrícola do MT com a Amazônia mandou 88,5% mais gado para SP em 2020

 

Longe de defender incondicionalmente a pecuária mato-grossense, Franco lembra que o gado é um animal exótico, trazido por colonizadores europeus. “O gado chegou junto com o europeu, mas em muitas situações no Pantanal, o europeu foi embora e o gado se tornou um gado asselvajado. Tornou-se um recurso disponível, inclusive sendo alvo de caça de populações indígenas locais”, explica o historiador, ao destacar o papel desses animais na manutenção no ecossistema.

“Embora seja exótico, quando esse gado chega ao Pantanal, a grande maioria dos grandes herbívoros haviam sido extintos. E a principal causa da extinção da megafauna da América do Norte, Central e do Sul, assim como na Austrália, é sempre chegada de populações humanas”, conta Franco

Ele se refere à chegada dos próprios povos nativos da região e a uma época, de dez mil anos atrás, em que a América do Sul abrigava animais pré-históricos, como preguiças e tatus gigantes. “Eram populações que já dominavam o fogo, tinham armas muito bem adaptadas à caça em grupo. Então, ao longo de milhares de anos, caçando muitas vezes animais com taxa reprodutiva menor e sem predadores naturais, como mastodontes, rinocerontes, isso vai levar à extinção da megafauna na América do Sul e, quando o gado chega, ele vai ocupar um nicho que estava disponível para ele ocupar”, completa o pesquisador.

Papel ecológico

No período pós colonial, a presença desses animais foi fundamental para as expedições rumo ao interior do país, tendo servido de alimento tanto aos Bandeirantes, no século XVI, quanto às tropas que combateram na Guerra do Paraguai, no século XIX. “Se não tivesse havido essa introdução do gado no Pantanal, a região seria completamente diferente. Não teria quase campos, ela seria tomada por uma vegetação de maior porte e os incêndios seriam muito maiores em tempos de seca”, observa Sandra Santos, pesquisadora responsável pelo projeto Fazenda Pantaneira Sustentável da Embrapa

O gado, diz ele, tem papel ecológico no bioma, quando bem manejado. “A nossa preocupação é se, ao trazer mais gado para o Pantanal, isso ser feito detonando pastagens e queimando tudo de qualquer forma como tem acontecido. E aí vai detonar a região mesmo. A criação de gado dessa forma não é sustentável”, aponta Sandra.

Já a ocupação predatória, como conta José Luis Eduardo Franco, é a mesma adotada por portuguesas e mantida ao longo das últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 70, quando se inicia a criação econômica de gado na região. “O gado não é mocinho porque é bombeiro. Ele pode até pastar algo que, se crescer, vai virar uma massa vegetal que favorece incêndios, mas isso não significa dizer que se tiver gado não vai ter mais incêndio quando, ao colocar mais gado, você está destruindo fitofisionomias que são florestais”, explica o professor da UnB.

saiba mais

ILPF pode levar pecuária do Matopiba a superar a do Centro-oeste

Investidores aumentam exigência por um agro mais sustentável no Brasil

 

Nos dias atuais, a atividade passa por um dilema. Poucos são os produtores que conseguem obter lucro com a atividade. As produtividades estão até 25% inferiores à média do Mato Grosso e custos de produção 77,7% maiores, de acordo com cálculos do Imea, com base em dados de 2019 do Projeto Fazenda Pantaneira Sustentável, desenvolvido no Estado.

Segundo o Instituto, o “panorama pode ser explicado pelas peculiaridades produtivas que a região exige, reforçada pelo perfil do pecuarista do Pantanal, o qual a maior parte se encaixa em rebanhos até 250 cabeças”. “Nós tivemos, nesse grande ciclo de cheia entre os anos 70 e até dois, a três anos atrás, um empobrecimento do qual eu sou testemunha. De ter 30 a 40 aviões antigamente e hoje ter apenas dois”, conta Angelo Rabelo, presidente do Instituto Homem Pantaneiro.

Desde a década de 80 no Pantanal, Rabelo viu o rebanho local reduzir mais de 50% e dois terços dos produtores abandonarem a atividade no processo de sucessão familiar. O cenário, segundo ele conta, foi determinante para o avanço do fogo no bioma este ano. “Quando o fogo chegou, não encontrou nem boi pra comer aquela matéria orgânica que estava debaixo da água há 20, 30 anos e nem gente pra gritar socorro”, explica Rabelo, ao apontar a menor capacidade competitiva ante as demais regiões produtoras como principal fator para esse empobrecimento.

“A gente observa que onde o custo-benefício não valia a pena, o produtor abandonou as fazendas. E onde não tem gado, as gramíneas locais, de porte mais alto, dominam sobre a vegetação mais baixa. Aí é que vai virar macega e é por isso que a gente fala que o boi contribui para redução do incêndio. É claro que não é só ele, mas a gente usa o boi como estratégia de manejo”, explica a pesquisadora da Embrapa. Após os pecuaristas pioneiros que chegaram à planice pantaneira e seus descendentes, Rabelo afirma haver uma terceira onda pecuária na região – desta vez mais conscientes dos desafios e limitações impostos pelo bioma.

“O Pantanal está passando por uma transição. Está chegando um novo pantaneiro, com uma capacidade financeira que não é da dependência total da produção do Pantanal. Comparado ao pantaneiro que conseguiu sobreviver sem energia, sem comunicação e sem estrada, o que está chegando vem com satélite, helicópteros… É uma outra realidade econômica que, espero eu, vai ter a capacidade de continuar contemplando a natureza sem entender que ela é uma ameaça”, conclui o presidente do Instituto Homem Pantaneiro.
Source: Rural

Leave a Reply