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(Foto: Márcia Foletto/Agência O Globo)

 

A ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, falou à Globo Rural sobre como avalia a condução das pautas do meio ambiente sob a atual gestão do ministro Ricardo Salles e do governo Jair Bolsonaro.

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Filiada ao partido Rede Sustentabilidade, Marina diz que há desvio de função por parte de Salles, por não cumprir o artigo 225 da Constituição, que estipula que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Acompanhe, a seguir, a entrevista na íntegra:

Globo Rural – Como a senhora avalia a condução das pautas do meio ambiente pelo atual governo?

Marina Silva – A condução é a pior de todos os tempos, porque há uma ação coordenada para destruir a governança ambiental brasileira, que se traduz em várias práticas que o governo tem implementado. O ataque ao marco regulatório, a Medida Provisória da grilagem, a retirada de setores e órgãos do Ministério Meio Ambiente para outros ministérios, como por exemplo tirar a Agência Nacional de Águas e colocar no Ministério do Desenvolvimento Regional, Serviço Florestal Brasileiro colocar no Ministério da Agricultura. Nós temos uma situação de descontrole das ações de garimpo, de grilagem de terras, de exploração de madeira, de invasão de terra pública, de aumento do desmatamento e de queimadas. E, como se não bastasse, o ministro [Ricardo Salles] não dá as menores condições para que o Ibama cumpra com a sua missão, assim como o ICMBio. E ele, quando é cobrado, coloca a culpa naqueles aos quais ele não dá suporte, que ele fragiliza, que ele assedia, que ele exonera, como aconteceu recentemente com os diretores que fizeram aquela operação contra o garimpo ilegal nas terras indígenas. Então é a pior política, ela trabalha para favorecer o contrário à finalidade da pasta. O ministro acha que pode implementar a sua visão reacionária, controladora, antiambiental, mas ele incorre desvio de função, crime de responsabilidade e prevaricação, porque ele está sujeito à lei.

GR – É possível fazer alguma comparação entre o atual ministro e os anteriores?

Marina – O ministro do Meio Ambiente é a autoridade máxima do Sistema Nacional de Meio Ambiente, e o sistema tem uma lei que estabelece qual é o dever legal de quem está na pasta, que é a Lei 6.938/81. Ele [Ricardo Salles] não pode fazer as coisas a seu bel prazer. Em todos os governos, nós tivemos avanços, em alguns mais, em outros menos, mas é a primeira vez que está tendo, não é nem apenas retrocesso, é desmonte. No caso desse governo, você vê o próprio presidente da República tomando satisfação e ameaçando os que fizeram a operação na terra indígena contra ação ilegal de garimpo.

O Brasil hoje já é um pária ambiental, um pária pandêmico, está virando um pária da democracia e isso, nesse contexto de pandemia, é algo muito grave

 

GR – Como se dá, geralmente, a relação entre os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura? Como está esta relação atualmente?

Marina – A relação é sempre institucional, onde cada um tem as suas atribuições e cada um deve se orientar pelo marco legal existente no país. Não adianta querer impor um processo que não tenha suporte e amparo legal. Existem divergências, mas elas terão que ser diminuídas em conformidade com a lei. A ecologia deve ser integrada à economia. O grande prejuízo também é para o agronegócio brasileiro, inclusive acaba afetando a todos. Quando eu era ministra, insistia muito em iniciar um processo de certificação dos nossos produtos agrícola, porque ele não acontece da noite pro dia, ele é composto de várias etapas e elas podem ser cumpridas. Você faz Plano Safra após Plano Safra, não é colocado uma condicionante em termos ambientais, é só flexibilização, flexibilização… O mundo está indo em uma direção, nós podemos achar que vamos ficar impunes. Nós temos uma situação onde o Ministério do Meio Ambiente desmonta as estruturas de fiscalização, pune servidores, faz assédio e isso tem um custo na imagem que o Brasil tem lá fora. O Brasil hoje já é um pária ambiental, um pária pandêmico, está virando um pária da democracia e isso, nesse contexto de pandemia, é algo muito grave. Compra briga com nossos parceiros comerciais, como é o caso da China, que é responsável pela maior parte das nossas exportações.

A relação do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura não deve ser uma relação em que a economia se sobreponha

 

GR – Esse custo na imagem já está sendo cobrado?

Marina – Hoje, nós vivemos uma situação que já é de muito prejuízo para o Brasil em termos econômicos. As commodities brasileiras são fundamentais em relação à nossa balança comercial, às exportações. Elas estão sofrendo muitos problemas, por exemplo, a Vale do Rio Doce e a Eletrobras já foram excluídas do fundo soberano norueguês. Agora mesmo nós temos uma articulação que está sendo feita pela própria União Europeia com o conceito de que não irão importar mais desmatamento, que estará embutido nos produtos que irão adquirir. Olha, com todas essas exigências e regramentos que estão postos no mundo, temos um governo que, em vez de fazer uma agenda de transição para uma economia sustentável, está indo cada vez mais na contramão daquilo que os nossos demandadores estão demandando. Nós já estamos prejudicando o acordo do Mercosul com a União Europeia, nós ficamos de fora dessa rodada de mais de 50 países, liderados pelas Nações Unidas, que estão fazendo os esforços para investimentos para o pós coronavírus. O risco Brasil hoje aumenta de forma exponencial e um desses riscos é a questão do desmatamento, das queimadas, da violência contra indígenas, comunidades locais. Já temos um grupo de mais de 40 empresas ligadas ao setor de supermercados do Reino Unido que firmaram um documento de não adquirir nossos produtos caso a Medida Provisória da grilagem fosse aprovada. Então, a relação do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura não deve ser uma relação em que a economia se sobreponha.

GR – Na sua visão, a Fundação Nacional do Índio (Funai) também faz parte deste “desmonte”? A quem os indígenas devem recorrer?

Marina – A Funai passa pelo mesmo desmonte, e a situação só não é pior porque existem profissionais comprometidos, pessoas que estão lá a duras penas, fazendo seu papel de resistência. Eu acho que o que está acontecendo é a resistência dos povos indígenas, que estão muito bem organizados. Há um papel fundamental feito pela Frente Parlamentar Indígena, que vem sendo liderada pela deputada federal Joenia Wapichana, o trabalho da Frente Parlamentar Ambientalista também dá suporte a estas ações, também há o apoio de organizações civis e entidades ambientalistas. Essa situação da Funai não é diferente do que acontece no Ibama, no ICMBio, no Serviço Florestal Brasileiro, mas tem um agravante que é a vulnerabilidade dessas populações. O governo atual demite e ameaça as pessoas que fizeram a operação para proteger os índios e as terras dos índios e, assim, está dando um sinal de que está do lado do criminoso, e não do lado das vítimas. Quando a Funai não sabe lidar com a situação de que tem índio isolado e cria situações de contato inadequado, completamente o colocando em risco, são riscos que estão sendo promovidos pelo próprio governo. A única coisa a ser feita nesse momento é recorrer à Justiça, como tem sido feito sistematicamente.

Ele [ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles] não pode estar à frente da pasta para, repito, ir na contramão daquilo que é a finalidade do mandato dele. Isso é desvio de função

 

GR  – A votação sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas foi interrompida e só será retomada de forma presencial. Isso é bom?

Marina – Se você diz que só serão validadas e reconhecidas áreas que já estavam até a Constituição de 1988, então você está colocando em vulnerabilidade todo os territórios que vêm sendo identificados de lá para cá. Então, o pior dos mundos é a aprovação. Hoje, o acordo das sessões remotas do Congresso Nacional era para votar matérias da situação de emergência que o país está vivendo. O surgimento de matérias fora do escopo que havia sido estabelecido, no meu entendimento, tem a ver com aquelas manobras que o Salles declarou na fatídica reunião que foi tornada pública. Ele mesmo disse que enquanto estamos neste momento de tranquilidade, nas palavras dele, no aspecto da cobertura da imprensa, porque só se fala de Covid, é ir passando a boiada e ir mudando todo o regramento e simplificando normas. Ele disse isso, então aí vem todas essas questões, na estratégia de nesse período passar o rolo compressor. O certo era isso sair definitivamente da pauta, porque é inconstitucional, agora indo para a pauta, que seja nas sessões normais, onde é possível ter as audiências públicas, as oitivas, é possível um debate mais amplo com presença da sociedade e das próprias populações indígenas.

GR – Ainda sobre a fala de Ricardo Salles na reunião ministerial do dia 22 de abril, qual é a sua avaliação?

Marina – Nós, da Rede, já havíamos entrado com um pedido de impeachment do Salles, porque houve uma interpretação por desvio de função, que o ministro [do STF, Edson] Fachin entendeu que esse processo deveria ter sido encaminhado para o Ministério Público e que este deveria fazer essa denúncia. Agora, no contexto dessa fala, nós reencaminhamos o processo via Ministério Público, mas existe uma ação também de procuradores em relação a esse desvio de finalidade e essa clara prevaricação de suas atribuições, que é defender o artigo 225 da Constituição Federal em lugar de covardemente ficar tramando contra as atribuições que a Lei 6.938/81 lhe confere. Ele não pode estar à frente da pasta para, repito, ir na contramão daquilo que é a finalidade do mandato dele. Isso é desvio de função.
Source: Rural

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