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(Foto: Reprodução)

 

 

 

 

 

 

*Publicado originalmente na edição 417 de Globo Rural (Julho/2020)

O conjunto dos proprietários rurais brasileiros reproduz, com surpreendente fidelidade, a composição étnica do país, segundo um recenseamento pioneiro divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Esse levantamento, concluído no final de 2019, aponta que 45,4% dos pouco mais de 5 milhões de estabelecimentos agropecuários nacionais são dirigidos por produtores brancos, enquanto 44,5% deles pertencem a pardos, 8,4% a negros, 1,1% a indígenas e 0,6% a amarelos.

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O resultado é bastante próximo do apurado no censo populacional de 2010, o último feito pelo IBGE, segundo o qual a sociedade brasileira é composta por 47,51% de brancos, 43,42% de pardos, 7,52% de negros, 1,1% de amarelos e 0,42% de indígenas.

Já quando se leva em conta a extensão das propriedades de cada grupo étnico, a pesquisa retrata grande desigualdade. Os produtores brancos ocupam 208 milhões de hectares, ou 59,4% da área total dos estabelecimentos, enquanto os pretos e pardos têm, somados, menos da metade: 99 milhões de hectares, ou 28%.

A distorção é ainda mais profunda do que a distribuição da renda nacional apurada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) em 2015, segundo a qual os brancos detêm 59% da riqueza do país, enquanto os pardos ficam com 33% e os pretos com 7%.

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Marcelo de Souza Oliveira, analista do censo, explica que a inclusão da raça na questão agrária era uma demanda antiga e seguiu as orientações já usadas pelo IBGE em censos populacionais. Ou seja, cada entrevistado declarou sua raça ou cor, escolhendo entre as cinco classificações oferecidas: branca, preta, parda, amarela ou indígena. A pesquisa mostrou que o Brasil tem 2,2 milhões de produtores brancos e 2,6 milhões de pretos e pardos, considerando a soma de todos os tipos de propriedades agropecuárias, independentemente da cultura e do tamanho da terra.

Nas grandes propriedades, quase não há produtores pretos. Das 1.559 fazendas com mais de 10 mil hectares, por exemplo, 1.232 são comandadas por brancos, 270 por pardos e apenas 25 por pretos – a proporção é de quatro produtores brancos para um produtor preto ou pardo. Nas propriedades pequenas, com menos de 5 hectares, dá-se o contrário, com pretos e pardos em maioria.

Retrato do Brasil

A maior presença de negros entre os proprietários rurais  ocorre na Bahia (15,7%), Amapá (14,6%), Maranhão (14,1%), Piauí (12,4%) e Pará (10,6%). No Rio Grande do Norte, o maior percentual é de produtores pardos (49,4%), assim como em Roraima (43,6%). Em Mato Grosso, os brancos representam 49,2% e, no DF, ocorre quase um empate: 43,5% são pardos e 42,3% são brancos.

 

 

 

(Infográfico: João Brito)

 

 

Na divisão por Estados, Rio Grande do Sul e Santa Catarina são os que concentram mais fazendeiros brancos, ambos com índices acima de 90%, seguidos por São Paulo, com 80%. Os pardos têm maior participação (68%) no Pará e os pretos, na Bahia (15,7%). Na divisão por tipos de atividade, a presença de produtores brancos é mais visível nas plantações de soja, fumo, café e cana. Já o cacau é o produto mais associado a pardos e pretos.

Na pecuária, os brancos perdem por pouco para a soma de produtores pretos e pardos.Para o movimento negro e  muitos  pesquisadores,  pretos e pardos são considerados  negros,  mas  essa  classificação não é endossada pelo IBGE. Apesar  de  discussões  semânticas acaloradas, a população usa os termos preto e negro como sinônimos.

Quilombola

 

Além do desafio de serem, em geral, pequenos produtores, os proprietários rurais negros enfrentam uma barreira histórica no Brasil: o racismo, definido como um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças. A luta antirracista voltou com força ao debate em maio deste ano, com o assassinato do vigilante George Floyd por um policial branco nos EUA.

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Maria Andrelisse Silva, de 52 anos, e seu filho Adevandro Silva dos Santos, de 32, que pertencem ao contingente de 8,4% de produtores rurais negros e trabalham trabalharam na infância em uma comunidade quilombola da Bahia, contam que vivem o racismo até em seu próprio assentamento, onde a maioria é negra. “Já fui chamada de vários nomes por pessoas que acham que a gente não pode estar em lugares superiores. Ser mulher e preta é bem difícil. A gente não reage, mas sente a pancada”, lamenta Maria.

Apesar de morar em uma região cercada por comunidades quilombolas, Adevandro diz que enfrenta manifestações inexplicáveis de racismo em seu cotidiano. “Tem negro que se acha branco, principalmente se já foi capataz. Há pouco tempo, fui esculhambado por um policial à paisana que me disse que os pretos eram todos vagabundos. O pior é que ele era negro também”, conta Adevandro.

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A família cultiva atualmente uma área de 19 hectares no Assentamento Dandara dos Palmares, em Camamu (BA). O local era uma antiga fazenda de cacau vendida ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) após o colapso da produção e a desvalorização das terras por causa da praga vassoura de bruxa. Maria e Adevandro, que cultivavam mandioca em 2 hectares na comunidade quilombola, passaram a produzir no Dandara cacau e outros frutos, além de hortaliças, em sistema agroflorestal (SAF).

Outros  produtores  baianos  de  cacau,  como Joelson Ferreira e Luciano Ferreira da Silva, também já se sentiram discriminados por causa da cor da pele. “Eu sempre sinto o racismo quando vou ao banco, mas meu pai ensinou a andar de cabeça erguida, porque não somos inferiores a ninguém”, afirma. Em 15 hectares do Assentamento Terra Vista, em Arataca, Joelson planta cacau orgânico em combinação com banana, goiaba e outras frutas.

A maior parte das amêndoas de cacau é processada no assentamento para produzir o chocolate de origem Terra Vista, vendido em feiras e eventos. Joelson conta que já representou o assentamento algumas vezes no Salão do Chocolate em Paris e em Portugal – ocasiões em que também sofreu racismo, mas reagiu à altura. “Primeiro, tento resolver no diálogo, exponho o racismo e peço respeito, como meu pai me ensinou. Se o diálogo não resolver, então o jeito é partir para o chute na canela.”

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Luciano, filho de trabalhadores do cacau, é outro que conseguiu um pedaço de terra. No Assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga (BA), ele planta cacau, hortaliças e frutas em 5,5 hectares. Toda a produção é certificada e vendida para grandes fábricas de chocolate da Bahia. “Por ser agricultor familiar e negro, a todo momento a gente tem de se autoafirmar e provar a nossa importância para a sociedade. Para mim, ser preto é motivo de muito orgulho. É um desafio carregar essa história de resistência da raça, já que a Bahia foi palco de vários movimentos de resistência camponesa”, diz.

Valeria Fatima de Souza Guirardelli, produtora de cana-de-açúcar em Pitangueiras (SP), também se autodeclara negra. Dona de um sítio de 7 hectares que herdou do pai, ela diz que já se sentiu discriminada em algumas ocasiões, mas não sabe se foi pela cor da pele ou por ser mulher. “Quando peço empréstimos em bancos, por exemplo, sinto a discriminação. À vezes, até peço para meu filho me substituir.”

História

 

Para a historiadora Joana Medrado, professora doutora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), há um processo de negação das identidades originárias no Brasil. “Diferentemente dos EUA, aqui o racismo se esconde, se omite. O fato é que nunca houve ganho social em ser identificado como negro.”

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A pesquisadora diz que o acesso à terra está diretamente ligado à possibilidade de ascensão social e a concentração nas mãos de brancos tem raízes históricas. “Nunca houve um processo de compensação dos negros pela escravidão”, diz ela.

A Lei de Terras de 1850 inaugurou o processo de capitalismo agrário, estabelecendo os títulos de compra e venda de terras e abrindo flancos para os brancos terem ainda mais terras. A lei deixou aos negros, que não podiam acumular pecúlio, o papel de mão de obra das fazendas.

Já os estrangeiros brancos ganharam o direito de ter a posse da terra após dois anos no país.Segundo Joana, a ideia de que os imigrantes vieram substituir o trabalho escravo no Brasil é uma falácia. “Com a mão de obra negra já domesticada, os estrangeiros vieram para colonizar e embranquecer o país”, afirma, ressalvando que esse discurso se modificou parcialmente a partir de 1930, quando a miscigenação passou a ser a palavra da moda. “A pergunta na época era: você é negro ou brasileiro?”.

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A antropóloga Alexandra Alencar, pesquisadora do Núcleo de Identidades e Relações Interétnicas da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), cita o processo de embranquecimento da população para explicar a invisibilidade do negro, especialmente no sul do país.

Na opinião de Joana Medrado, o processo de reforma agrária, que foi abafado no Golpe de 64 e ressurgiu com o MST, é uma necessidade social e poderia resultar em mais terras para os negros, assim como o reconhecimento das comunidades quilombolas. O país tem 3,2 mil áreas remanescentes de quilombos, segundo a Fundação Palmares, mas menos de 10% já tiveram suas terras reconhecidas.

Movimento negro

 

No Brasil, pretos e pardos são considerados  negros pelos militantes do movimento negro, mas essa classificação não tem o endosso do IBGE. Segundo o instituto, nem todos os pardos são afrodescendentes e, especialmente no Norte e Nordeste, mestiços de índios também se autodeclaram pardos.

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Em Características  étnico-raciais  da população, publicação do IBGE, o sociólogo Rafael Guerreiro Osório diz que a atribuição aos grupos raciais de características que podem ser usadas para estabelecer hierarquias de superioridade são a fonte potencial da desigualdade. “Isso gera racismo e  preconceito,  levando  a  situações  que,  acumuladas, se traduzem em desvantagens para o grupo vitimizado”, defende Osório.

Para a professora Vanda Gomes Pinedo, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) do Brasil, pardo é uma classificação histórica do IBGE, assim como mestiços, para escamotear os dados da população negra.A  antropóloga  Alexandra  Alencar diz que é complicado acusar pardos de esconderem sua raça, pois as categorias negro, preto e pardo vão sendo ressignificadas ao longo dos anos. “Desde a escravização, termos como pretos e negros eram pejorativos e só passaram a ser positivados pelos movimentos sociais negros.”
Source: Rural

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