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Com grandes frigoríficos buscando estender diretrizes de sustentabilidade também a fornecedores indiretos, pequenos pecuaristas, que atuam na cria e na recria, podem sofrer restrições (Foto: Ernesto de Souza/Editora Globo)

 

Solução adotada por grandes frigoríficos para avançar na pauta de sustentabilidade e garantir desmatamento zero dentro da sua cadeia de produção, a rastreabilidade de ponta a ponta na produção de carne pode levar à exclusão de pequenos e médios pecuaristas com menores condições de acesso a crédito e investimento em novas tecnologias.

É o que aponta estudo realizado pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que reúne 200 representantes do agronegócio, terceiro setor e academia, e que mapeou oportunidades e desafios da rastreabilidade na cadeia da carne no país.

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“A implementação de um sistema que muitas vezes pode ser caro pode ocasionar na saída de alguns produtores da atividade, que hoje não têm acesso a assistência técnica e financeira para a implementação de sistemas de rastreabilidade mais robustos”, observa Bianca Nakamato, analista de Conservação do WWF-Brasil, em entrevista à Globo Rural.

Principal atividade de pequenos e médios pecuaristas, a cria e a recria, elos da cadeia que fornecem animais para fazendas que atendem os frigoríficos, entraram na mira da rastreabilidade de grandes empresas neste ano. Marfrig, Minerva e JBS já anunciaram medidas para  garantir desmatamento zero entre seus fornecedores indiretos.

“A rastreabilidade é essencialmente um conceito de controle sanitário. A gente está extrapolando esse conceito com um propósito diferente, que é o controle ambiental, e esse controle só é necessário porque a gente tem um cenário de risco de desmatamento”, reconhece Marcio Nappo, diretor de sustentabilidade da JBS, que participou, nesta semana, do evento virtual em que o estudo da Coalizão foi apresentado.

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Segundo ele, a rastreabilidade é apenas um dos pontos de pressão sobre a cadeia hoje e pode levar a um processo de concentração da atividade. “Tem várias demandas subjacentes ao setor borbulhando e que estão colocando uma pressão enorme sobre o sistema produtivo e os produtores. Mas será que o pecuarista típico, mediano, vai ter condições de avançar em todas essas agendas e fazer a transição de uma pecuária extensiva para uma pecuária mais profissional e produtiva?”, questiona o executivo.

Segundo a Embrapa, a resposta é não. Com 80% dos produtores brasileiros em sistemas de produção extensivos, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária estima que 50% deles deixarão atividade até 2040.

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“A rastreabilidade só foi feita porque tinha alguém pedindo. Se o mercado externo está pedindo isso aos frigoríficos nacionais, não tenho a menor dúvida de que os frigoríficos farão isso. Resta saber se o público nacional vai exigir isso e em que quantidade”, observa Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), ao destacar que “o mercado de alimentos é um mercado global”.

Também participando do debate de apresentação do estudo da Coalizão, Britto destacou  que “empresas globais fazem compromissos globais". "Esses frigoríficos são multinacionais, que precisam ter uma plataforma global. A barra deles é alta e será mais alta quanto mais alto for o mercado que ele participa”, ressalta.

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Dois mercados

Diante do inevitável avanço nos negócios, o professor sênior de agronegócio no Insper, Marcos Jank, afirma que o país caminha para a criação de dois mercados: um em conformidade com as exigências internacionais e outro atuando no limite da lei.

“Você cria um sistema na Amazônia de dois trilhos. Um vai para um pleno compliance, porque as empresas não vão deixar de construir suas cadeias livres e desmatamento, principalmente no boi. O outro sistema vai trabalhar à margem e vai sendo depreciado lá fora, vai sendo atacado”, avalia Jank.

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Diante desse cenário, o estudo da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura aponta que as adesões voluntárias a sistemas de rastreabilidade, como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado por empresas do setor com o Ministério Público Federal em 2009, pode levar a perda de competitividade das empresas no longo prazo.

A rastreabilidade só foi feita porque tinha alguém pedindo. Se o mercado externo está pedindo isso aos frigoríficos nacionais, não tenho a menor dúvida de que os frigoríficos farão isso

Marcelo Britto, presidente da Abag

“Da perspectiva de alguns frigoríficos, recusar carne de um produtor que desmata, em consonância com os acordos voluntários, significa apenas que aquele produtor irá procurar um frigorífico sem assinatura do TAC, enfraquecendo os efeitos dos acordos sobre o desmatamento”, afirma o documento, ressaltando a importância de medidas de vinculação obrigatória da rastreabilidade, a serem adotadas pelo próprio governo.

“Os grandes atores da cadeia atendem a essa demanda voluntariamente e isso deixa outros à margem. Isso cria todo um ciclo vicioso que, talvez, prejudique o objetivo maior que foi o que fez todas as iniciativas voluntárias existirem”, acrescenta Bianca. 

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Papel do Estado

Para contornar o problema, o estudo propõe medidas para reduzir o impacto da concentração da atividade no país gerado pelos avanços em sustentabilidade, como acesso a linhas de crédito específicas, ampliação dos programas de assistência técnica e extensão rural no país, e maior transparência dos dados disponíveis atualmente, do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das Guias de Trânsito Animal (GTA), usadas pelas empresas para desenvolver seus próprios sistemas de rastreabilidade.

“Seria possível, sim, criar um sistema de rastreabilidade nacional. O grande ponto aqui é que essas informações não são públicas. Por isso, gente avalia que é importante ter mais transparência para quebrar esse ciclo de acordos voluntários que não são adotados por todos e avançar para uma força maior, ou seja, do Estado, para estender essa regra a todos”, ressalta a analista de Conservação do WWF-Brasil.

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O trabalho da Coalizão comparou o sistema de rastreabilidade do Brasil com os sistemas adotados na Argentina, Austrália, Canadá, Estados Unidos, França, Nova Zelândia, União Europeia (UE) e Uruguai. Constatou que, além do Brasil, apenas Estados Unidos e Nova Zelândia mantêm essas informações sob sigilo total ou parcial.

“A rastreabilidade do ponto de vista de controle sanitário já existe, vai muito bem, é estatal e tem que ser assim, porque estamos falando de saúde pública”, lembra Nappo, ao ressaltar que as discussões sobre rastreabilidade ganharam força por conta do desmatamento.

“É a ponta do iceberg. A gente precisa criar meios para que acelerar a transição da nossa pecuária para um sistema mais tecnificado e profissional. E, para isso, a gente precisa pôr dinheiro no campo, para que aumente a produtividade da carne brasileira, produzindo mais por hectare”, conclui o diretor da sustentabilidade da JBS.
Source: Rural

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