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(Foto: Ricardo Benichio)

 

*Publicado originalmente na edição 420 (Outubro/2020) de Globo Rural

Por onde anda José Hamilton Ribeiro? O jornalista das reportagens que retratam o mundo rural, exibidas nas manhãs de domingo para todo o Brasil há quase 30 anos, só poderia estar no campo: seu berço, fonte de inspiração e ambiente de trabalho.

Nascido em Santa Rosa do Viterbo, no interior de São Paulo, na época em que fazendeiro era rico, mas passava a vida como pobre, porque a atividade não gerava renda, Zé Hamilton decidiu se refugiar, desde o início da pandemia, em sua propriedade, em Uberaba, município do Triângulo Mineiro. Lá tem canto das aves, passeios a cavalo ao entardecer e também atividade agropecuária, claro.

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O jornalista, que foi o primeiro editor-chefe da revista GLOBO RURAL, contou um pouco do que viu e viveu ao longo de seus mais de 50 anos de profissão, dos quais cerca de 30 foram dedicados às histórias do campo. Em uma conversa descontraída, por telefone, ele se lembra de quando o Brasil sonhava com uma produção de 100 milhões de toneladas de grãos – em 2020, a colheita bateu na casa dos 250 milhões de toneladas.

Zé Hamilton, que cobriu a Guerra do Vietnã, também fala de reportagens marcantes, momentos engraçados que a Globo não mostrou – e projeta como será o apogeu da agropecuária brasileira. A seguir, os principais trechos da entrevista com o eterno repórter rural do Brasil, aos pés de uma árvore em sua fazenda.

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Globo Rural: Como eram o campo e a mídia há 35 anos?

José Hamilton Ribeiro: O agro já tinha a sua importância, mas a grande mídia ainda não tinha se dado conta de que estava diante de um fenômeno muito importante. Porque, em função das suas condições naturais, de solo e chuva, e pelo fato de não ter um inverno como os Estados Unidos e a Europa, o Brasil sonhava com uma agricultura de 100 milhões de toneladas de grãos. Havia essa miragem, de que o país iria atingir essa marca. Eu me lembro do Roberto Rodrigues (ex-ministro da Agricultura), quando ainda era uma liderança jovem, dizendo isso. E, às vezes, parecia que ele estava dizendo um palavrão. "Este homem está louco", diziam. Acredito que naquela época o Brasil produzia menos de 50 milhões de toneladas de grãos.

GR: Como foi a chegada da Revista Globo Rural ao país?

Zé Hamilton: Não havia uma publicação especializada, então o lugar estava vago. O lançamento da Globo Rural foi um acontecimento. Todos os programas jornalísticos da TV Globo, desde o da manhã até o da noite, publicaram matérias sobre o lançamento. Quando saiu a revista, até o Jornal Nacional noticiou.

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GR: Antes do agro, você era um jornalista de geral e inclusive foi cobrir a Guerra do Vietnã. De onde vem a sua ligação com o campo?

Zé Hamilton: A minha família é de Santa Rosa do Viterbo, interior de São Paulo, e tinha fazenda. Meu avô era produtor de café e, quando morreu precocemente, tudo foi dividido com os filhos, mas o pessoal se desviou do café e passou a mexer com o gado num tempo em que fazenda não dava renda. Era o tempo em que o fazendeiro era rico, mas vivia como pobre, porque quando ele morria é que se sabia o valor da propriedade. A fazenda valia milhões, mas o produtor passava a vida como pobre.

GR: O que mais se destaca na evolução do setor nos últimos 35 anos?

Zé Hamilton: Primeiro, a palavra agro não era do vocabulário comum. Segundo porque a história da agricultura no Brasil é uma história de vitória. De quem descobriu que, usando calcário no Cerrado, a terra, que era ácida e hostil, passava a ser uma “mãe”. O agro brasileiro é um fenômeno que hoje impressiona o mundo. E ainda não chegou ao seu ápice. Tem muita coisa para fazer, aproveitar mais a terra, avançar em tecnologia, e o setor está em um grande momento, mas não chegou ao seu apogeu.

O auge vai ser quando o país conservar a sua posição de hegemonia na agricultura tropical e de produção de alimentos para o mundo, ao mesmo tempo que vai ser certificada e sustentável

 

GR: Quando será o apogeu?

Zé Hamilton: Vai ser quando o Brasil impressionar o mundo pela quantidade de produtos agrícolas e também impressionar por fazer uma agricultura e pecuária sustentáveis, de forma a não destruir os valores que a terra nos dá generosamente. O auge vai ser quando o país conservar a sua posição de hegemonia na agricultura tropical e de produção de alimentos para o mundo, ao mesmo tempo que vai ser certificada e sustentável. Isso significa que você aproveita as benesses que a terra dá, mas sem prejudicá-la e principalmente sem lesar os direitos dos seus filhos, netos e gerações de agricultores de todas as áreas, que têm de usar e viver da terra por muitos anos e séculos adiante.

GR: Na sua opinião, qual a função do jornalista que trabalha nessa área?

Zé Hamilton: O jornalismo rural tem de acompanhar o desenvolvimento do agro. Porque tudo muda muito rapidamente. Às vezes, o que você sabe hoje não serve para amanhã. É preciso ficar atento, senão perde a carruagem. O Brasil é muito rico jornalisticamente e há muitas formas de fazer reportagens no campo, que não seja uma coisa técnica ou uma "puxação de saco".

GR: Você tem uma reportagem especial, aquela mais marcante na carreira, premiada ou não?

Zé Hamilton: Acho que foi a do tatu-canastra, que fizemos para a TV e para revista. Ele é um bicho de hábito noturno e que, a civilização chegando perto, ou ele some ou morre. Porque é muito grande, fácil de ver e caçar. Ver um tatu daquele tamanho, ao invés de procurar um jeito de proteger o ninho ou o buraco do tatu, o que se faz é caçar com cachorro ou jogar água no buraco para se afogar. Essa espécie é uma figura mítica, é um ícone da fauna. A coisa que a gente reverenciava como se fosse divindade, de repente, vai fazer uma reportagem para falar qual seria o recurso para caçar na hora que o bicho sai de noite. Uma coisa horrorosa.

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GR: E o maior perrengue durante as reportagens rurais?

Zé Hamilton: A gente estava fazendo uma reportagem no Pantanal, no Rio Paraguai, com um pessoal da TV e muitos equipamentos. O cinegrafista era um carioca, uma pessoa muito especial, e ele usava peruca, que cuidava muito dela, para ninguém perceber que tinha. E ninguém sabia que ele era careca. Estávamos no barco jogando sangue de porco na água, para juntar as piranhas e fazer um frame delas se alimentando. E evidentemente que o sangue que jogamos no lugar do rio atraiu as piranhas. Até que chegou uma hora que tinha bastante peixe e o barco virou. O cinegrafista que era careca e ninguém sabia, quando caiu na água, a peruca dele escapou e saiu boiando e ele, que não sabia nadar muito e tinha pavor de piranha, de cobra, de todos os bichos, não conseguia acelerar as braçadas, porque ia de costas, nadando, com uma mão segurando a peruca na cabeça e a outra mão protegendo as partes com medo das piranhas cortarem. O exercício que ele fez até chegar ao barco de salvamento foi muito maior que o das outras pessoas, que saíram nadando rapidamente em direção do salvamento. Ele, não. Estava cuidando da peruca e do outro valor que ele tinha medo que se acabasse ali.

GR: Alguém registrou isso?

Zé Hamilton: Como diz o Humberto Pereira, criador e diretor do programa Globo Rural, as melhores cenas das reportagens você perde, porque, numa hora dessas, qual é a prioridade? É filmar as piranhas ou nadar para se salvar? É claro que é sobreviver. As melhores cenas não foram filmadas.

As palavras de ordem do momento são equilíbrio e sustentabilidade. E o produtor é o primeiro a ser afetado

 

GR: Se não houvesse pandemia, que reportagem você gostaria de fazer?

Zé Hamilton: Sobre a onça no Pantanal, que convive com as fazendas. A única coisa que ela gosta é de comer bezerro, porque evidentemente onde tem onça e tem criação de gado, ela vai lá e pega, come. A parte que sobra ela guarda e esconde, cobre de folha seca para comer depois. A onça é parte do custo, do manejo.

GR: Que recado você gostaria de mandar para o público do campo e da cidade?

Zé Hamilton: O Brasil tem de cuidar mais dos seus recursos naturais, do ponto de vista da fauna silvestre. Temos uma fauna silvestre muito variada e rica,mas eu percebo que ela está em diminuição. Algumas espécies se adaptaram à cidade, como a capivara ou o javali aqui no campo, que não sei como chegaram aqui. Mas a fauna silvestre está diminuindo muito. Aqui na fazenda, eu gostava de ficar na varanda, na rede, ouvindo o inhambu-chororó e não ouço mais. A fauna se afasta de toda a monocultura. As palavras de ordem do momento são equilíbrio e sustentabilidade. E o produtor é o primeiro a ser afetado.
Source: Rural

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