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Elizeu Evangelista, gerente da fazenda Jofre Velho, em Poconé (MT) (Foto: José Medeiros/Editora Globo)

 

*Publicado originalmente na edição 420 de Globo Rural (Outubro/2020)

Quarenta dias depois de aceirar e isolar uma área de 300 hectares de mata ciliar no lado sul-mato-grossense do Rio Cuiabá, na Fazenda Jofre Velho, no Pantanal, o biólogo Fernando Tortato surpreendeu-se que o fogo chegou até a região ao "pular" o rio.

Sob o olhar de Tortato, o fogo crepitava e reluzia sobre a correnteza naquela madrugada de sábado, 13 de setembro. “O pior é que não podemos fazer nada”, suspirou o biólogo, colaborador da ONG Panthera Brasil, responsável pelo desenvolvimento de práticas de manejo na criação do o gado em territórios com a presença de onça-pintada.

O gerente da Fazenda Jofre Velho, o pantaneiro Elizeu Evangelista, notou que as faíscas rodopiavam no ar como fogos de artifícios; subiam tanto que não era difícil imaginar o fogo pulando de volta para o outro lado. O que aconteceu minutos depois.

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“Tem noite que quando deito e fecho o olho vejo o fogo assim na minha frente”

Elizeu Evangelista, gerente da fazenda Jofre Velho, em Poconé (MT)

O fogo “pular” o rio já é algo incomum para os pantaneiros, acostumados à proteção natural da maior planície alagada do mundo. Pular duas vezes é ainda mais raro. O fenômeno mostra que no Jofre Velho, como em todo Pantanal, o fogo ganhou vida própria para assolar a pecuária local, a biodiversidade, o turismo e o modo de vida pantaneiro.

“Para quem acha que é extraordinário o fogo pular o rio, aqui já virou normal”, disse, resignado, Evangelista, que ajudou as equipes dos bombeiros e funcionários da fazenda a controlar as chamas naquela noite.

O processo de monitoramento e combate ao fogo é diário e exaustivo no Pantanal. Repete-se desde o início de agosto. Bombeiros revezam-se em intervalos, com equipes que trocam o turno às 23 horas e às 4 horas.

Seu Tutu e Dona Glória lamentam devastação causada pelas queimadas (Foto: José Medeiros/Globo Rural)

 

Por vezes, o fogo reaparece e queima onde já havia queimado. O fato do solo do Pantanal ser formado por uma “cama” de plantas aquáticas que secam sobre a terra na estiagem permite a existência do chamado “incêndio subterrâneo”, um fogo silencioso que cresce de baixo da terra e assoma abruptamente quando bem entende.

O trabalho de monitorar e combater esse fogo traiçoeiro é feito principalmente por Elizeu e Fernando. Mesmo quando as labaredas dos grandes incêndios são apagadas, eles saem madrugada adentro a procura de pequenos focos. Os dois estão submetidos a uma rotina de três horas de sono por noite. 

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“Tem noite que quando deito e fecho o olho vejo o fogo assim na minha frente”, contou Elizeu no refeitório da fazenda uma noite antes da batalha contra os saltos do fogo no rio. “No dia em que tive para descansar, eu fui para a minha casa em Chapada dos Guimarães e tinha fogo no parque nacional também”, lamentou Fernando.

Ao aprender a “pular” os cursos d'água, o fogo tomou dos rios o direito à intimidade que este último tinha com os pantaneiros, virou uma espécie de membro da comunidade de Poconé, município mato-grossense onde começa a Transpantaneira, estrada de 150 quilômetros que dá acesso a propriedades rurais como Jofre Velho e as terras de Oíse Falcão de Arruda e Glória Vilalba de Arruda, conhecidos como Seu Tutu e Dona Glória.

(Foto: José Medeiros/Editora Globo)

 

Seu Tutu, pantaneiro tradicional, queimou todo o pé na tentativa de apagar as chamas na sua fazenda, totalmente devastada pelas labaredas. “Eles estão fazendo serviço perdido porque o fogo vai ficar aqui até queimar tudo”, disse, entristecido, o pantaneiro de 75 anos sobre o trabalho na fazenda comandada por Elizeu.

“Não encheu, não choveu, o capim secou, o fogo vem e destrói tudo, até piúva. Diz que teve lugar que o fogo arrebentou a piúva no meio”, afirmou ele em conversa com a reportagem na casa de madeira que é sede da propriedade. “Tutu, a caixa secou”, grita Glória ao marido enquanto lava as panelas do almoço. “Secou?”, diz, surpreso, o pantaneiro. “Eu sei que essa caixa d’água era para ter água o tempo todo… Acho que neste tempo quente ela evapora, né?”, questionou-se.

Glória assegura que Tutu previu o fogo no Pantanal há anos. A previsão desse tradicional pecuarista foi feita com um discurso tradicional na região, segundo o qual, além da seca, um dos motivos do fogo ter se es palhado é a impossibilidade de se roçar o pasto, o que reduziria o combustível para o fogo.

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As explicações sobre o fogo multiplicam-se. O Pantanal passa pelo terceiro ano de estiagens longas. Em novembro de 2019, quando as chuvas deveriam estar intensas, muitos corixos e lagoas já estavam sem água. Devido às secas recorrentes, pantaneiros defendem medidas preventivas. “Fogo que entra no Pantanal não se apaga, tudo que tinha de ser feito deveria ser antes”, diz o experiente guia Robertinho Santos, da pousada Jaguar Ecological Reserve.

Com mais de 30 anos de Pantanal, Robertinho acredita que o monitoramento de focos de incêndios florestais é a melhor forma de garantir que as chamas não destruam tudo de novo. Ele sugere sobrevoos sema nais para identificar os focos. “Você pode conseguir mais antes do fogo. Depois que o fogo chega, não adianta nada”, completa.

Mais adiante na Transpantaneira, na Fazenda São Francisco da Baía das Pedras, o fazendeiro e pesquisador da Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (Empaer), Francisco Idelfonso Campos, revolta-se com a falta de auxílio para pantaneiros como ele.

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Como no caso da propriedade de Tutu, quase toda a fazenda de Francisco, de mil hectares, foi destruída pelo fogo. Ele terá de vender 200 das 400 cabeças de gado que mantém em suas terras no Pantanal. A pecuária na região, considerada pouco rentável, ficou ainda mais difícil depois que cerca de 200 hectares de capim nativo foram destruídos pelas chamas.

“Além de não ter pasto, não tem água para a criação. Fiz um poço artesiano há mais de três anos, de onde tiro a água para jogar em um tanque que secou, mas agora entrou o fogo e arrasou tudo de vez”, conta, desalentado, o pantaneiro Francisco, exímio conhecedor da região.

(Foto: José Medeiros/Editora Globo)

 

Ele também perdeu 2 quilômetros de cerca, que terá de reconstruir para manter o gado que restar. Na tentativa de não se desfazer dos animais, o produtor rural procurou vizinhos para arrendar pasto, mas não encontrou ninguém capaz de atendê-lo.

“Metade das fazendas do Pantanal está abandonada”, afirma Francisco. “Do lado da minha fazenda, tem uma dessas propriedades abandonadas, é uma quiçaça. Não se vê um passarinho. Se entrar um fogo lá como entrou aqui, não sobra uma viva alma.”
Source: Rural

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